São Paulo recoloca seus blocos na rua e tenta se reinventar como lugar carnavalesco, de convívio humano e exercício de cidadania

1. Agora Vai (ou Não Vai?)

“Ocupa, ocupa, ocupa o Minhocão!” O grito de guerra em tom de ameaça é entoado repetidas vezes durante a passagem do bloco Agora Vai pelas imediações do Elevado Presidente Costa e Silva, entre Perdizes e a Barra Funda, em São Paulo, na tarde e noite da terça-feira de carnaval.

O conflito é iminente: todo ano, no final do carnaval, o bloco iniciado há 12 anos sai do largo Padre Péricles e sobe em cortejo ao Minhocão, que balança feito pinguela de madeira ao pula-pula da multidão. Neste ano, a Prefeitura de São Paulo interditou a subida, por questões de segurança (e determinação do Ministério Público), e o trajeto teve de se limitar ao chão firme.

Paulistanas e paulistanos se espremem ao lado da igreja do largo Padre Péricles, na passagem do bloco Agora vai - foto Pedro Alexandre Sanches
Paulistanas e paulistanos se espremem ao lado da igreja do largo Padre Péricles, na passagem do bloco Agora vai – foto PAS

Como é próprio deles e delas, foliãs e foliões ameaçam a desobediência civil. Do anoitecer em diante, chegam recorrentes rumores de que a tribo dos Agora Vai vai invadir o interditado: “Ocupa, ocupa, ocupa o Minhocão!”, ou, entre os mais exaltados, “não tem arrego!”.

Ameaçamos, mas acabamos por não invadir, mobilizados pelos organizadores do bloco que pedem ao microfone que as regras sejam respeitadas e/ou talvez por alguma outra força estranha maior do que essa.

A cidade antes tida como anticarnavalesca por excelência parece viver momentos de consolidação civilizatória. Os índios não perpetramos o ataque, os bandeirantes não são compelidos a acionar os sempre presentes carros estaduais da Polícia Militar, que zunem pisca-piscas maiores que as fantasias folionas, mas não excedem limites.

O acordo tácito se faz: vocês nos concedem o benemérito de um pouco de alegria e cidadania, nós devolvemos a dádiva em forma de obediência e um pouco de folia. Ninguém pode se dizer 100% ou 99% feliz, mas é evidente a olhos nus que os teores de alegria, quiçá felicidade, se alastram pela cidade velha. E a cidade velha, menina, ela não parece mais a mesma com que estávamos acostumadas.

Habitada por índios e bandeirantes e seus mestiços e outras gentes, a cidade rotineiramente brutalizada vive dias incomuns, de pacificação e de confluência incomum de interesses e/ou desejos.

Durante o carnaval de 2016, paulistaníssimos manifestantes anonymous, black blocs e de cara descoberta desaparecem transitoriamente, ativistas de sofá mantêm a militância virtual e uma outra massa humana surge do nada, como se aqui fosse a Bahia, Rio de Janeiro ou Pernambuco, menos São Paulo.

O vai-não-vai do Agora Vai sobre o Minhocão encerra com algum nível de tensão os festejos oficiais, mas a história do carnaval paulistano de 2016 começou antes, mais precisamente no domingo de 24 de janeiro, um dia antes do 462º aniversário da menina cidade velha habitada por índios, bandeirantes, africanas e outras gentes de todo gene e de todo canto do mundo.

2. A Rainha Má: por que vocês não gostam de ser vocês?

Para 2016, a prefeitura paulistana programou três dias de celebração pelo aniversário da cidade. No miolo, um domingão de pancadas de chuva aninhado entre um sábado quente e uma segunda-feira feriadona, o trio elétrico da cantora e compositora baiana Daniela Mercury precipita o carnaval que tradicionalmente só começaria em fevereiro, ou nem sequer começaria, em se tratando de (não existe amor em) SP.

Daniela Mercury
Daniela Mercury fecha a avenida Rebouças para os carros e a abre para pedestres, ciclistas, skatistas etc — foto divulgação Prefeitura de São Paulo

A demanda reprimida (como diriam os mercadistas) arrasta uma infinidade de gente às avenidas Brigadeiro Faria Lima, Rebouças, Brasil, Henrique Schaumann, Paulista, Consolação. Daniela chorou diversas vezes ao longo do trajeto que durou cerca de sete horas  – e ainda chora dias depois, ao telefone, ao relembrar a experiência: “Era um sonho meu de muitos anos, e foi melhor que meus melhores sonhos. Abrir um circuito na Rebouças de uma maneira tão mágica, tão doce, é completamente particular. Foi como a primeira vez que desci pra Barra, em Salvador”.

