"Obra Viva de Hermeto Pascoal - Volume 1: Flautas" - capa: reprodução
"Obra Viva de Hermeto Pascoal - Volume 1: Flautas" - capa: reprodução

O músico Hermeto Pascoal (1936-2025) faleceu no último dia 13 de setembro, reconhecido como um dos mais importantes nomes da música brasileira em todos os tempos. Compositor, arranjador e multi-instrumentista, deixou um legado ainda difícil de mensurar e é influência definitiva e confessa de muitos nomes surgidos em seu rastro.

O baú de Hermeto Pascoal começa a ser revelado e dar amostra desta dimensão com o lançamento, hoje (10), do primoroso “Obra Viva de Hermeto Pascoal – Volume 1: Flautas”, cujo repertório é composto de peças inéditas, escritas pelo “bruxo” para diversas formações do instrumento entre 1982 e 1985.

Aline Gonçalves, Eduardo Neves, Carlos Malta e Andrea Ernest Dias, o Quarteto "Hermético" - foto: Thiago Pozes/ divulgação
Aline Gonçalves, Eduardo Neves, Carlos Malta e Andrea Ernest Dias, o Quarteto “Hermético” – foto: Thiago Pozes/ divulgação

O time de flautistas escolhidos para dar vida ao trabalho, inclui Carlos Malta (que integrou o Grupo de Hermeto Pascoal por mais de uma década), Aline Gonçalves (seis anos na Itiberê Orquestra Família, liderada pelo baixista Itiberê Zwarg, sideman de Hermeto por meio século e seu principal discípulo), Andrea Ernest Dias (uma das mais versáteis flautistas brasileiras, figura em inúmeras fichas técnicas de álbuns da MPB e integra o Pife Muderno de Carlos Malta desde sua fundação; à sua mãe Odette Ernest Dias é dedicada a “Suíte mundo bom”) e Eduardo Neves (do Pagode Jazz Sardinha’s Club, também discípulo de Malta — e Hermeto).

“Estou muito feliz de estar saindo este álbum. Essas músicas foram compostas na minha época [quando ele integrava o Grupo de Hermeto Pascoal]. Vez por outra tinha dois, três flautistas visitando a casa, o ensaio e a gente botava essas músicas na roda, algumas delas. O Hermeto as escreveu em determinadas situações, festival de flautas, [o flautista] Celso Woltzenlogel encomendou para ele a música das 10 flautas. Os duetos eu tocava com o Jovino [Santos Neto, flautista, que assina o texto do encarte do álbum] direto, a gente emendava um no outro. Todo esse material é de uma originalidade, de uma atemporalidade, eu acho que é um negócio que daqui a 300 anos vai soar moderno como hoje, muito arrojado, uma escrita muito hermética, muito Hermeto. Tanto que a gente batizou o quarteto de Flautas Herméticas, que a gente vai estrear amanhã (11), no Circo Voador. Estou muito feliz de estar participando deste lançamento”, revela Carlos Malta.

Além do quarteto mágico, comparecem à ficha técnica, também com méritos de sobra, o saxofonista Marcelo Martins, o trombonista Rafael Rocha e o pianista Marcelo Galter. A direção artística é do guitarrista Bernardo Ramos (que também integrou a Itiberê Orquestra Família). A soma destes talentos garante execução impecável do repertório inédito de Hermeto Pascoal, valorizando a qualidade das composições e o rigor de seu autor, a seriedade com que encarava o ofício, embora muitas vezes visto apenas como um performer (o que também era, quem o viu ao vivo em um palco sabe do que falo) ou um excêntrico.

“Amigo Sion” foi composta em 1982 e arranjada por volta de 1985; os duos de flauta são de 1983; e todo o restante do repertório foi escrito em 1984. Hermeto Pascoal não intitulou as obras, que, para este registro, ganharam títulos descritivos, não necessariamente sugerindo uma cronologia.

“Líricas, agrestes, camerísticas, livres, parecidas com nada nesse mundo a não ser o próprio mundo que inventam”, sentencia o diretor artístico Sylvio Fraga, no texto da contracapa, referindo-se ao impacto de ouvir ““Auriana” e “Vou esperar”, peças para flauta gravadas no LP “Cérebro magnético” (1980)” e seu “desejo”, agora realizado, “enorme de ouvir mais músicas do Hermeto em formato parecido” — foi também a Rocinante a gravadora responsável pelo lançamento de “Pra você, Ilza” (2024), último álbum lançado por Hermeto Pascoal. “Não conheço nada mais vivo que a obra do Campeão”, arremata o texto.

