



O álbum solo de estreia de Cristina Buarque (23/12/1950-20/4/2025), lançado em 1974, reúne pérolas de diversos compositores mais ou menos conhecidos e já demarcava o seu trabalho como cantora, que vai muito além de interpretar um repertório, mas antes, de descobri-lo. Foi uma incansável pesquisadora, memória viva do samba e da música brasileira, literalmente uma enciclopédia.
Ainda neste primeiro álbum havia instrumentistas do quilate de Cristóvão Bastos (piano), Cartola (violão em “Ao amanhecer”, de sua autoria) e Nelson Cavaquinho (violão em “Nome sagrado”, de sua autoria): não é qualquer uma que tem luminares na ficha técnica de um álbum de estreia. É como se eles endossassem o trabalho (o que de fato fazem, já que são autores de algumas faixas do disco), atestando e enaltecendo sua grandeza.
Antes de 1974, já se ouvia aqui e acolá sua voz em projetos coletivos, coros e participações especiais. A primeira vez em 1967, em “Chorava no meio da rua”, em Paulo Vanzolini – onze sambas e uma capoeira, um dos elepês fundadores da imprescindível Discos Marcus Pereira. A artista lembraria, em entrevistas, que o autor de “Ronda” e “Volta por cima” era amigo da família, o que colaborou para amansar sua mãe e permitir-lhe a participação. Em 1978, em Arrebém, gravou “Ponto de fuga” (de cuja letra vem a palavra que intitula o álbum), de Chico Maranhão (no mesmo ano do gravação da música pelo autor, em Lances de agora, outro disco da Marcus Pereira), acompanhada por César Faria (do Conjunto Época de Ouro, pai de Paulinho da Viola) ao violão e Copinha, o flautista de “Chega de saudade”.
Cristina sempre foi discreta e, sem se valer do quilate dobrado da família Buarque de Holanda, só com o prenome assinou seus álbuns durante boa parte da carreira.
O gurufim que ocupou ontem mesmo o Bip Bip, celebrando seu legado, é mais uma demonstração de sua grandeza, como artista e pessoa. Acompanhei pelas redes sociais, como diversas outras postagens lamentando sua partida, enaltecendo suas qualidades, comentando aspectos de seu trabalho. Era domingo, véspera de feriado e o brasileiro estava triste, ao menos o brasileiro que conhece o Brasil e sabe valorizar o que ele tem de melhor.
Todas as reverências a Cristina Buarque são válidas, merecidas e necessárias. Não fosse seu trabalho, muitas pérolas por ela reveladas não teriam chegado a nossos ouvidos e corações. Não à toa foi celebrada também pelas gerações mais novas – com quem convivia sem posar de autoridade, bastava respeito, amor à música e discrição. Não faltaram relatos de quem, em alguma altura da vida, tenha ganhado de sua generosidade uma playlist (gravada em fita K7 ou CDR) com raridades.
O título de um de seus álbuns, O samba informal de Mauro Duarte (2008), dedicado ao repertório do compositor e dividido com o grupo Samba de Fato, bem traduz sua relação com a própria música e o ambiente de bares, palcos e estúdios: o clima despojado, de total informalidade, garantindo a leveza necessária para o exercício do ofício, a música trajando mangas de camisa, nunca terno e gravata, fosse uma roda, um show ou a gravação de um disco.
Era tão discreta que faleceu na véspera da partida de Jorge Mario Bergoglio, o Papa Francisco, anunciada hoje (21), e de quem passam a se ocupar, não sem razão, a mídia, as redes sociais e as conversas de botequim. É como se ela dissesse: vão falar de outro. Nada mais Cristina.
Obrigado por tudo! Descanse em paz. Por aqui seguiremos te ouvindo e aos que você ajudou a revelar ou valorizar.
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Leia mais sobre Cristina Buarque em texto do colega de redação Pedro Alexandre Sanches, aqui.
E que descanse em paz;se bem que,como bom espírita,não acredito em descanso pós-morte,rs.