Com 5o anos de idade e 35 de música profissional, Daniela desfia emoções que se renovam: “Não só em São Paulo, mas em qualquer grande cidade, as pessoas trabalham muito, são muito tensas, estressadas. Os shows na rua e o carnaval são fantásticos para reunir as tribos todas da cidade, que ficam o ano todo separadas. Foi o que aconteceu quando eu subi a Rebouças. Um dos presentes mais lindos que recebi na vida foi a emoção de ver tanta gente em paz, dançando, se aproximando”.

Da experiência, Daniela parte para a filosofia: “As pessoas vivem de janelas fechadas em São Paulo. Essas festas são muito importantes para as pessoas se verem, saberem quem mora naquele lugar, conviverem. O carnaval dá lições espetaculares de convivência. Quisera a vida no cotidiano tivesse a mesma harmonia e as mesmas afirmações de identidade que o carnaval tem, da negritude, dos pacifistas, da diversidade sexual, da liberdade de se vestir como quiser e ser quem quiser. Ninguém se sente mal ali. Por que durante o ano a gente hierarquiza tanto as emoções, se separa tanto?”.

A cantora que nos anos 1990 se ergueu como um ícone comercial/industrial da axé music hoje brinca com um alter ego artístico de “rainha má”. “Digo que sou a rainha má porque sou mulher de andar de trio, não sou uma mulher que espero o trio passar por cima nem me coloco no lugar em que a sociedade me botou, desde menina: eu ocupo meu lugar.” O discurso atual finca bandeiras politizadas sobre a cidade velha e sobre o gênero musical já antigo, quase tradicional. Uma militante?

“Eu sempre fui, eu sempre fui”, ri. “Fui criada com ‘vem, vamos embora que esperar não é saber’, com ‘é proibido proibir’. Fui criada num país sorumbático, coberto, escuro, triste, que viveu sem respirar a luz da liberdade’, reflete, referindo-se à ditadura civil-militar que ruiu em meados dos anos 1980.

“É lógico que isso se reflete, a gente vai ficando coberta por outras coisas, pela grana que ergue e destrói coisas belas. O povo brasileiro fala muito mal de si. Se os brasileiros não gostam se ser indígenas, portugueses, africanos, quem são os brasileiros então? Por que vocês não gostam de ser vocês?”, indaga, ecoando artifícios cênicos da “rainha má” e perguntas que paulistas e paulistan@s nem sempre se fazem.

Vivendo uma relação amorosa fora de armários quaisquer com a jornalista baiana Malu Verçosa, Daniela ganha o afeto particular da população que conclama as diversidades sexuais e apura a reflexão sobre as questões identitárias, análogas àquelas que perpassam a cidade de São Paulo, o carnaval e a existência de qualquer ser humano: “O carnaval é tão profundo, é profundo de todas as maneiras. O carnaval nunca foi pão e circo, isso é outra coisa. O carnaval é uma coisa nascida de nós. Não foi ninguém que nos deu, foi a gente que fez”.

Falando de identidade, Daniela parece falar sobre a cidade que o rapper do Grajaú Criolo dizia carente de amor: “O mais legal do carnaval são as traduções de nós mesmos, as expressões. Cada bloquinho que vem é um grupo de pessoas falando de si, falando o que pensa. Isso é fantástico. Tentam arrumar e organizar o carnaval, mas o inconsciente humano não é organizável. Graças a Deus, ou melhor, graças a nós, a gente é o que é, e ninguém tem como conter isso. É transparência. Fazer carnaval na rua é enxergar a cidade mais que qualquer pesquisa que se faça”.