“Eu amo Hermeto, sempre amei e para mim o Hermeto é sempre um grande desafio, desde que eu tenho 20 anos. Ele esteve em meu concerto de formatura na UnB, eu tinha exatamente 20 anos. Ele tinha ido fazer um show em Brasília e foi lá. Minha mãe sempre foi uma pessoa super curiosa, vanguardista, e ela então se aproximou dele, o que fez com que ele estivesse presente, o que para mim foi uma enorme honra. De lá para cá eu sempre segui o Hermeto. Quando eu vim de Brasília pro Rio eu era daquelas pessoas que pegava o ônibus sozinha para ir a feijoadas, aniversários, ensaios. Eu lembro de uma ocasião em que teve um show no Circo Voador e foi a primeira vez que eu peguei numa flauta baixo e ele me chamou para subir no palco, foi uma espécie de batismo tocar na flauta baixo do Hermeto. Depois, sempre que podia, ele me chamava para fazer esses quartetos. Esse último trabalho é um presente que veio dele, uma consolidação das nossas trajetórias, acho importante falar sobre isso porque todos nós nos formamos na escola do Hermeto. Eu queria ser o Edu, eu queria ser a Aline [que foi aluna dela], eu queria ser o Malta, eu queria ser o Hermeto [risos]. Para mim foi uma surpresa muito grande esse convite, um convite muito honroso, gravar essas coisas inéditas, o ineditismo é sempre um desafio. Mas nós, como músicos, a gente gosta sempre de ser desafiado. Estou amando esse trabalho, a cada dia gosto mais”, sintetiza Andréa Ernest Dias.

“Hermeto está além do limite humano. É uma coisa totalmente inacreditável, a honra maior, possível, ele ter acolhido a Rocinante, e a gente tem muito orgulho de ter feito um trabalho digno, de ter deixado ele à vontade para criar no estúdio, com 87 anos, inventando arranjo na hora, com uma vitalidade juvenil, de desejo criativo, eu nunca vi nada parecido. E esse último disco dele ser para a Ilza, eu acho muito emocionante, ele finalizar homenageando a esposa dele, de tantos anos, mãe de seus filhos. Nosso papel foi registrar da melhor maneira e cuidar do som, porque em termos de música, ali, estava tudo resolvido. A partir desse disco, como deu tudo muito certo, o relacionamento Rocinante e Hermeto, que já era uma relação boa, que veio através do [diretor de produção] Geraldinho Magalhães, que trabalha na Rocinante, e o [Flávio] Scubi, empresário do Hermeto, a partir do disco, o Scubi me abriu os arquivos do Hermeto, os arquivos históricos, mais de 10 mil partituras. Quando eu vi tudo aquilo, na hora me veio a ideia de fazer uma série de elepês com músicas inéditas do Hermeto. O título me veio na mesma hora. Quando eu comecei a ver outras pastas com partituras editadas pelo Jovino, que cuidou muito desses arquivos ao longo da vida, além do Felipe José, que digitalizou uma boa parte, eu comecei a tentar identificar núcleos de afinidade. E resolvemos começar pelas flautas por causa da abundância e da centralidade da flauta na vida do Hermeto, que é um grande flautista. Ano que vem a gente começa a trabalhar para gravar o segundo, que vai ser de uma outra natureza, mas não vou adiantar ainda”, afirma Sylvio Fraga, fazendo suspense em relação à continuidade da série.

“Estamos diante de partituras inéditas de um dos maiores inventores de música da história do planeta. E a gente se dedica com profunda devoção. E vamos, disco a disco. É isso a obra viva”, finaliza.

Disponível em vinil e streaming, “Obra Viva de Hermeto Pascoal – Volume 1 Flautas” começa a revelar repertório inédito deixado pelo alagoano de Lagoa da Canoa. A expressão “volume um” no título sugere e a gravadora já anunciou uma série de álbuns dedicada a repertório inédito do Campeão. O repertório instiga. Inclusive a perguntar: quanto desse baú será revelado ao público? A depender do legado de Hermeto Pascoal, 2026 promete ser um ano de felicidade.

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Ouça “Obra Viva de Hermeto Pascoal – Volume 1 Flautas”:

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