Ela arrancou as cordas da sua guitarra uma a uma. E ainda tentou tocá-la depois de destroçar o instrumento. Era como se extirpasse demônios.
“Sejam fortes”, disse Patti Smith antes de sumir pelo fundo do palco ao final de tudo.
E nós estávamos lá, pensando alto: como essa mulher consegue ser tão doce e tão furiosa ao mesmo tempo? por que ela tem a idade dos avós de metade da plateia, 73 anos, e mesmo assim ela é mais inquieta que todos nós?
Patti Smith entrou já com o recado mais explícito que poderia ser dado a uma plateia de um País moralmente arrasado: abriu o show com um chamado à rebelião, People Have the Power, do disco Dream of Life (1988), dela e do guitarrista Fred Smith (1948-1994), que foi seu marido e pai de seus filhos. Todos os sentidos sendo subitamente despertados para o berro brilhante e justo da revolta, assim se desenhava a música. E o público entrava no encontro já se esgoelando nos versos do quase hit de Patti.
Poetas, seresteiros, guitarristas, cantoras, grafiteiros, artistas do lambe-lambe: estavam todos lá. Um rapaz vestia uma camiseta com os dizeres: “Jesus morreu pelos pecados de alguém, mas não os meus”. Era o verso inicial de Gloria, a canção com a qual ela encerraria o show apoteoticamente, uma hora e 15 minutos depois. É um hino composto pelo irlandês Van Morrison em 1964 para sua banda Them (e posteriormente cantada pelos Doors, Hendrix, Bowie, AC/DC).
Mas, até a apoteose, quando até o som ficou mais alto e nítido, muita coisa aconteceu. Pela primeira vez no dia, o céu escuro começou a se abrir e nuvens brancas de algodão polvilharam o teto do Memorial, com num filme de Cecil B.deMille.
“Sonhar é bom, mas é preciso ser ativo”, disse Patti Smith, rodopiando sobre seus coturnos pretos desamarrados como os de Mario Bortolotto. Tem horas que a Patti sorri um sorriso de profunda compreensão para sua plateia, mas logo em seguida ela range os dentes e sua face tem uma expressão de desespero e indignação.
E quase todo o roteiro do show seguia uma ordem de premonições. Como quando ela cantou After the Gold Rush, de Neil Young. “Bem, sonhei que vi os cavaleiros de armadura chegando/Dizendo algo sobre uma rainha”.
Assim como Roger Waters no ano passado, Patti Smith sabe que está pisando em uma Nação que abriga ondas de fascismo e a autodestruição. Mas ela se preocupa principalmente com o que vai sobrar depois de toda a conflagração, daí a inclusão oportuna de Beds are Burning, do grupo australiano Midnight Oil, também recebida em coro pela audiência. “Como podemos dançar enquanto nossa Terra está girando? Como podemos dormir enquanto nossas camas estão queimando?”.
Todas as estradas do lado selvagem da rua estavam sem porteiras agora. Walk on the Wild Side, de Lou Reed, veio como um intermezzo ritual. Não foi Patti quem cantou, mas o violonista, guitarrista e tecladista Tony Shanahan. Poeta dos espaços abertos, Patti só cantou o refrão no final, voltando do fundo do palco.
Jay Dee Daugherty, na bateria de Patti Smith desde 1975, com um chapéu de pequenas cordilheiras no cocoruto, atuava como se fosse um Charlie Watts de firma de demolição. Lenny Kaye, guitarrista, amigo e sideman desde também 1974, ensinava algumas coisas básicas sobre elegância e fidelidade. Não se trata apenas de uma banda, mas de uma irmandade. Não se trata de um show, mas de uma conjunção de oferendas.
Pissing in a River (do disco Radio Ethiopia, de 1976) veio como a confirmação de que Patti estava ali, mais do que nunca, para exortar a uma retomada de consciência. Nenhuma novidade nisso, é o que ela faz desde sempre. “O que mais posso dar a você? Baby, não sei/O que mais posso dar a você para fazer isso crescer? Não vire as costas, estou falando com você”.
As pessoas se abraçavam, se olhavam demoradamente. Choramos também, evidentemente. Mas creio que todos voltamos para casa com as almas lavadas.