A festa e o ativismo se encontram e se entrelaçam no discurso cidadão da cantora de “Swing da Cor” (1991), “O Canto da Cidade” (1992) e “Música de Rua” (1994): “A gente não precisa ir pras ruas falar o que a gente quer só com cartazes e palavras de ordem. A gente pode falar o que a gente quer com músicas. O carnaval tem o mesmo peso das manifestações de rua, é engraçado que esse acordar está acontecendo paralelamente. O mesmo espaço urbano se usa para dizer o que se quer em reivindicações políticas e em manifestações artísticas, que dizem com arte, fantasia, atitudes, brincadeiras, paródias”.

Estaríamos falando, ainda aqui, de um ganho de cidadania, de algo que pudesse percorrer os dias de carnaval que ainda estavam por vir? Os foliões seriam os silvícolas que “atrapalhavam” os civilizadores que vieram do frio? Ou seriam artífices de uma outra civilização, moldada segundo suas próprias e originais identidades?

3. Ciga-Nos, Bloco Soviético: identidade e paródia

No sábado pré-carnavalesco de 30 de janeiro, a cidade velha acorda ensolarada e festiva. Apenas nesse fim de semana, a Prefeitura contabilizará oficialmente 410 mil foliões seguindo prováveis duas centenas de blocos, ainda concentrados mais no centro expandido da cidade que em suas gigantescas periferias. Daí até os últimos blocos pós-carnaval, no sábado 13 e no domingo 14, o órgão público contará 2 milhões de brincantes, em mais de 350 blocos. Para quem está vivendo o carnaval nas ruas, parece que muito, muito, muito mais gente na rua, de dia e de noite.

De volta ao sábado 30 de janeiro, a grande feira das identidades encontra guarida em experiências como o bloco Ciga-Nos, que singra o centro velho da cidade velha harmonizando tradição (músicas ciganas, evolução de mulheres vestidas em trajes típicos) e ressignificação (banda jovem executando músicas de feições tradicionais, trajes híbridos das pré-foliãs e pré-foliões).

Alegorizando o nomadismo dos povos ciganos (e/ou, quiçá, dos índios brasileiros e latino-americanos tantas vezes ditos extintos, embora amplamente misturados e disfarçados na paisagem humana), o bloco acompanha o crescimento dos blocos paulistanos nos últimos quatro anos, propulsionado em 2013 pela gestão do baiano Juca Ferreira, então ex e futuro ministro da Cultura, na secretaria municipal de Cultura.

Acompanhando os Ciga-Nos do asfalto, misturado a qualquer um de nós, está o substituto de Juca na secretaria municipal, Nabil Bonduki, também visto horas antes zanzando pelo Bloco Soviético, um folguedo que há quatro anos vem confundindo cabeças paulistanas tanto no campo dito conservador quanto no campo dito progressista.

A partir de um trocadilho que solda decaídos regimes comunistas fechados com anárquicos festejos brasileiríssimos, o grupo começou mambembe, usando carrinhos de supermercado ou caçamba de automóvel como centros irradiadores de som para uma massa de início tímida e reduzida. Neste ano, pela primeira vez, o Soviético conta com um minitrio elétrico, que não chega a tirar o aspecto mambembe da passeata carnavalesca: o carro inicialmente contratado não chegou, teve de ser substituído às pressas e causou duas horas de atraso ao desfile pelas ruas de Consolação, Higienópolis e Santa Cecília.

Procurado por esta reportagem, o bloco remete a resposta-padrão a todos os pedidos de jornalistas: não dá entrevistas ao PIC, Partido da Imprensa Capitalista (a paródia, aqui, é ao costume entre as esquerdas de apelidar a imprensa comercial conservadora do Brasil de PIG, Partido da Imprensa Governista).

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O Bloco Soviético evolui por Consolação-Higienópolis-Santa Cecília, sem tirar selfie com a polícia – foto Igor Silva

A comunidade de amig@s se diverte vestida de vermelho e cantando paródias de marchinhas tradicionais forradas de slogans de esquerda proferidos de modo irônico (ou não?). A histórica “Mulata Bossa Nova” se transformou no grande hit do Bloco Soviético em 2016, “Reaça Escravocrata”: “Reaça escravocrata/ saiu na passeata/ mas que delícia/ ieieiê, ieieiê ie-iê/ selfie com a polícia”.

Do alto do minitrio, a compositora Cilmara Bedaque, uma das fundadoras do bloco com a companheira Vange Leonel (que morreu em 2014), reage aos ataques sofridos pelo Soviético (muitos deles involuntariamente cômicos): “Querem nos xingar de bicha, maconheiro, sapatão, gorda, feia, velha. Não é xingamento, porque muitos de nós somos isso mesmo, e daí?”.

