Novo livro de Félix Alberto Lima destila poesia em meio às feridas do extremismo

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Livros de poesia nunca venderão extraordinariamente e nem despertarão tão cedo a cobiça das IAs de resultados. Por isso, sempre espouca um sentimento de resistência e singularidade (e, por que não?, de alegria) quando um livro de poesia chega com o carteiro. No caso de um livro do poeta maranhense Félix Alberto Lima, aí então é quase como garrafa de náufrago – a mensagem é sempre de puro resgate.

com o coração na boca (7Letras, 2025) é o quarto livro do autor e o encerramento de uma trilogia que começou com Filarmônica para fones de ouvido (2018) e Nas profundezas desses olhos rasos (2020). Poeta com ligação profunda com a origem, a geografia humana de São Luís do Maranhão, a “colheita de meninos” da lagoa, ao mesmo tempo que em sintonia descompromissada com as tradições históricas (dos provençais aos beats, de Ferreira Gullar a João Cabral), galo que não tece sozinho sua manhã literária, Félix carrega sempre consigo uma brisa de ruptura. “mudança não é aroma é/víscera exposta arame. única forma de manter-se de pé sem apodrecer por dentro”.

À margem da preocupação de aderir aos movimentos da conveniência literária do momento, longe da queda de braço das tertúlias hegemônicas, o poeta retoma o manifesto dos sentimentos com o coração na boca. Seus novos poemas tateiam as angústias e belezas que abastecem seu humanismo, invertendo a olímpica propositura da literatura a enfileirar angústias e belezas.

Isso não quer dizer descuido com o rigor da linguagem, nem adesão a qualquer populismo esportivo. As visões são dignas de Milton: “os calcanhares eram deus/abrindo picadas num sertão de areia/e espelhos”. Seus versos evocam personagens que garantiram a eternidade na indiferença, de um sacrílego casal em um motel até a Beata da Sé, uma mulher vestida de santa de vitral que postou-se durante décadas na frente da Igreja da Sé, na capital maranhense, até desaparecer em 2018. “um dia joana foi encontrada morta/com uma pequena pedra escondida/por entre as veias escuras da palma da mão esquerda – na mão direita o velho testamento. e deus constrangido teve de recebê-la de braços/abertos”.

Os tributos se sucedem como retomadas. Em Ibegeé, pode-se enxergar um tributo a Dentro da Noite Veloz (1975), clássico de Ferreira Gullar (“pelo menos dezesseis milhões de pessoas adultas no brasil nao têm sequer um dente na boca”). Da saudade da mesa de bar com Celso Borges à hierarquia da própria estante. “trediakóvsk não se entende com ferlinghetti/o mundo é agora diz um ao outro”. Outras lembranças são explícitas, como a visão de Nauro Machado (1935-2015) cantando Ramones com um sem teto na Rua do Sol, no Centro de São Luís. “tanto faz se é terça-feira ou domingo/para quem sabe de cor/morder o relento”.

A barbárie nacional também angustia o poeta, que aborda a erupção do fascismo, a corrosão da humanidade em meio ao abandono, à miséria progressiva, ao elogio do ódio feito pelo extremismo. Nenhum poeta passa incólume por essa paisagem do tempo. “o assombro de estar inteiro/mesmo repartido o peito/ao meio”. O coração não se apresentou à toa para o título do livro. Ele se encontra espalhado pelos poemas, às vezes agreste, às vezes como uma consciência polvilhada. “a boca o idioma o coração uma cratera no quintal”.

É como se o poeta artesão tivesse se dado conta de que não consegue caminhar ileso pelas ruínas do mundo somente com a armadura dos versos. Então, faz um livro de seu próprio espanto, corrosão, revolta. “caríssimo leitor, não me peça para voltar. meus passos não retrocedem/nem sangram sépia”, escreve Félix. “É nessa zona de vulnerabilidade, onde a vida pulsa mais forte, que encontro a voz para dizer o que quero, e que não tem tradução”, diz o poeta. “Se um dia perceber que já não há espanto, que o coração repousa sereno e que nenhuma palavra mais lateja, saberei que chegou o tempo de calar”.

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