João Pernambuco fura o tempo e o esquecimento

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Violonista, violeiro e pai da moderna composição solo para violão no Brasil, João Pernambuco está vivo, 141 anos depois de seu nascimento e 77 anos após sua morte. A cantora e compositora mineira (de Patos de Minas) Glaucia Nasser, também empresária do agronegócio, dá seu quinhão de terra em prol da sempre adiada reforma agrária (musical) e lança luz sobre o autor (controverso) da melodia de “Luar do Sertão” (1914), que conheceu ondas de reconhecimento e (principalmente) esquecimento ao longo de toda sua existência e além, até os dias atuais. Depois de publicar o EP João Pernambuco – Coração do Violão (2023), a cantora hoje com 61 anos acaba de disponibilizar em seu canal no YouTube a íntegra do espetáculo de mesmo nome, gravado em maio passado no Teatro de Santa Isabel, em Recife.

A história de João Teixeira Guimarães (1883-1947) permanece ainda hoje nebulosa, a despeito de iniciativas como a biografia Raízes e Frutos da Arte de João Pernambuco – Uma Infinita Viagem (2023), do jornalista e produtor musical carioca José Leal. Co-autor de uma primeira biografia do compositor em 1982 e fundador do Instituto de Arte Popular João Pernambuco, Leal morreu no ano passado, à mesma época do lançamento do livro.

A primeira gravação de “Luar do Sertão” (1914), por Eduardo das Neves

A controvérsia maior em relação à obra de João Pernambuco se deu em torno da autoria de “Luar do Sertão”, toada sertaneja gravada pela primeira vez em 1914 (portanto três anos antes de “Pelo Telefone”, marco da história do samba), pelo palhaço, cantor e compositor carioca Eduardo das Neves (1874-1919). No rótulo original de 110 anos atrás, versos e música são atribuídos ao maranhense Catulo da Paixão Cearense (1863-1946), até então conhecido apenas como poeta. A melancólica toada “Luar do Sertão” foi gravada por meio mundo, de Francisco Alves (em 1943), Vicente Celestino (1952) e Inezita Barroso (1959) a Tonico e Tinoco (1969), Rogério Duprat (1970) e Luiz Gonzaga em dueto com Milton Nascimento (1981) – em todos os casos, o crédito foi apenas para Catulo. O nome de João Pernambuco só foi aparecer como co-autor em 1987, numa gravação de Sivuca para a Funarte.

Em 1914, João Teixeira Guimarães tinha 31 anos e vivia havia dez no Rio de Janeiro, onde recebeu o codinome “Pernambuco”, não necessariamente lisonjeiro. Segundo o biógrafo José Leal, João Pernambuco teria composto a matriz de “Luar do Sertão” em 1911, sob o título “Engenho do Humaitá”, no tempo em que frequentava as rodas musicais da pensão do pai de Pixinguinha. Tornou-se parceiro do jovem flautista e de outro fundador da moderna música brasileira, Donga, em temas como “Os Três Companheiros”, “Sabiá”, “Estou Voltando” e “Saudades do Antigo” – não se conhece gravação de nenhum deles à época. Tais rodas também eram visitadas por intelectuais como Heitor Villa-Lobos, Afonso Arinos e Catulo da Paixão Cearense e milionários como Arnaldo Guinle.

Na chegada ao Rio, João trabalhou como ferreiro na fundição da família Guinle, ironicamente denominada Fundição Indígena, e a seguir foi calceteiro da prefeitura do então Distrito Federal, assentando paralelepípedos e construindo calçadas. Num tempo em que o conceito de “autoria” era difuso e não havia sido estabelecido nos moldes que seriam fixados pela então nascente indústria fonográfica, autores como João Pernambuco, que provavelmente nem se viam como artistas, ficavam ao relento à mercê dos chamados “comprositores”, entre os quais os cantores Francisco Alves e Mário Reis e radialistas que entravam em parcerias em troca de favores prestados na divulgação das músicas dos reais compositores.