Ecoam, aqui, as indagações que Daniela Mercury tem aplicado ao carnaval baiano desde que o samba é samba: se brasileiros não gostam se ser indígenas, portugueses, africanos, bichas, maconheiros, sapatões, feias, gordos, velhas, quem são os brasileiros então? Por que, afinal de contas, nós não gostamos de ser nós mesmos?

Ainda que confundindo corações e mentes à direita, à esquerda, ao centro e nas fileiras da Rede Sustentabilidade, o carnaval do Bloco Soviético acrescenta pitadas políticas ao mais puro folguedo. Com alguns sinais de desespero no semblante, @s integrantes descobrem, ano a ano, que seu comportamento tipo esquerda festiva, mesmo implícito e por vezes enigmático, é compreendido por cada vez mais gente, causa empatia em cada vez mais gente.

Nesse domingo pré-carnavalesco de 30 de dezembro, atrai outra multidão às portas do bar e restaurante Tubaína. Mesmo com o atraso e a falta de som, o mar de gente não arreda pé e enlouquece a comissão organizadora ao longo do desfile, pela necessidade de autogerenciamento diante da ausência de apoio da Companhia de Engenharia de Tráfego (CET).

Suada e cansada, aprendendo de pouco em pouco a se reapropriar do espaço (que nunca deveria ter deixado de ser) público, a torcida paulistana inteira grita e se pergunta: carnaval também pode ser passeata?, manifestação também pode ser celebração?, crítica social enigmática pode ser assimilada pelo povão e pelas massas cheirosas?

4. Tarado ni Você: acorda cedo, menina!

O carnaval propriamente dito se inicia na noite da sexta-feira 5, com um dilúvio de água e de gente reunida na praça da República para acompanhar o show não muito carnavalesco de Elza Soares e/ou o cortejo mais-que-carnavalesco do bloco percussivo feminino afrobrasileiro Ilú Obá de Min.

Como tem acontecido em cada novo ato, seja ou não institucionalizado pelo poder público, a multidão que superlota a República mesmo apesar da crise chuva torrencial desafia clichês erguidos no século passado: paulistanas e paulistanos gostam, sim, sinhô, e muito, de carnaval, samba, axé, funk, arrocha, tecnobrega, festa, beijo, pegação, convívio, chuva, suor & cerveja.

Em seu terceiro ano de desfile, o bloco Tarado ni Você madruga para iniciar os trabalhos do sábado de carnaval. Neste ano, o bloco ancorado em canções carnavalescas do baiano Caetano Veloso marcou o horário de concentração para as 10 horas da manhã, no cruzamento-clichê onde a avenida Ipiranga cruza com a avenida São João.

No início da tarde do sábado de carnaval, o Tarado ni Você atravessa o cruzamento da avenida São João com a rua Vitória - foto Victor Moriyama
No início da tarde do sábado 6, o Tarado ni Você atravessa o cruzamento da av. São João com a r. Vitória – foto Victor Moriyama

Radicado em São Paulo há dez anos, o fotógrafo baiano Thiago Borba, de 32 anos, é um dos três idealizadores do bloco, com o social artist mineiro Ricardo Guima, 34 anos, e a empresária paulista Raphaela Barcalla, 28 anos. Ele explica a mudança de horário do antes vespertino Tarado: “São Paulo é vista como uma cidade noturna. Agora a gente tem carnaval, e o carnaval também é de manhã, tem que acordar cedo pra ir. Os blocos que sabem do seu potencial de público têm que sair mais cedo, por uma questão de segurança, de infraestrutura”.

Afirmando não ver mais Salvador como uma opção de destino folião (“o carnaval lá se descaracterizou em muitos pontos”), o baiano Thiago reflete sobre as transformações vividas por sua cidade adotiva: “A gente passou um tempo em que diziam que São Paulo era o túmulo do samba, e nos últimos três anos a gente vive o contrário, saindo só dos carnavais de escola de samba, as ruas ganhando força”.

