Felix Alberto de Lima

 

 

 

Do Norte chegam notícias de mais um poeta fabuloso que já foi centroavante sem camisa no time de sua aldeia e invejou meninos carvoeiros de calção puído. O nome dele é Félix Alberto Lima, tem 52 anos, é maranhense como Ferreira Gullar e Nauro Machado, e sua poesia é feita de imagens lindamente desconcertantes (quase penhascos, paredes de carmenère, penumbra de dicionários), crônicas de ruas sem placas e estilhaços visuais do noticiário distraído (em alepo, em meio ao silêncio dos escombros”.

É possível reencontrar em sua poesia tanto o sabor de Lawrence Ferlinghetti (onde corriam rios sagrados junto às cidades costeiras) quanto de Walt Whitman (regurgitou folhas de relva aos quinze e uns quebrados) ou de Paulo Leminski (Sofrer vai ser minha última obra).

Félix fez do livro Filarmônica para Fones de Ouvido (editora 7 Letras) uma das melhores boas novas da poesia brasileira desde a vitória do cearense Mailson Furtado no Prêmio Jabuti de 2019 com o livro artesanal À Cidade. Em 2015, Félix já tinha publicado, pela mesma editora, O que me importa agora tanto, que não chegou até os sudestes ou não foi procurado devidamente.

Esse novo livro traz uma poesia de ritmo, coreográfica, de cadência irresistível. É absolutamente maranhense, mas incontestavelmente do mundo, alcança todas as falas e todas as locações de um jeito instantâneo. Negras batendo caixas para o Divino nas ladeiras de Alcântara estão a um pulinho da noite fumegante do Covent Garden, em Londres.

Alguns dos seus poemas parecem revisitar outros, e não necessariamente poemas com páginas, mas a poesia cantada. O verso Como nós os velhos vamos costurando nesgas de esperança lembra Cazuza e a sua canção Só as Mães São Felizes (Reparou como os velhos vão perdendo a esperança/ com seus bichos de estimação e plantas?). Mas é menos e.e. cummings do que João Cabral. Há, principalmente, uma reverência às coisas, ao inerme, ao despercebido, e às marcas de uma formação insular, circundada por uma cidade antiga. Começarei pelo grão das coisas, diz o mote do poema Cartografia dos Mares de Dentro, assinalando a geografia que destaca a igreja e a cadeia pública/ fé e castigo lado a lado

A epígrafe cita o poeta catarinense Cruz e Souza (1861-1898), único negro entre literatos mestiços do seu tempo, como anotou o crítico Antonio Candido: “… E nas zonas de tudo, na candura de tudo, extremo, passa certo mistério mudo”. É desse mistério mudo que se alimenta a poesia de Félix Lima, certamente uma das grandes revelações da poesia brasileira deste final de década.

 

CARTOGRAFIA DOS MARES DE DENTRO

começarei pelo grão das coisas:
sete ou oito palmeiras altas enfileiradas
como alunos do colégio pio onze
o vermelho martírio dos flamboyants na praça
anciãos mexem pedras coloridas no tabuleiro da calçada
todas as tardes

do alto do calvário
a voz santa joana d’arc anuncia
a procissão do senhor morto no sertão

minha mãe canta
vamos ver a lancha nova
que do céu caiu no mar

no meio de tudo
no centro da minha primeira rua
a igreja e a cadeia pública
fé e castigo lado a lado

começarei pelo grão das coisas:
ao invés de aprender a jogar gamão para o resto da vida
todas as tardes
fui atrás de mar

e meus navios
que cairão do céu
um dia

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