Em depoimento ao Museu da Imagem e do Som (MIS) nos anos 1960, Pixinguinha afirmou acreditar que a melodia de “Luar do Sertão” era de João e a letra, de Catulo, “pois este não sabia fazer música”. E completou: “Eu ouvi o João Pernambuco cantar ‘Luar do sertão’ e ‘Cabocla de Caxangá’ antes de o Catulo colocar as letras”. Depoimentos como esse colocam em dúvida até mesmo a participação de Catulo como letrista.

Em 1936, Orlando Silva parodia “Luar do Sertão” e, “Não Há, Ó, Gente, Ó, Não”

Em 1936, Orlando Silva parecia desconhecer o rififi – ou então zombar frontalmente dele -, na paródia “Não Há, Ó, Gente, Ó, Não” (assinada por Cristóvão de Alencar e Antônio Almeida), claro que sem citar o nome de João Pernambuco. Dizia a animada gravação: “Não há, ó, gente, ó, não/ quem possa adivinhar/ de onde eu roubei esta canção/ eu juro que não queria/ roubar a melodia do Catulo da Paixão”.

Bebedouro do Jatobá

Até ali, já havia sido longo o caminho para João, nascido sertanejo à margem do Rio São Francisco, no povoado pernambucano de Bebedouro do Jatobá, rebatizado Petrolândia em 1943, em homenagem tardia ao ex-imperador Dom Pedro II. Foi onde o menino João conheceu seus primeiros mestres violeiros, como Laurindo Punga, Chico Dunga e Zé Vicente, todos citados como personagens do “sertão do Jatobá” no poema original de “Cabocla de Caxangá“, publicado por Catulo da Paixão Cearense no livro Lira dos Salões, em 1913.

“Cabocla de Caxangá” por Eduardo das Neves “e compaheiros”

Gravado pela primeira vez no mesmo ano por Eduardo das Neves, pelo cantor Bahiano (futuro cantor da primeira gravação de “Pelo Telefone”) e pela vedete Júlia Martins, com autoria atribuída a Catulo, o batuque sertanejo “Cabocla de Caxangá” substituía os personagens do primeiro verso, mas mantinha o “sertão do Jatobá” como palco da canção. João Pernambuco seria o verdadeiro autor da melodia, e no mínimo influenciou os versos de Catulo com as histórias de Bebedouro do Jatobá. Desde o nascimento, “Cabocla de Caxangá” ficou quatro décadas abandonada, até ser redescoberta por Paulo Tapajós (num disco-tributo de 1955 a… Catulo), Trio Itapoã (1957), Stellinha Egg (1960) e outros.

Como documenta o livro de José Leal, a terra natal do violonista e compositor era originalmente habitada por indígenas das etnias Pankararu (ainda hoje presente na região), Volve, Umã e Jeritacó. Em 1988, a cidade inteira de Petrolândia seria deslocada para a construção da Usina Hidrelétrica de Itaparica. Mais tarde, o nome do conterrâneo Luiz Gonzaga (1912-1989), o “rei do baião”, rebatizou a usina construída em cima do chão onde nasceu João Pernambuco, cujo semblante conhecido apenas por fotografias em preto e branco sugere origens tanto indígenas quanto afro-descendentes. Na Enciclopédia Musical Brasileira, afirma-se que a mãe de João era indígena Caeté (e o pai, português).

Filho de ferreiro e rendeira nascido cinco anos antes da abolição da escravização, João Teixeira Guimarães mudou-se com a família para Recife aos 12 anos, às vésperas da Guerra de Canudos (1896-1897), movida no sertão baiano por não-cidadãos despejados à rua pela abolição jamais indenizada.

Em 1926, “Sons de Carrilhões” dedilhado por seu criador

Na mesma época de “Engenho do Humaitá” e “Cabocla de Caxangá”, João compôs sozinho outro tema fundamental, o maxixe-choro “Sons de Carrilhões” (1912), inspirado nos sons dos eixos dos carros de boi do sertão pernambucano, que só conseguiria gravar 14 anos mais tarde, em 1926 (José Leal fala de uma “versão alternativa” gravada por João em 1916, mas não existe registro desse fonograma no acervo histórico mantido pelo Instituto Moreira Salles, o IMS).