Thiago fala sem perceber de um possível efeito colateral do crescimento do carnaval paulistano, o desafogamento dos congestionamentos épicos nas rodovias de fuga da cidade: “As pessoas passaram a considerar São Paulo como uma possibilidade de passar carnaval. Elas se cansam de ter que ir pra um outro lugar pra curtir o carnaval, bancar uma viagem, sair de sua casa. Se nesse mesmo fluxo você oferece à cidade possibilidades legais de estar aqui, viver o carnaval no conforto de casa, isso é muito conveniente”.

Thiago vê a compreensão da gestão Fernando Haddad sobre o uso do espaço público como influenciadora da mudança: “Há quatro anos era ilegal botar um bloco na rua, a polícia de repente prendia. O Tarado nasceu no primeiro ano em que já era legitimada a saída dos blocos. O Tarado veio na onda desse reconhecimento de que, sim, tem que haver carnaval, é uma expressão popular, faz parte de uma cultura de identidade de uma cidade brasileira”.

Ele ensaia uma profecia, num pique mais Raul Seixas que Caetano Veloso: “São Paulo tem gente do Brasil inteiro, tem potencial para fazer o carnaval mais multicultural do país. Não tenho dúvida de que dentro de 5, 6 ou 7 anos o carnaval de São Paulo vai ser o mais incrível do Brasil, por essa mistura de culturas, de gente”.

Thiago celebra a legitimação identitária a que São Paulo resistia, mas já não resiste tanto assim: “A gente estava lá e o secretário municipal de Cultura veio no nosso trio, ver o que era isso. Quando a gente foi legitimado dessa forma? Os brasileiros e paulistanos que vivem essa rotina louca e não reconhecem o carnaval como uma identidade brasileira estão tendo que pagar a língua. A gente viveu anos de uma cidade totalmente opressora pras pessoas. Os espaços públicos eram fechados por grades, era uma cidade pensada para a opressão”.

Pouca gente acompanhou os novos tropicalistas paulistanos do Tarado ni Você - foto Victor Moriyama
Pouca gente acompanhou os novos tropicalistas paulistanos do Tarado ni Você – foto Victor Moriyama

Aqui, o discurso do fotógrafo passa a se comunicar com o da conterrânea Daniela Mercury:. “Neste momento tudo está tendo que reabrir. A gente quer a rua. As pessoas não aguentam mais ficar encarceradas dentro de suas vidas, querem ter oportunidade de se relacionar. Essa mudança vai fazer de São Paulo uma cidade mais humana, mais gostosa de viver. A gente não precisa só de dinheiro pra viver, a gente precisa se conectar, se relacionar”.

Visto pela prefeitura como um “megabloco”, o Tarado hoje conta com infraestrutura e apoio institucional. “Houve suposições de que teríamos que bancar alguma infraestrutura junto à SPTuris, mas até o carnaval isso foi dissolvido. No final não tivemos custo nenhum com relação a trajeto ou isolamento de via”.

O trio elétrico de grande potência de som neste ano ganhou um carro de apoio, tudo patrocinado: “A gente tem uma banda de 16 pessoas tocando seis horas sem parar e não tinha banheiro pra ir durante o trajeto. Isso era um problema gigantesco que desta vez foi resolvido. Nos outros anos a gente se financiou por campanha de crowdfunding, mas neste ano a campanha não vingou, e acabamos cedendo a propostas de apoio e patrocínio”.

As marcas Amstel (de cerveja) e Chili Beans (de óculos de sol) venceram sob condições as resistências do grupo, segundo conta Thiago: “Tivemos propostas nos outros anos, mas eram marcas que queriam se apropriar da história, para ativar seus produtos de uma forma muito mais predatória. Desta vez entenderam que tinham que ser coadjuvantes, e não protagonistas da história”.

Num processo que lembra o da guerra fria entre taxistas e Uber, a avenida São João foi tomada por brindes oferecidos pela marca de cerveja, como frascos de purpurina e sacolinhas para carregar celular atado ao pescoço. No chão, a marca Uber (olha ela!) distribuía cintas isolantes térmicas para latas de cerveja a granel.

Espertas como o quê, as marcas ultracomerciais podem ser conservadoras, mas sabem identificar onde estão acontecendo as mudanças de comportamento. Embora hedonista em primeira instância, o Tarado ni Você participa da politização do carnaval paulistano pelo viés comportamental, da política do corpo, dos homens de saia, da emancipação masculina operada pelos devotos de São Caetano Veloso.

