O caos se estabelece já no primeiro minuto. A filha da empregada doméstica chega a São Paulo, vinda do Nordeste pernambucano, de início para ficar hospedada na casa dos patrões da mãe, no Morumbi. O plano de Jéssica é prestar vestibular para arquitetura na USP.

A casa e a vida de todos os envolvidos viram de ponta-cabeça, antes que alguém consiga pronunciar “bolsa-família” ou “Enem”.

Antes que as badaladas completem um ciclo, a mãe de Jéssica perde a hora na senzala no quartinho de empregada. Por educação, a patroa é obrigada a servir serve café da manhã à filha da doméstica: suco de lima-da-Pérsia. Jéssica delicadamente recusa o colchão barato no chão do quartinho da mãe e toma lugar no quarto de hóspedes da casa-grande. No segundo minuto todo mundo já sacou que o vento repentino vai trazer chuva brava.

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Jéssica é o Barravento, o sopro abafado de transformação que vem varrer a praia, a casa, o bairro, a cidade, o país.

Atores negros de "Barravento", de Glauber Rocha, em cena em 1962
Atores negros de “Barravento”, de Glauber Rocha, em cena em 1962

Não uso o nome do filme de 1962 do bardo baiano Glauber Rocha com intenção de despiste: barraventos à parte, Que Horas Ela Volta? é um filme feminino, 900% feminino (tanto é que deixou fora de si um cineasta pernambucano de humores misóginos e homofóbicos), dirigido pela paulistana de 1964 Anna Muylaert (de Durval Discos, 2002). O barravento de 2015 é uma mulher, uma jovem, uma menina pernambucana (interpretada por Camila Márdila) forçada a vir domar a hidra na capital mais dramaticamente conservadora, reacionária e preconceituosa do Brasil.

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A sala de cinema de shopping está em estado de choque. Viemos para rir de Regina Casé, mas cedo as gargalhadas se misturam às lágrimas e ao mais profundo desconforto. Não se trata de uma comédia ligeira da Globo (embora tenha o dedo da Globo Filmes, assim como da SPcine), talvez nem mesmo se trate de um filme. Que Horas Ela Volta? é uma metáfora, uma poderosa metáfora, a metáfora que faltava para compreendermos e quem sabe podermos encerrar 2015.

A metáfora é simples como o jogo de xícaras que a empregada compra para presentear o aniversário da patroa (e que será rejeitado pela ditadura dita cuja). No joguinho comprado nas Casas Bahias, xícaras pretas devem combinar com pires pretos, e vice-versa. Um dos oito conjuntos de pires-e-xícara deve cair fora da bandeja para dar lugar a uma garrafa térmica preta, preta, pretona.

99916a89180f7386af7b2ec6e9a4e8530bb583ddEmbora Regina Casé não seja negra (infelizmente), é disto que a metáfora trata, em pique-esconde de casa-grande & senzala: o preto e o branco estão “descasados” (como diz a doméstica) na combinação de cores do jogo café-com-leite e do país onde Não Somos Racistas (como defende pateticamente o capataz chefão do jornalismo global, Ali Kamel).

cartaz1Embora Jéssica seja o barravento e Regina Casé seja uma atriz espetacular, a metáfora está condensada no rosto e na atuação magistral de outra atriz, Karine Teles, a intérprete da patroa que parece ser uma jornalista, uma consultora de moda, uma publicitária ~fashion~ ou algo parecido. As expressões e a evolução do comportamento dessa personagem desnudas e sintetizam o comportamento das elites brancas reacionárias nas ruas brasileiras (especialmente sudestinas, particularmente paulistanas) de 2015.

cartaz4No trajeto da personagem da patroa está transcrito o percurso dos batedores de panela que tentam calar a boca da presidenta da república, dos . Sinhazinha não quer, simplesmente porque não quer (ou porque não pode?), aceitar a crônica anunciada e logo sacramentada: Jéssica vai prestar vestibular, vai passar com distinção, vai ~roubar~ a vaga que o direito divino reservava ao filho (criado pela empregada) da patroa.

É a tal meritocracia, aquela mesma que enche as bocas de dez entre dez filhos de arautos supostamente meritocratas, especialmente aqueles que mais detestam a ideia de sentar para ler um livro, de estudar um pouco um assunto qualquer, de confeccionar uma ideia própria não copiada do vizinho mais próximo.