Dilermando Reis faz “Sons de Carrilhões” renascer 44 anos depois, em 1956

Joia instrumental adorada e regravada por violonistas como Dilermando Reis (1956), Bola Sete (1965), Antônio Rago (1969), Turíbio Santos (1977), Nicanor Teixeira (1977), Raphael Rabello (1982), Marco Pereira (1991), Nonato Luiz (1990), Dino Sete Cordas (1991), Baden Powell (2000), Yamandu Costa (2004) etc., “Sons de Carrilhões” ganhou versão cantada em 1961 por Vicente Celestino, com letra gongórica de autor não creditado.

Raphael Rabello revigora “Sons de Carrilhões” em 1982, aos 20 anos

“Cabocla de Caxangá”, carnaval, Pixinguinha e Donga

“Cabocla de Caxangá” ganhou as ruas do Rio de Janeiro no carnaval de 1914 cantado e tocado por foliões que se reuniriam no Grupo Caxangá, liderado por João Pernambuco e integrado pelos cariocas Donga, de 24 anos, e Pixinguinha, de 17. Conforme escreve José Leal, no carnaval de rua de 1914 os integrantes do Grupo Caxangá “portavam violas caipiras, violões, cavaquinhos, flauta, percussão e cantavam em ritmo de coco mesclado com embolada”. Ainda de acordo com Leal, o Caxangá “mantinha em seu repertório músicas do Nordeste, e os integrantes trajavam típica indumentária nordestina, com sandálias de couro, chapéus de palha estampando nas abas os nomes de violeiros e cantadores das feiras e mercado de Recife”. Nos chapéus de palha, inscreviam os nomes de seus mestres, e o escolhido por João era Guajurema, referente a Cirino da Guajurema, que lhe havia dado de presente um violão, em sua adolescência no Recife.

Em 1913, o milionário Arnaldo Guinle patrocinou uma caravana dos caxangás ao sertão nordestino, liderada por João Pernambuco e partindo de Bebedouro do Jatobá, “em busca de registro de folguedos expressivos da arte musical popular”, nas palavras de José Leal. Donga e Pixinguinha participaram de uma segunda viagem, mas João Pernambuco, não. Ele e Guinle teriam entrado em desacordo porque o primeiro esperava que o grupo trouxesse as partituras dos temas recolhidos, com a intenção de publicar um livro sobre folclore, e o segundo não o permitiu.

O livro de Leal traz depoimento valioso de um irmão do compositor, Joca, segundo o qual João apresentou os músicos viajantes a violeiros e cantadores (“principalmente Cirino da Guajurema”): “Mas quando algum membro do grupo queria escrever alguma coisa, mano João ipedia imeditatamente, dizendo: ‘A gente veio aqui para ver e aprender e não para copiar; pois eu sei que depois alguém vai querer se aproveitar disso”.

O irmão Joca prossegue: “O Mano João tinha levado todas as informações de memória com algumas letras e músicas de domínio público e fincou pé, dizendo que na viagem que ele estivesse presente ninguém iria escrever música e letra de nenhum compositor popular. Afirmou ainda que ele já conhecia a desonestidade de muita gente querendo se aproveitar de composições de outros”. O mecenas e o ferreiro nunca mais se falaram, e isso talvez ajude a explicar o ostracismo em que João Pernambuco cairia a partir de 1930, enquanto seus parceiros seguiam rumo ao pódio de fundadores da moderna música brasileira.

Em 1927, Patrício Teixeira canta “Poeta do Sertão”, rebento de “Cabocla de Caxangá”

Desavenças à parte, João tornou-se entre 1919 e 1921 integrante do próximo grupo de Pixinguinha e Donga, o mitológico Os Oito Batutas (João seria o nono dos oito, mas não seguiu com o grupo para as lendárias apresentações em Paris, em 1922), tocando temas como “Luar do Sertão” e “Poeta do Sertão” (uma variante de “Cabocla de Caxangá” lançada em 1927 pelo cantor e violonista carioca Patrício Teixeira e, como sempre, atribuída apenas a Catulo).