Observados de perto pelos bandeirantes colocadores de marcas, ciganas, caciques, comunistas & outros entes carnavalescos parecem integrantes de uma mesma nação indígena, embora divididos (e várias vezes misturados) entre tribos de identidades particulares como Tarado ni Você, Bloco Soviético, Ciga-Nos ou Ilú Obá. Os capítulos a serem escritos nos próximos anos dirão se São Paulo será a nova Bahia para as marcas ou se a cidade neocarnavalesca saberá caminhar por trilhos próprios e originais.

5. Me Ocupa Que Sou da Rua + Gran Coqueluche = outras cidadanias

São 23h do sábado de carnaval. Uma multidão se concentra em frente às escadarias do Theatro Municipal, ao som de muita música brasileira e latino-americana, para o que muitos de nós só agora nos damos conta ser uma surpreendente novidade: autodefinido como o primeiro bloco da madrugada paulistana, o Me Ocupa Que Sou da Rua vai desfilar em horário “proibido”, depois que o poder público local já empreendeu todos os esforços para encerrar o barulho do dia.

Como foi possível driblar conflitos como os que têm acontecido entre moradores e foliões nos carnavais da Vila Madalena? “Com relação ao poder público, podemos dizer que nosso bloco, para além da nossa vontade, se encontra ilegal, fora da lei”, reconhece um dos organizadores do Me Ocupa, Cesar Paciornik. Ele explica:

“Não que assim quiséssemos, mas o regramento que a prefeitura estabeleceu para o convívio pacífico e harmônico dos blocos respeitou não entrar em conflito com outras leis, como a do Psiu. Como o intuito do nosso bloco é propor uma reflexão sobre o uso do espaço público, sem abrir mão do lúdico, nós trabalhamos para que a existência do bloco não gerasse tensões com o poder público e para que o poder público. O centro antigo, com seus prédios comercias vazios, eliminaria a questão do Psiu.”

Cantando e tocando umas poucas marchinhas num carro de som de baixa potência, o bloco é seguido por uma multidão num trajeto que inclui a praça Ramos de Azevedo, o viaduto do Chá, a praça do Patriarca, os calçadões nas proximidades da praça da Sé. Nos detalhes, foliãs e foliões mais atentos vão percebendo que há algo mais no ar além de diversão e farra.

Cesar explica a trajetória do grupo: “O bloco nasceu da vontade de ser uma brincadeira entre amigos que gostam de carnaval de rua e do sentido democrático que essa modalidade de uso da cidade permite. Grande parte dos amigos desse grupo fazem parte de um coletivo chamado Coletivo Arrua, que desde outubro de 2012 pensa a questão do direito à cidade, de um uso mais libertário, humanizado, democrático e horizontal pelos moradores. Temas como mobilidade, fim da violência policial e uso dos equipamentos públicos eram algumas das pautas”.

Durante o cortejo, o cantor no carrinho de som dá ênfase total à campanha contra o assédio às mulheres durante o carnaval, sintetizada pela sentença “não é não”. “Respeita as minas!”, ele repete incansavelmente, aqui e ali ampliando o desafio para, também, “respeita os manos!”.

Cesar define o festejo ativista como um diálogo com “a São Paulo que desejamos”: “uma cidade realmente democrática, de usos diversos e que rompa com os paradigmas e contradições que alimentaram a cidade entre os anos de 2008 e 2012 com uma aura de ‘cidade proibida’. O nome Me Ocupa Que Sou da Rua nasce do desejo que temos de que a cidade seja de fato ocupada, usada, vivida. Que as ruas não sejam somente espaço de deslocamento, mas também de permanência”.

O espetáculo coletivo produzido pelo bloco e pelos seguidores que souberam de sua existência tem algo de terapia de choque. Na madrugada do domingo, os prédios do centro histórico da cidade velha não emanam nenhuma luz, nem há cidadãos andando para lá e para cá fora dos domínios do cortejo. Ou melhor, há, sim, cidadãs e cidadãos que habitam o local e estão sendo acordad@s em suas camas pelo carnaval extra-Psiu. São os integrantes do bloco do povo das ruas, enfileirados nos calçadões sobretudo da praça do Patriarca, que vão despertando conforme o som do bloco se aproxima.