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A patroa, convenientemente batizada de Bárbara, vaza ódio, rancor e ressentimento em cada olhar fulminante, em cada mínimo gesto, em cada atitude caricatural. Contra fatos, não há argumentos: as bárbaras e os bárbaros que lotam as ruas e os sites de 2015 com xingamentos, acusações, ofensas, injúrias e cusparadas de rancor estãocontrariadíssimos com a realidade nova, com a nova divisão dos privilégios, com este Brasil que realmente vem mudando muito (como a certa altura diz, nada bobamente, a patroa).

Bárbaras e bárbaros não se revoltam contra uma ameaça, mas sim contra uma realidade que já está posta à mesa da tradicional família, num jogo de xícaras e pires de mosaico xadrez.

Anna Muylaert reescreve e redimensiona a narrativa brasileira de 2015 porque coloca à mesa as motivações por trás da Grande Revolta Branca de 2015. Atrás do tremor de terra que começa no panelaço antifeminino e termina no clamor impopular das elites machas por impeachment está a tragicomédia cotidiana, banalíssima, de nossas vidas.

Atrás da histeria manicomial coletiva da classe ~A~ e das velhas classes médias se encontra um mundaréu de gente: a babá uniformizada cada dia mais ~abusada~, o porteiro do prédio que pleiteia inadiável aumento salarial, o manobrista que cansou de levar esculacho e vai ser Uber, os inventores das leis trabalhistas que amordaçam pressionam empregadores e dão liberdade vida nova a mulheres que passaram anos e décadas e séculos vivendo as vidas das patroas, patrões e patrõezinhos.

Atrás da raiva descontrolada contra a reviravolta social os desmandos e rapinagens do Partido das Trabalhadoras, atiçada diariamente por mídia pálida e falida, desabrocha o empoderamento de quem jamais gozou de poder. O ganho de consciência das mães de jovens como Emicida e Gaby Amarantos é transmitido aos filhos e filhas, que se transformam em barravento, em barraventos, em barraventos como os da Antônia (2006) de Tata Amaral.

Conforme a velha mucama empregada doméstica decida abandonar a senzala o puxadinho na casa-grande e viver em relativa liberdade, os sinhozinhos e sinhazinhas patrões terão de aprender a lavar as próprias privadas. A dor de pensar em lavar a própria cueca dói mais que qualquer corrupção, alta de impostos, ~golpe comunista~, lumbago, inflação, erisipela, lavagem seletiva de dinheiro, sífilis ou dinheiro investido no suborno do guarda do bafômetro.

Por baixo de uma trama simples com final feliz e redentor (mas não para os patrões), é essa a história que o desconcertante filme de Anna Muylaert vem contar sobre 2015. Não é fortuito que a personagem de Regina Casé, a Val, cedo se espante com o comportamento da filha que não via havia dez anos, a ponto de observar que a moça está ~segura~ feito uma presidentA da República.

Sim, neste Brasil que não para mais de se transformar, ao barravento, a filha da empregada pode, sim, sonhar em dirigir seus próprios filmes ser presidentA da República. É simples assim.

Preto-no-branco, saio da sala atordoado por um duplo sentimento. Enquanto passam os letreiros, choro lágrimas negras que são de alegria, de orgulho do cinema que de vez em quando se faz na minha cidade adotiva de São Paulo. É incrível como nesta cidade se produz o que há de pior e mais violento em termos de reacionarismo para, em seguida, alguém chegar e produzir, na forma de um simples filme, o antídoto para o veneno que nós mesmos vertemos.

O outro lado é mais amargo. Saio da sala devagar, me divertindo com as caras amarradas de certos espectadores, e dou de cara com a faxineira (essa sim negra, bem mais negra que a Regina), que já está limpando o ambiente para a próxima sessão de Que Horas Ela Volta?. A Val da ~vida real~ lembra a todos que estivermos de olhos bem abertos que o barravento das artes pode ter o gosto de um poderoso elixir, mas que, não, não é nas poltronas macias do cinema, nas palavras de ordem ou num fantasioso passe de mágica que se transforma o dia-a-dia.

Manifestação de 15 de março de 2015 - foto Eduardo Nunomura
Manifestação de 15 de março de 2015 – foto Eduardo Nunomura

 

P.S.: Notas musicais sobre Que Horas Ela Volta?:

– a patroa Bárbara suspeita que o porteiro fez fofoca e intriga com a empregada Val; o porteiro é vivido pelo músico Théo Werneck, e se chama Vandré

alx_que_horas_ela_volta3_original– o patrão patético usa camiseta de bandas gringas de modinha de festival de rock coxinha; Val estende no varal uma camiseta emo-gótica dos Ramones; malsucedido no vestibular, o filho dos patrões ganha como prêmio de consolação o direito de ir surfar na Austrália: a classe alta média paulista, sudestina, antibrasileira vive num paraíso doirado onde todos falam inglês e ninguém é nordestino (a não ser a Val, que lava as calcinhas da patroa e pendura as camisetas de banda do patrão)

regina-case-que-horas-ela-volta– a piscina é um cenário-chave, quase um personagem em participação especial; como não estamos num rock de Cazuza, a piscina de Que Horas Ela Volta?  não está cheia de ratos

– a vidente disse que Lulu SantosLobão e Fábio Jr. serão unânimes em detestar esse filme

– tributária cinematográfica do funk brasileiro, do tecnobrega, do arrocha ou do lambadão, a obra de Anna Muylaert troca completamente os sinais de protagonistas e coadjuvantes; não adianta você esperar que a câmera vá focalizar nas opiniões e na visão de mundo da patroa: ela pode até passar de soslaio e ameaçar fazer isso, mas sempre retornará graciosamente para a personagem da apresentadora do Esquenta

– Bárbara é bossa nova; o marido lesmão é rock indie; o filho é house music sem vocal; Val é forró universitário; Jéssica é hip-hop

– Val usa uniforme; em pleno 2015; como na MPB ~vida real~.

– como demonstrou a comadre de Twitter @CapivaraMa, Anna Muylaert não está sozinha na visualização do supostamente invisível – até a música brasileira vez por outra desperta do sono profundo:

 

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14 COMENTÁRIOS

  1. Entendo que a análise do filme pode ser ainda mais profunda, esse comportamento de Bárbara não é somente privilégios das Elites, ele tende a se repetir também em classes “inferiores”. Quando uma família pobre pega uma parenta distante do interior para morar na casa da capital a fim de que essa possa “terminar os estudos” e ajudar nos afazeres da casa. Quando se paga vinte reais por uma faxina ainda se autoriza levar a sobra do almoço no final da tarde, repete-se também o comportamento das Bárbaras em escala menor. Lembro que, em um tempo distante, a primeira prioridade de um escravo liberto ou alforriado era juntar dinheiro para comprar um escravo e mostrar a sociedade sua nova condição social. A discussão que se faz não é mais da Casa Grande e da Senzala, mas do macaqueamento das classes menos favorecidas dos costumes das Elites.

    • Gilberto, interessante e importante seu complemento, mas não acredito que modifique a infraestrutura casa-grande/senzala. Lembro que o capataz, o capitão do mato, sempre existiu – e que o salário dele também vinha e vem das bárbaras e dos bárbaros. O hábito de jogar todo o peso das responsabilidades no colo das ~classes médias~, sejam elas as velhas ou as novas, é um conhecido aliviador para as classes realmente altas, sempre protegidas pelas sombras.

      No mesmo contexto, contesto um termo que você elegeu usar, “macaqueamento”…

  2. Você fez uma análise muito desconexa, pois você está colocando, a sua maneira, o seu preconceito ao explicar as atitudes dos patrões com relação aos “batedores de panela” a “elite que não aceita perder direitos”. Você brada os erros que o Lula afirma, ao querer justificar qualquer crítica a presidenta como uma não aceitação das mudanças e de uma elite dominante que quer se manter no poder.
    Você não pode simplesmente colocar a interpretação da autora como uma luz para mostrar os comportamentos dos brasileiros como um todo. Não somos essa “caricatura” que você quer reproduzir, simplesmente por não concordar com a sua opinião.

  3. “Meus parabéns” pela sua resposta.
    Se ser irônico é melhor do que responder a altura os meus textos, mostra o quão ignorante e infantil você é, sem falar que os imbecis respondem que a interpretação de texto é fraca.
    Continue sendo este babaca que você é.

  4. Visão interessante, mas um texto carregado, transbordando preconceitos.
    Pedro, você está seguro do que escreve abaixo?
    “…Atrás do tremor de terra que começa no panelaço antifeminino e termina no clamor impopular das elites machas por impeachment está a tragicomédia cotidiana, banalíssima, de nossas vidas”.

  5. O filme, assim como a crítica, é um clichê atrás do outro. Poderiam ( o filme e a crítica) dizerem as mesmas coisas sem todos estes clichês.

    Falta talento (à diretora e ao articulista).

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