O carioca Almirante canta o Nordeste em “Vamos Falá do Norte” (1929)

Num momento em que ainda não havia separação nítida de gêneros como música caipira e sertaneja, samba e choro, o Grupo Caxangá foi matriz para a criação de um sem-número de grupos, dos Oito Batutas de Pixinguinha e Donga e do Bando de Tangarás de João de Barro, Almirante e Noel Rosa, inspirando artistas como Turunas Pernambucanos (de que João Pernambuco também participou), Jararaca e Ratinho, os Turunas da Mauriceia de Augusto Calheiros e Luperce Miranda, Turunas Paulistas etc.

Na precisa interpretação de José Leal, figuras como Catulo da Paixão Cearense e Arnaldo Guinle agiam como “garimpeiros”, extraindo do chamado folclore a matéria-prima que constituiria a indústria musical da era do rádio e das multinacionais fabricantes de discos de 78 rotações por minuto. Os casos de “Cabocla de Caxangá” “Luar do Sertão” devem ser a ponta de um iceberg de “pilhagens” (nos termos do biógrafo) até hoje mal-conhecidas ou desconhecidas. Isso João Pernambuco guarda em comum com compositores de samba como Noel Rosa, Cartola, Ismael Silva, Wilson Baptista, Assis Valente e Ataulfo Alves, entre muitos. Não por acaso, a maioria dos pilhados era de artistas negros e (o que não se costuma mencionar) filhos ou netos de brasileiros que foram escravizados, enquanto entre os chamados “comprositores” predominavam intérpretes brancos.

João Pernambuco, compositor e solista, em disco

O jovem João Pernambuco toca “Jaci e Sertanejo”, em gravação de 1912

O acervo do IMS registra 22 fonogramas instrumentais gravados por João Pernambuco ao violão solo, seis deles lançados entre 1912 e 1914, antes da criação do Grupo Caxangá: “Jaci e Sertanejo” (Columbia, 1912); “Saudoso”, “Batuque Sertanejo”, “Grupo do Abacate” e “Júlia Martins” (todos Odeon, 1913); e “Pensando em Agostinha” (Phoenix, 1914). Somente “Jaci e Sertanejo” e “Grupo do Abacate” podem ser ouvidos no acervo sonoro do site Discografia Brasileira, do IMS. “Grupo do Abacate“, em particular, é descrito no rótulo de 1913 como “samba de violão, castanholas e guizos” – quatro anos antes do lançamento de “Pelo Telefone”.

Os Oito Batutas de Pixinguinha e Donga tocam “Graúna” em 1923

Criações de João Pernambuco só voltariam a ser gravadas (e creditadas) a partir de 1922, em registros de Bahiano (“Tiá de Junqueiro”, 1922), Os Oito Batutas (“Graúna”, 1923), Patrício Teixeira (“Jandaia“, 1926, “As Emboladas do Norte – Meu Baião“, 1929, numa referência ao baião duas décadas antes do advento de Luiz Gonzaga), Stefana de Macedo (“Biro Biro Iaiá“, “Siricoia”, 1929), Jararaca (“Catirina“, “Meu Noivado“, 1930), Paraguassu (“Amô de Caboco“, 1930) e Januário de Oliveira (“Corrupião da Lagoa“, 1930). Os quatro últimos interpretam versões com letras, em geral tratadas na época como motivos populares sem autoria definida. Em vários desses fonogramas, o acompanhante (não creditado) ao violão era João Pernambuco.

A “Siricoia” de Stefana de Macedo, em 1929

As outras 16 gravações conduzidas por João Pernambuco (todas disponíveis no site Discografia Brasileira, do IMS, devotado à era dos discos de 78rpm) acontecem na Odeon, em 1926, com “Sons de Carrilhões”, “Mimoso“, “Lágrimas” e “Magoado” (registrada em duas versões diferentes); e na Columbia, em 1930, com “Pó de Mico”, “Suspiro Apaixonado”, “Sonho de Magia”, “Magoada”, “Rosa Carioca”, “Reboliço”, “Interrogando”, “Recordando”, “Sentindo”, “Dengoso”, “Como Se Dobra o Sino”. Os fonogramas da Columbia foram reunidos pela gravadora nacional Continental numa compilação de 1979, O Som e a Música de João Pernambuco, hoje disponível apenas no YouTube. Confirmando que o esquecimento não é coisa do passado, nada desse material está disponível nas moderníssimas plataformas transnacionais de streaming.

“Graúna” no bandolim de Jacob, 1950

De 1930 em diante, João Pernambuco desaparece dos estúdios não apenas como solista, mas também como autor de temas gravados por outros intérpretes, com exceção de gravações de “Luar do Sertão” por Paraguassu (1936), Olga Praguer Coelho (1936), Rosina da Rimini (1941), Francisco Alves (1943) e Moraes Neto (1943) e de “Poeta do Sertão” por Paraguassu (1936). Obviamente, não foi creditado em nenhuma dessas. O anonimato e o esquecimento atravessam uma geração, até a regravação póstuma e luminosa de “Graúna” por Jacob do Bandolim, em 1950, três anos da morte de João Pernambuco.

Villa-Lobos x Catulo (x João Pernambuco)

Durante o sumiço, João não estava realmente sumido: trabalhava como calceteiro e almoxarife na prefeitura do Rio e, a partir de 1934, como contínuo na Superintendência de Educação Musical e Artística (Sema) fomentada pelo Estado Novo de Getúlio Vargas, sob direção do compositor e maestro carioca Heitor Villa-Lobos (1887-1959). Para o irmão Joca, a transferência da prefeitura para a Sema “foi uma atitude de desrespeito, como se tivesse dizendo ‘ponha-se no seu lugar’. Assim como os mandachuva, o Villa não aceitava que um artista do povo pudesse ter a importância que mano João tinha e tem na história da música brasileira. Todo mundo dizia que mano João era uma escola do violão brasileiro”.

No livro de Leal, Joca interpreta o que se passava na cabeça do irmão violonista: “Ele dizia que todo trabalho deve ser respeitado. Que ele tinha trabalhado como ajudante em oficina de carros de boi, fazendo frete nas feiras, de ferreiro, de calceteiro, de contínuo e não tinha problema nenhum, porque não desmerecia a vida dele como músico. (…) Agora, trabalhar de contínuo em um lugar onde tudo é baseado na música e você ficar vendo os músicos passando para lá e pra cá com seus instrumentos, ficar ouvindo música, inclusive músicas que ele tinha composto, e ser impedido de participar, aí magoa muito”.

Em data imprecisa (José Leal fala em 1930, o que parece inverossímil), Villa-Lobos foi processado judicialmente por Catulo da Paixão Cearense (ou por seus representantes), por discordâncias em torno de “Cabocla de Caxangá” e outros temas assinados pelo segundo – de acordo com Leal, Villa-Lobos teria “harmonizado sem autorização” e “realizado a venda ilícita de obras [de Catulo] para a Editions Max Eschig, de Paris”. A co-autoria de João Pernambuco, como se pode imaginar, nem sequer foi mencionada no processo.

A refrega Catulo x Villa teria começado (ou ressurgido) quando o maestro, num programa de rádio em comemoração ao 7 de setembro de 1937, interpretou “Luar do Sertão” e deu crédito a João Pernambuco como autor. Catulo venceu a disputa, mas um recurso de Villa revogou a decisão, sob pretexto de prescrição. O livro de Leal levanta ainda argumentos de familiares de João, que veem semelhanças entre o “Choro Nº 2” de Villa-Lobos e “Interrogando“, ou do “Prelúdio Nº 5” de Villa com “Sonho de Magia“.

A partir da morte de João, quem tomou seu partido foi o compositor e radialista Almirante (1908-1980), ex-companheiro do pernambucano no Grupo Caxangá e nos Oito Batutas. Em 1963, em seu livro No Tempo de Noel Rosa, Almirante levantou a bandeira de Pernambuco, sem citar Villa-Lobos, mas creditando João inclusive como matriz musical para Noel Rosa: “Entusiasmado com as criações do violonista João Pernambuco, Noel Rosa compôs sua primeira obra musical em versos, a embolada ‘Minha Viola’ (1930)”.

Para Almirante, João inspirou Noel Rosa a compor a caipira/sertaneja “Minha Viola” (1930)

Para Almirante, foi João que sobressaltou a veia nordestina até então ausente na poesia de Catulo: “Até 1912, não havia produzido nada absolutamente, em poemas sertanejos, especialmente dos costumes nordestinos”. Em sua opinião, o sucesso de “Cabocla de Caxangá” motivou Catulo a se apropriar também de “Luar do Sertão”: “O poeta editava as músicas, gravava-as em chapas de discos e cantava-as nas festinhas caseiras, nos recitais e palcos, citando somente o seu nome, sem jamais mencionar outros parceiros”.

Na prática, as portas fechadas levaram João a tocar apenas entre amigos como Patrício Teixeira, Luperce Miranda e Augusto Calheiros e a se afastar gradativamente do violão. Teria expressado seus sentimentos como parte esquecida na disputa entre Catulo e Villa-Lobos compondo temas como “Mágoas de um Sertanejo” e “Saudosa Viola”, ambos sem gravações conhecidas. Sua última criação, aparentemente inédita até hoje, seria uma melodia para os versos de “Canção do Violeiro”, do poeta baiano Castro Alves.

Nascido no dia dos mortos, 2 de novembro, João morreu 17 dias antes de completar 64 anos. O sepultamento aconteceu ao som de “Luar do Sertão”, cantado em coro pelos presentes, entre eles Pixinguinha, Donga, Patrício Teixeira, Augusto Calheiros, Luperce Miranda e Dilermando Reis.

João Pernambuco fura o tempo e chega ao presente

“Jongo” (1980): Baden Powell toca João Pernambuco

O resgate e o reconhecimento da arte de João Pernambuco foram acontendo aos poucos e de modo esparso, com gravações de Dilermando Reis nos anos 1950 (especialmente de “Sons de Carrilhões” e “Interrogando“), de Bola Sete (e quase ninguém mais) nos 1960 e de Turíbio Santos e Nicanor Teixeira nos 1970. Em 1979, o violonista paraense Sebastião Tapajós apresentou o inédito “Jongo”, regravado primeiro por Baden Powell e, ao longo dos anos e décadas seguintes, por Turíbio Santos (1989), Raphael Rabello e Dino Sete Cordas (1991), Yamandu Costa (1999)…

Nara Leão canta o choro “Brasileirinho”, em 1983

Em 1983 apareceu o primeiro álbum-tributo completo, João Pernambuco – 100 Anos, por Antonio Adolfo e Nó em Pingo d’Água, com inéditos como “Estrada do Sertão“. No mesmo ano, Nara Leão gravou “Brasileirinho”, tirado no ineditismo em 1977 por Turíbio Santos, mas agora com letra composta pelo futuro biógrafo José Leal. Em 1985, “Estrada do Sertão” ganhou letra de Hermínio Bello de Carvalho apresentada por Tetê Espíndola e se tornou uma favorita de cantores, com releituras de Nilson Chaves e Vital Lima (1986), Alaíde Costa (1987), Roberto Corrêa (1989), Zezé Gonzaga (1991), Teca Calazans (1992), Pena Branca e Xavantinho (1993), Elba Ramalho (1995), Déa Trancoso e Chico Lobo (2002), Cida Moreira (2003), Ayrton Montarroyos (2024)…

Entre Pernambuco e Villa-Lobos, Tetê Espíndola dá voz a “Estrada do Sertão” (1985)

Já nos anos 1990, o violonista pernambucano Caio Cezar Sitonio lançou Caio Cezar Interpreta João Pernambuco (1992), com mais temas inéditos, e o violonista paulistano Leandro Carvalho engrossou o movimento pelo reconhecimento das autorias de João Pernambuco, dedicando a ele os álbuns João Pernambuco – O Poeta do Violão (1997) e Descobrindo João Pernambuco (1999).