Cada nova solução cria outros problemas, e Cesar explica o comportamento do bloco em relação aos sem-teto: “Os moradores em situação de rua também receberam nosso olhar. Um grupo da organização saiu antes de o bloco se movimentar, observando se a nossa presença disputaria com os espaços que já estavam sendo ocupados por eles. O objetivo era não entrarmos em disputa ou desrespeitar a permanência de quem já estava ocupando o local”.

Há, segundo ele, alguma adesão por parte da população sem-teto: “Contamos também com a espontaneidade da ajuda e participação desses moradores. Para além de dançarem e se integrarem ao bloco como foliões, foram incorporados à organização que conta com cerca de 30 pessoas, para ajudar no trajeto, criando entre eles próprios, segundo nossa percepção, um sentido de pertencimento com a festa. Somos um bloco libertário, feminista e democrático e trabalhamos ao longo do trajeto conscientizando participantes a respeitarem esses valores de convívio”.

Cada tribo indígena com suas etnias, cada bloco carnavalesco com suas peculiaridades: há o exemplo do bloco nômade e sem nome que não quer crescer, nem ficar famoso, nem arrastar multidões que se tornem opressivas e opressoras para a coletividade. Neste ano ele se chama Gran Coqueluche, pode ser que volte ano que vem sob outra identidade. Esse acende a fornalha às 16h da segunda-feira de carnaval, também em frente ao Theatro Municipal, com seção sonora modesta e poucas dezenas de desfilantes vestidos de verde.

O núcleo duro é constituído por três integrantes que tomam as principais decisões, definem o tema e o figurino etc.: a tradutora Marcela Vieira, a estilista Valentina Soares e o artista plástico Wallace Masuko.

Marcela conta a história: “O bloco começou em 2014, como Lambuza Lambida, cujo tema era ‘Idade Média’. A partir desse momento percebemos que, para não nos popularizarmos, seria interessante mudar de nome, tema e cores a cada vez, na tentativa de continuarmos sendo um bloco pequeno e despojado de grandes orçamentos. Em 2015 fomos o Rufos y Bufos, com o tema ‘Arca de Noé’, e, neste ano, o Gran Coqueluche. Nossa proposta é a de sempre recomeçar, também com a linguagem da fantasia e dos recursos que utilizamos”.

Há, sempre, uma pegada política nos enredos do núcleo. “Os temas escolhidos nesses três anos estavam em pleno acordo com o cenário do momento”, diz Marcela. “Em 2014 foi a Idade Média, quando se colocavam em questão decisões políticas de ultradireita e conservadoras. Em 2015, a Arca de Noé, quando São Paulo passava por uma de suas maiores crises hídricas. Agora, o contágio e a infestação da coqueluche em um circo de bacilos, sem esquecer do alastramento de doenças como dengue e zika”.

Marcela dá a senha que talvez tenha sido percebida desde os antigos carnavais cariocas, e com a qual a sempre figadal São Paulo historicamente não se relaciona bem: “‘É bom lembrar que, ainda que as críticas estejam implícitas, preferimos que elas não se tornem literais: a relação está aí para que as pessoas façam, ou não”. Eis o ovo de Colombo: sem frascos de vinagre para cá e bombas de gás lacrimogêneo para lá, a festa hedonista também pode ser revolucionária.

O tom crítico não deixa de permear tampouco o discurso de Marcela: “A ênfase do bloco é estar na rua, divertir-se aí. Tememos a institucionalização do carnaval, e essa ameaça sempre existe. Neste ano, por exemplo, a nova instrução é a do uso de cavaletes, por aluguel terceirizado, para o controle do tráfego pela CET. A nosso ver, deveriam ser o próprio CET e a Prefeitura os responsáveis pela disponibilização do material. Um outro exemplo é a da marca Amstel ‘patrocinando’ o carnaval. A presença de ambulantes vendedores de cerveja é proibida em blocos, com exceção dos representantes da marca”.

Ainda nesse diapasão, o diferencial da versão 2016 do Bloco-Que-Muda-de-Nome está na participação de uma bateria que desafia os conceitos daqueles que têm o carnaval como gororoba anestesiadora das consciências. “Neste ano, contamos com a presença da bateria da Coração Valente do Recomeço da Cracolândia, que corresponde a um projeto de assistência a ex-usuários de crack”, descreve Marcela.

