“Bucetinha Black Friday, tá na promoção”, anuncia uma voz indistinta, nebulosa como a imagem do corredor precária e vermelhamente iluminado de um dos hotéis da Guaicurus, rua do hipercentro de Belo Horizonte, Minas Gerais. Este nome tupinambamente brasileiro, que remete à pessoa sarnenta, encaroçada, de pele e índole suja, carrega a mesma repelência das mulheres estigmatizadas que labutam no local. As trabalhadoras sexuais são as protagonistas do documentário de João Borges, Rua Guaicurus (2019), que logo abandona os enquadramentos penumbrosos da cena inicial para retratar diferentes arestas de um dos maiores e mais tradicionais pontos de prostituição do país. A obra foi exibida pela Embaúba Filmes entre o dia 29 e dia 31 de maio – antevéspera do Dia Internacional da Prostituta, celebrado desde 1975.
Rua Guaicurus, seguindo uma forte tendência do documentarismo brasileiro contemporâneo, propõe uma narrativa que borra as fronteiras entre o documental e o ficcional. Histórias reais dão base a um enredo encenado por uma atriz profissional, Ariadina Paulino, e duas não-atrizes, Shirley Santos Dias e Elizabeth dos Santos, que foram escolhidas pelo diretor após uma residência artística nos hotéis da histórica zona de meretrício da capital mineira. A partir desse hibridismo formal – que sugere o caráter construtivo, criativo e, portanto, parcial da representação, que jamais será tomada como reflexo neutro do real –, o filme tenta superar a camada sexual das relações traçadas nesse contexto, cavando a face cotidiana e corriqueira dos encontros. A obra tensiona a centralidade do sexo nesse tipo de ofício, privilegiando o desvendamento de uma rotina de trabalho ordinária. Assim, esvazia-se, embora não se elimine, a carga erótica dessa atividade negativamente marcada por promover usos da sexualidade que confrontam valores, moralidades e comportamentos socialmente estimados.
O documentário recupera aspectos da prostituição que podem se assemelhar com outros exercícios laborais. Ao invés de ser apontado como apanágio da natureza feminina, o sexo é encarado como uma prática calçada em saberes particulares, burilados ao longo do tempo. O conhecimento especializado de Beth, por exemplo, é corroborado quando contracena com a novata Michelle, personagem de Paulino. A veterana é uma referência para as recém-chegadas e, com sua expertise, pode ensiná-las os pormenores da profissão. Com um consolo na mão, explica a forma correta de usar e manusear preservativos, assim como a importância do gel lubrificante para garantir a durabilidade do produto, sem deixar de sublinhar a relevância dos procedimentos a serem seguidos. Em Rua Guaicurus, observamos, nesse e em outros momentos, mulheres que controlam com certa autoridade as regras e dinâmicas de suas próprias relações profissionais.
Afirma-se, então, a capacidade de agenciamento e decisão de trabalhadoras que, na verdade, são comumente vitimizadas nas representações cinematográficas sobre o tema. As prostitutas são encaradas, com frequência, como sujeitos desengajados de mobilizações políticas significativas, carentes de assistencialismo e salvação, como denuncia Monique Prada no seu livro Putafeminista (Editora Veneta, 2018). O aclamado documentário Whore’s Glory (2011), de Michael Glawogger, que com seu ímpeto de denúncia explora as agruras dos bordéis do Terceiro Mundo, é representativo dessa tendência. Parte dos feminismos, com frequência, também reitera essas visadas redutoras, tomando as prostitutas não como possíveis aliadas nas lutas sociais contra espoliações de gênero, raça e classe, mas como indivíduos alienados, objetos de um resgate supostamente almejado. Por vezes, quando recusam esse tipo de auxílio, são acusadas de fortalecer amarras patriarcais, ignorando-se que a prostituição não é a única instituição que fundamenta estruturas sociais desiguais e que ela pode ser ressignificada e transformada, politicamente, em suas prerrogativas. Outras ocupações são igualmente marcadas por distinções de gênero e não sofrem as mesmas retaliações.