Leandro Carvalho e o “Azulão” de João Pernambuco, em 1997

No primeiro, atribuiu autoria de “Luar do Sertão” a Catulo (mas insinuando a eminência parda por trás da canção) e inclui no repertório “Azulão” (lançado por Paraguassu em 1930). No segundo, resgatou temas de João que jamais haviam sido gravados, como “Sabiá” e “Os Três Companheiros“, ambas parcerias Pernambuco-Pixinguinha-Donga, e “Saudosa Viola“. Em 2000, o penúltimo álbum gravado por Baden Powell, no ano de sua morte, foi João Pernambuco e o Sertão – a primeira faixa era “Luar do Sertão”, com o crédito devido.

“Sabiá”: composição em trio de Pernambuco, Pixinguinha e Donga

De 2023 para cá, é Glaucia Nasser a responsável pela reintrodução de João Pernambuco no latifúndio musical brasileiro. No EP João Pernambuco – Coração do Violão (2023), ela reúne novas leituras para “Luar do Sertão” e “Cabocla de Caxangá” e apresenta letras inéditas de José Leal e Paulo Dáfilin para “Sons de Carrilhões”, “Graúna” e “Caminho do Sertão” (inédita revelada em 2016 pelo violonista João Camarero). Completa o EP o tributo “Raízes e Frutos”, assinado por José Leal e Paulo Dáfilin.

2023: “Sons de Carrilhões” por Glaucia Nasser, com letra de José Leal

Em anos recentes, desde o álbum de canções mineiras Em Casa (2015), Glaucia tem empreendido um mergulho profundo em repertório histórico brasileiro, relendo Carlos Gomes, Villa-Lobos, Chiquinha Gonzaga, Donga e Noel Rosa, só para citar os fundadores da tradição. Desde o ano passado, a artista tem trabalho para ajudar a reinserir João Pernambuco no cânone musical.

Glaucia Nasser canta João Pernambuco, 2024

Agora, a cantora lança o álbum visual Glaucia Nasser Canta João Pernambuco – Coração do Violão – Ao Vivo, reproduzindo o repertório do EP e ampliando-o com canções pernambucanas de Luiz Gonzaga,Luiz Bandeira, Antônio Baracho (em “Quem Me Deu Foi Lia”, outro imbroglio autoral, já que a ciranda seria não de Baracho, mas de Lia de Itamaracá e Teca Calazans), Antonio Maria, Rosil Cavalcanti, Dominguinhos e Anastácia, Alceu Valença

Sobre João Pernambuco, falta ainda dizer que nem só de usurpação e apropriação foi feita sua obra, nem as dos trovadores nordestinos que o antecederam e sucederam. Ao mesmo tempo em que se ressentia por não conseguir proteger e resguardar seu patrimônio, o artista afro-indígena pernambucano sonhava com a liberdade que, dizem, esteve garantida no Brasil desde 1888.

Esse ímpeto se exprime ampla e simbolicamente nos títulos de seus choros, maxixes, jongos, toadas e batuques, vários deles jamais gravados, como “Sabiá”, “Tiá de Junqueiro”, “Graúna”, “Jandaia”, “Siricoia”, “Corrupião-da-Lagoa”, “Azulão”, “Eh Juparanã”, “O Bem-Te-Vi”… Todos têm em comum o fato de serem batizados com nomes de passarinhos, bicho que pode ser engaiolado, mas nasceu para voar. Como cantava Cartola em “Autonomia” (samba composto sabe-se lá quando, mas só gravado em 1977), ainda “é necessário a nova abolição”.

Leia mais sobre violão e viola brasileiros aqui.

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