A Blocolândia se soma à diversão caseira do bloco Gran Coqueluche
A bateria Coração  Valente do Recomeço da Cracolândia se soma à diversão artesanal do bloco Gran Coqueluche – foto PAS

“Chegamos à bateria por meio de um amigo, Dudu Quintanilha, que trabalha no Complexo Prates, um abrigo de assistência a um público carente: moradores de rua, dependentes químicos etc. O Dudu nos convidou a fazer uma oficina de fantasias com o grupo que ele acompanha, o Mexa, formado por transexuais que se encontram nessas situações. Pela necessidade de encontrarmos uma bateria, Dudu se disponibilizou a fazer o contato com a bateria Coração Valente, que, até onde eu sei, ensaia o ano inteiro e tem um bloco, o Blocolândia“, conta Marcela.

Espontaneamente, Me Ocupa Que Sou da Rua e Gran Coqueluche representam faces distintas de uma mesma moeda, que talvez pudesse se chamar cidadania. O primeiro bloco leva vida passageira para o abandono noturno do centro da cidade “proibida”. O segundo traz para a luz a parte dessa mesma cidade que a sociedade se esforça por relegar à escuridão, ao anonimato e à marginalidade.

Do mainstream de Daniela Mercury à folia esquerdista do Bloco Soviético, o carnaval é d@s marginalizad@s apenas para que digam, ou melhor, digamos quem somos: gente como qualquer outra gente, com direito a dignidade, a voz, a cidadania, à luz do dia.

Invenção brasileira da maneira como o conhecemos e reconhecemos, o carnaval disse alto em 2016 que também pode ser – e é – paulistano e paulista, sim, senhora. Enquanto os desfiles das escolas de samba passavam engessados pela tela da TV, a revolução cidadã não precisava de tiro, faca ou bomba para evoluir e avisar que está diariamente nas ruas, 365 dias por ano, em São Paulo e em qualquer cidade, roça e tribo do Brasil.

 

(Nota da edição: o relato exposto acima é resultado do trajeto algo errático de apenas um repórter; FAROFAFÁ convida toda foliã e todo folião do carnaval paulistano de 2016 a acrescentar aqui sua própria experiência nas ruas da cidade.)

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2 COMENTÁRIOS

  1. Achei interessantíssimo essas iniciativas pelo centro, buscando a reocupação do espaço por quem já são donos do pedaço e esquecidos ou ignorados por grande parte dos paulistanos. No entanto, discordo um pouco dessa noção de retomada do Carnaval em SP, como se até pouco tempo atrás ele simplesmente não existisse. Há, de fato, uma reviravolta no posicionamento da Prefeitura para encarar os blocos na rua como algo positivo e não como alvo de repressão. Mas é possível perceber que na lista dos grupos que saíram para a folia, poucos têm mais de 5 ou 6 anos. Vou além: é raro a ligação entre tais blocos e as tradicionais manifestações atreladas ao Carnaval (o samba e suas vertentes).

    Cito como contraponto alguns sobreviventes de décadas, independentemente de prefeito, chuva ou sol. O Sovaco de Cobra, na Casa Verde, tem 40 anos e foi fundado pelo Seo Carlão do Peruche. O Bloco da Ressaca, no Cambuci, completou 30 verões neste ano e é o cúmulo da democracia festiva (traz banda de marchinhas, escola de samba e até um trio elétrico com axé, funk e sertanejo). Todos eles com pouco ou nenhum apoio de poder público, mídia – das reacionárias e das ditas progressistas – e principalmente dos tais foliões. O motivo? Não são “da moda”, não dão status em redes sociais e, portanto, são solenemente ignorados.

    O resultado disso é similar ao processo que infestou as escolas de samba – outro vetor igualmente desprezado por grande parte dos paulistanos e que faz Carnaval o ano todo -, com estéticas e valores cada vez mais distantes de sua origem popular. Assim, vejo que é necessário fazer a reflexão sobre a perda da espontaneidade na festa atual em favorecimento a uma forte tendência mercadológica. Até porque cliente, ao contrário de aficionado, é bastante volúvel e intolerante à criação de vínculos mais profundos.

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