Essas abordagens, de fato, pouco dialogam com as demandas propostas pelo movimento organizado de prostitutas, em atuação pujante há quase 50 anos. Em 1973, por exemplo, a norte-americana Margot St. James (1937-2021) lançou nos Estados Unidos a primeira organização pelos direitos das prostitutas e contra a criminalização da atividade, o Call Off Your Old Tired Ethics, ou Coyote. No Brasil, as agitações políticas iniciais ocorreram entre os anos de 1979 e 1982, em São Paulo. Essas manifestações resultaram no I Encontro Nacional de Prostitutas que aconteceria alguns anos depois no Rio de Janeiro, em 1987. Entre suas principais lideranças, estava Gabriela Leite (1951-2013), criadora da marca Daspu e da ONG Davida, a primeira trabalhadora sexual que se candidatou a deputada federal no Brasil, em 2010. Gabriela também é autora do livro Filha, Mãe, Avó e Puta (Editora Objetiva, 2009), que, assim como outras iniciativas autobiográficas, procurou refletir sobre experiências prostitutivas a partir de um discurso e de um lugar de fala próprios.
As primeiras putativistas brasileiras demandavam, primordialmente, o reconhecimento de sua condição de cidadãs. Denunciavam, também, a violência policial e de gênero, sem se eximir da luta democrática contra o regime militar (1964-1985). Nos anos 1990, passaram a incorporar direitos trabalhistas em suas reivindicações. O movimento chegou, assim, à década de 2000 politicamente organizado e comprometido com a defesa da prostituição como trabalho legal, como foi reconhecida em 2002 pela Classificação Brasileira de Ocupações. Assumem, hoje, a alcunha feminista, comprometendo-se com a luta pela libertação e emancipação de mulheres, cis e trans, principalmente das classes populares. A elas são destinadas as funções mais precarizadas na sociedade, como o meretrício, e por isso entende-se a necessidade de contestar as estruturas capitalistas exploratórias de forma mais ampla. As putafeministas apontam o estigma, que inclusive lhes nega e apaga esse passado e presente de luta, como a principal violência acometida contra o grupo.
Em certa medida, filmes como Rua Guaicurus podem propor horizontes estéticos, formais e de conteúdo alternativos ao se contraporem a enquadramentos que ainda confinam muitas mulheres ao apagamento e à abjeção. Não se trata de uma produção que, obrigatoriamente, oferece imagens mais positivas da realidade que aborda. Poderíamos pensar, por exemplo, sobre o intrincado equilíbrio ético que se deve buscar em cenas de sexo mais expositivas, capazes tanto de subverter visualidades comuns e estereotipadas da prostituição, quanto de ratificar erotizações indesejadas. De qualquer forma, Rua Guaicurus parece ser um filme que procura dilatar um campo de visibilidade atrofiado, enfrentando o desafio de se falar de uma sexualidade fora da norma. Coloca-se outras perspectivas sobre a prostituição em circulação, mais afirmativas – se não da atividade, que inevitavelmente carrega suas contradições, certamente das mulheres nela envolvidas.
Para além de Rua Guaicurus, outros documentários também procuraram engendrar figurações problematizadoras de estigmas e complexificadora das experiências prostituídas. Destaco o também mineiro Filhos da Puta (Coletivo Rebu, 2019) que reconcilia duas figuras incompatíveis através dos relatos de três personagens cujas mães exercem ou exerceram o meretrício. A maternidade ganha outros contornos no processo de ressignificação da interpelação intencionalmente humilhante que titula o filme. Também ressalto o filme Um Beijo para Gabriela (Laura Murray, 2012), que registra a construção da campanha de Gabriela Leite nas eleições de 2010.
Juliana Gusman é jornalista, professora e pesquisadora, doutoranda em Meios e Processos Audiovisuais pela Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP).