Eu estava ali meio de banda. Ver um espetáculo de lado, da coxia, pode ser um privilégio. Mesmo que o palco seja o hall de um edifício recém-reformado, o vistoso João Goulart, na Praça Pedro II (Centro), que destoa com elegância particular do conjunto arquitetônico do entorno, que garante a São Luís o título de patrimônio cultural da humanidade.
Estávamos este repórter e Ademar Danilo (o time se completa com Gilberto Mineiro), mandando ver com os jingle bells típicos do período natalino e informações sobre a programação na Rádio Natal do Maranhão, um sistema de som cujas caixas se espalham pelas ruas da Praia Grande a fazer o público convergir para espaços como a Casa do Papai Noel (no térreo da antiga sede da Secretaria de Estado da Cultura, na esquina das ruas Portugal e da Estrela), o Palácio dos Leões (em cuja fachada acontece a projeção do video mapping), a Árvore Cantante (em frente ao João Goulart), a Praça da Mãe d’Água (contação de histórias) e o próprio João Goulart.
Anunciávamos na programação o espetáculo “Natal em Cordel”, da Cia. de Artes Santa Ignorância – os 22 anos da trupe atestam que seu nome não é uma homenagem ao entorno de Jair Bolsonaro ou ao próprio. Um pouco antes do espetáculo, conversamos rapidamente com Lauande Aires, um dos três atores em cena. Um gigante, vindo do recente “Ensaio sobre a memória“, de Marcelo Flecha (Pequena Companhia de Teatro), homenageado pela 14ª. Semana do Teatro no Maranhão, realizada pelo Teatro Arthur Azevedo.
A trupe em cena se completa com Denia Correia e Juliana Cutrim, artistas versáteis, entre o teatro e a música, ambas com igual desenvoltura neste trânsito. A primeira com “Pé de tamarino“, um baita disco, na bagagem; a segunda, que encarna Marlene no musical “João do Vale: o gênio improvável“, dona de interpretações desconcertantes, a se valer dos recursos do canto lírico que estuda colocando-os a serviço da música e da cultura populares.
O cenário é enxuto mas basta para caracterizar as condições em que nasceu o Cristo; também merece destaque o figurino (assinado por Walisson Melo, da Quadrilha Matutos do Rei, de Açailândia). “Natal em cordel” tem texto, direção e música de Lauande Aires, a partir de contos recolhidos por Inês Belsky Lagazzi no livro “Natal: tradições, histórias e curiosidades da festa mais esperada”. Comovente, é, sem dúvida, um dos grandes espetáculos da temporada.
Lauande toca violão e sanfona em cena, Denia pilota a zabumba, Juliana o triângulo. Mas não estamos apenas diante de um trio de forró pé de serra. A patota traz para o nordeste a saga do nascimento de Jesus Cristo, todo contado (ou cantado) em versos. Estão presentes a relação com o sagrado e com o profano, pelas vias da devoção religiosa e da dança, num texto que dá conta também de preocupações com temas relevantes e contemporâneos como a preservação do meio ambiente, o consumismo e a fome no mundo.
Já nos agradecimentos, os atores se manifestam, sendo ainda mais aplaudidos, contra qualquer forma de censura e perseguição às artes e aos artistas, num recado direto a manifestações de reacionários recém-nomeados por Jair Bolsonaro no que deveria ser o equivalente ao extinto Ministério da Cultura brasileiro.
Parece que todo o contexto do espetáculo converge para a necessária reação que temos todos de ter diante da barbárie de fatos implantados.
Até o nome do edifício fez valer: João Goulart.