‘Dois Papas’, entre verdades e mentiras

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Zécarlos Machado (Bento XVI) e Celso Frateschi (Francisco) em cena na peça "Dois Papas"
Zécarlos Machado (Bento XVI) e Celso Frateschi (Francisco) em cena na peça "Dois Papas" - Foto: Divulgação

Quem viu Dois Papas (Netflix), o filme dirigido por Fernando Meirelles, com roteiro do neozelandês Anthony McCarten, pode ter se convencido da dicotomia que virou praxe: Francisco é um “revolucionário”, humilde, o “pontífice do bem”; já Bento XVI, um conservador, intelectual e responsável pela crise de imagem da Igreja Católica, logo, um papa mau. Com direção de Munir Kanaan e interpretações generosas de Celso Frateschi e Zécarlos Machado, essa obra virou uma peça teatral que é um convite à reflexão sobre fé, poder, mudança e, acima de tudo, a complexidade do ser humano para muito além dessa versão que se criou para ambos os personagens.

Em cartaz a partir de 21 de março no Sesc Santo Amaro, depois de uma curta temporada no Sesc Guarulhos, a peça Dois Papas é baseada na obra de McCarten, que resultou no aclamado longa de 2019 indicado ao Oscar e a quatro Globos de Ouro. Mas é preciso lembrar: essa é uma história ficcional, não há provas de que tenha havido uma conversa entre o alemão Joseph Ratzinger, então papa, e o argentino Jorge Mario Bergoglio, o futuro pontífice pouco antes da renúncia do primeiro, em fevereiro de 2013.

A trama gira em torno de um encontro improvável. Bergoglio, interpretado por Frateschi, chega ao Vaticano decidido a pedir sua aposentadoria, desiludido com a direção da Igreja sob o comando de Bento XVI. No entanto, é surpreendido por um convite do próprio papa, vivido por Zécarlos, que, por sua vez, enfrenta uma crise pessoal e espiritual, considerando renunciar ao papado. O que se segue é um diálogo denso, repleto de tensões, mas também de humor e respeito, que revela as contradições e as vulnerabilidades desses dois homens em um momento crucial para a Igreja e para suas vidas.

O texto de McCarten fala de polarizações, de como visões aparentemente antagônicas podem encontrar pontos de convergência quando há disposição para o diálogo. E é justamente essa humanidade que Munir Kanaan busca iluminar em sua direção. A montagem procura mergulhar nas almas das duas personalidades, expondo suas angústias e contradições.

A cenografia, predominantemente branca, faz com que as cores dos figurinos e dos objetos em cena fiquem mais evidentes, criando uma atmosfera que oscila entre o sagrado e o cotidiano. A ideia é que o público se sinta como um observador invisível dessas conversas históricas que mudaram o destino da Igreja Católica.

Zécarlos Machado torna Bento XVI um intelectual refinado, mas também um homem frágil, que carrega o peso de bilhões de fieis e as pressões de um mundo em transformação dentro e fora do Vaticano. O ator captura com precisão o humor seco e a profundidade filosófica de Ratzinger, especialmente em frases que ecoam com força em nossa era de polarizações extremas. Ele tem o poder de fazer com que o público passe a apreciar o “papa mau”.

Já Celso Frateschi procura personificar a humildade e a resiliência de um personagem que não tem medo de se questionar, de reconhecer erros e de buscar mudanças. Com sua experiência e sensibilidade, o ator transmite a essência do futuro papa Francisco: um líder carismático, mas também profundamente humano, que busca construir pontes em um mundo dividido.

As personagens femininas, interpretadas por Carol Godoy e Eliana Guttman, adicionam elementos importantes à narrativa. Elas representam as vozes que influenciam as decisões desses dois homens, lembrando que, por trás de cada grande líder, há uma rede de apoio e de afetos que os sustenta.

O reencontro de Frateschi e Machado no palco é um convite adicional. Os dois atores já haviam trabalhado juntos em outras produções, como na montagem de Santa Joana, de Bernard Shaw, e direção de José Possi Neto na década de 1980, ou em episódios da série Sessão de Terapia (GNT). Veteranos, eles se valem do ponto, um dispositivo eletrônico que serve para quando os atores esquecem uma parte do texto, mas sem grandes prejuízos cênicos.

Dois Papas é mais do que uma peça sobre religião. Fala de como as diferenças podem unir pessoas de visões distintas e de como o diálogo é essencial em tempos de polarização. A lição é que mesmo em meio a crises das mais devastadoras é possível encontrar esperança e renovação. Ao final dos 135 minutos de espetáculo (com 15 minutos de intervalo), o público é convidado a refletir não apenas sobre a Igreja Católica, mas sobre suas próprias convicções e a maneira como se relaciona com o outro.

Dois Papas. No Sesc Santo Amaro, sextas-feiras e sábados (20 horas), e domingos (18), de 21 de março a 27 de abril. Ingressos a 60 reais.
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