O carnaval propriamente dito se inicia na noite da sexta-feira 5, com um dilúvio de água e de gente reunida na praça da República para acompanhar o show não muito carnavalesco de Elza Soares e/ou o cortejo mais-que-carnavalesco do bloco percussivo feminino afrobrasileiro Ilú Obá de Min.
Como tem acontecido em cada novo ato, seja ou não institucionalizado pelo poder público, a multidão que superlota a República mesmo apesar da crise chuva torrencial desafia clichês erguidos no século passado: paulistanas e paulistanos gostam, sim, sinhô, e muito, de carnaval, samba, axé, funk, arrocha, tecnobrega, festa, beijo, pegação, convívio, chuva, suor & cerveja.
Em seu terceiro ano de desfile, o bloco Tarado ni Você madruga para iniciar os trabalhos do sábado de carnaval. Neste ano, o bloco ancorado em canções carnavalescas do baiano Caetano Veloso marcou o horário de concentração para as 10 horas da manhã, no cruzamento-clichê onde a avenida Ipiranga cruza com a avenida São João.
Radicado em São Paulo há dez anos, o fotógrafo baiano Thiago Borba, de 32 anos, é um dos três idealizadores do bloco, com o social artist mineiro Ricardo Guima, 34 anos, e a empresária paulista Raphaela Barcalla, 28 anos. Ele explica a mudança de horário do antes vespertino Tarado: “São Paulo é vista como uma cidade noturna. Agora a gente tem carnaval, e o carnaval também é de manhã, tem que acordar cedo pra ir. Os blocos que sabem do seu potencial de público têm que sair mais cedo, por uma questão de segurança, de infraestrutura”.
Afirmando não ver mais Salvador como uma opção de destino folião (“o carnaval lá se descaracterizou em muitos pontos”), o baiano Thiago reflete sobre as transformações vividas por sua cidade adotiva: “A gente passou um tempo em que diziam que São Paulo era o túmulo do samba, e nos últimos três anos a gente vive o contrário, saindo só dos carnavais de escola de samba, as ruas ganhando força”.
Thiago fala sem perceber de um possível efeito colateral do crescimento do carnaval paulistano, o desafogamento dos congestionamentos épicos nas rodovias de fuga da cidade: “As pessoas passaram a considerar São Paulo como uma possibilidade de passar carnaval. Elas se cansam de ter que ir pra um outro lugar pra curtir o carnaval, bancar uma viagem, sair de sua casa. Se nesse mesmo fluxo você oferece à cidade possibilidades legais de estar aqui, viver o carnaval no conforto de casa, isso é muito conveniente”.
Thiago vê a compreensão da gestão Fernando Haddad sobre o uso do espaço público como influenciadora da mudança: “Há quatro anos era ilegal botar um bloco na rua, a polícia de repente prendia. O Tarado nasceu no primeiro ano em que já era legitimada a saída dos blocos. O Tarado veio na onda desse reconhecimento de que, sim, tem que haver carnaval, é uma expressão popular, faz parte de uma cultura de identidade de uma cidade brasileira”.
Ele ensaia uma profecia, num pique mais Raul Seixas que Caetano Veloso: “São Paulo tem gente do Brasil inteiro, tem potencial para fazer o carnaval mais multicultural do país. Não tenho dúvida de que dentro de 5, 6 ou 7 anos o carnaval de São Paulo vai ser o mais incrível do Brasil, por essa mistura de culturas, de gente”.
Thiago celebra a legitimação identitária a que São Paulo resistia, mas já não resiste tanto assim: “A gente estava lá e o secretário municipal de Cultura veio no nosso trio, ver o que era isso. Quando a gente foi legitimado dessa forma? Os brasileiros e paulistanos que vivem essa rotina louca e não reconhecem o carnaval como uma identidade brasileira estão tendo que pagar a língua. A gente viveu anos de uma cidade totalmente opressora pras pessoas. Os espaços públicos eram fechados por grades, era uma cidade pensada para a opressão”.
Aqui, o discurso do fotógrafo passa a se comunicar com o da conterrânea Daniela Mercury: “Neste momento tudo está tendo que reabrir. A gente quer a rua. As pessoas não aguentam mais ficar encarceradas dentro de suas vidas, querem ter oportunidade de se relacionar. Essa mudança vai fazer de São Paulo uma cidade mais humana, mais gostosa de viver. A gente não precisa só de dinheiro pra viver, a gente precisa se conectar, se relacionar”.
Visto pela prefeitura como um “megabloco”, o Tarado hoje conta com infraestrutura e apoio institucional. “Houve suposições de que teríamos que bancar alguma infraestrutura junto à SPTuris, mas até o carnaval isso foi dissolvido. No final não tivemos custo nenhum com relação a trajeto ou isolamento de via”.
O trio elétrico de grande potência de som neste ano ganhou um carro de apoio, tudo patrocinado: “A gente tem uma banda de 16 pessoas tocando seis horas sem parar e não tinha banheiro pra ir durante o trajeto. Isso era um problema gigantesco que desta vez foi resolvido. Nos outros anos a gente se financiou por campanha de crowdfunding, mas neste ano a campanha não vingou, e acabamos cedendo a propostas de apoio e patrocínio”.
As marcas Amstel (de cerveja) e Chili Beans (de óculos de sol) venceram sob condições as resistências do grupo, segundo conta Thiago: “Tivemos propostas nos outros anos, mas eram marcas que queriam se apropriar da história, para ativar seus produtos de uma forma muito mais predatória. Desta vez entenderam que tinham que ser coadjuvantes, e não protagonistas da história”.
Num processo que lembra o da guerra fria entre taxistas e Uber, a avenida São João foi tomada por brindes oferecidos pela marca de cerveja, como frascos de purpurina e sacolinhas para carregar celular atado ao pescoço. No chão, a marca Uber (olha ela!) distribuía cintas isolantes térmicas para latas de cerveja a granel.
Espertas como o quê, as marcas ultracomerciais podem ser conservadoras, mas sabem identificar onde estão acontecendo as mudanças de comportamento. Embora hedonista em primeira instância, o Tarado ni Você participa da politização do carnaval paulistano pelo viés comportamental, da política do corpo, dos homens de saia, da emancipação masculina operada pelos devotos de São Caetano Veloso.
Observados de perto pelos bandeirantes colocadores de marcas, ciganas, caciques, comunistas & outros entes carnavalescos parecem integrantes de uma mesma nação indígena, embora divididos (e várias vezes misturados) entre tribos de identidades particulares como Tarado ni Você, Bloco Soviético, Ciga-Nos ou Ilú Obá. Os capítulos a serem escritos nos próximos anos dirão se São Paulo será a nova Bahia para as marcas ou se a cidade neocarnavalesca saberá caminhar por trilhos próprios e originais.
(Continua em Me Ocupa Que Sou da Rua + Gran Coqueluche = outras cidadanias; reportagem completa em Outros carnavais)