Abordando a luta de classes na cultura em História e Cultura no Som da Viola, o violeiro e professor mineiro conduz bacharelado em viola na USP, se reaproxima do MST, enfrenta os preconceitos da academia eurocêntrica e afirma que o eurocentrismo é um transtorno social que precisa de tratamento
Ivan Vilela, instrumentista, arranjador e compositor mineiro interiorano de Itajubá, é um violeiro atípico: escolheu a arena de leões da academia como palco principal para sua militância pela viola caipira (que prefere chamar de viola brasileira). Professor livre-docente no departamento de música da Escola de Comunicações e Artes (ECA), da Universidade de São Paulo (USP), esteve no centro da criação do bacharelado em viola brasileira, onde até então predominavam instrumentos como piano violino, violoncelo, clarinete, fagote, flauta, oboé, trombone, tuba etc. A partir desse posto avançado, ele tem enfrentado de peito aberto uma gama ampla de preconceitos cultivados pelos soldados da música chamada erudita, que alguns de seus alunos batizaram de “eurodita”.
Hoje com 62 anos, Ivan Vilela apresenta as armas de batalha no livro recém-lançado História e Cultura no Som da Viola – Ensaios e Relatos sobre Cultura Popular (Ateliê Editorial), que faz da viola caipira instrumento não apenas musical. Provocador de alto nível, Ivan usa o instrumento muitas vezes tido como rústico, uma versão mais rudimentar do violão, para verificar e denunciar uma série de embates que configuram, para ele, modalidades alternativas da velha e onipresente luta de classes, nesse caso aplicada à cultura.
O livro coloca em xeque uma série de hierarquias cotidianamente naturalizadas, mas que seu autor não teme classificar como classistas, racistas, sexistas, xenófobas (ou xenófilas) etc. O tal “identitarismo”, que incomoda tanta gente, revela-se em sua escrita inserido em corpo e alma na luta de classes, para desespero de professores “euroditos”, de elites intelectuais e econômicas eurocêntricas e de fóbicos antibrasileiros e antipopulares em geral.
Ivan Vilela parte da dicotomia violão versus viola para atacar várias outras formas do binômio opressor/oprimido num seio social essencialmente neoliberal. A música erudita se pretende superior à popular e/ou folclórica na mesma medida em que, por exemplo, a MPB paira sobre a tal música caipira, ou a cultura escrita (acadêmica portanto) lança peso genocida sobre a tradição oral e os cinco sentidos representados por audição, fala, tato, paladar e olfato. É como se, com cinco (ou seis, ou mais) sentidos à disposição, os humanos ditos ocidentais e autodeclarados “letrados” elegessem utilizar apenas uma via, a grafocêntrica, deixando todo o resto do mundo ao deus-dará.
Para Vilela, o mesmo se dá na abordagem eurocêntrica das escolas brasileiras, que imitam a tradição dita ocidental (na verdade europeia) e compreendem a música, dotada de duração, intensidade, timbre e altura, apenas na clave das alturas (da melodia e da harmonia). “Por que a gente privilegia as alturas em detrimento das outras coisas?, sendo que a grande força do Brasil é o timbre, o jeito de cantar de cada um, de cada sonoridade, de cada região, de pessoas, de ritmos também. É porque é assim que se pensa na Europa”, critica o músico. Entre 2018 e 2021, ele coordenou em Portugal o Projeto AtlaS – Atlântico Sensível, sobre trânsitos e relações sociais criadas pelas violas pelo Atlântico lusófono, onde se deparou com um ecossistema de violeiros paralisados pelo isolamento e pela competição com seus pares.
Perguntas simples, embora raramente formuladas, brotam de História e Cultura no Som da Viola com ares de se auto-responderem. Vilela questiona, por exemplo, por que a música erudita do brasileiro Heitor Villa-Lobos é classificada como nacional (e nacionalista), enquanto a do russo Igor Stravinsky é celebrada como universal, embora igualmente calcada em elementos folclóricos de sua região. Do mesmo modo, indaga por que as músicas carioca, paulista e baiana adquirem status de nacionais enquanto todo o imenso restante do Brasil é interpretado como se praticasse a famigerada música “regional”. A resposta? Luta de classes. Preconceito, discriminação, anti-identitarismo. Fascismo, talvez?
Em seu livro, o pesquisador remonta à origem do termo “erudito”, derivado de “rus” (rural, rude, rupestre, rústico), que se tornou “ex-rus” quando a música passou a ser escrita nos mosteiros medievais. Seria “ex-rus” não apenas porque “deixou de ser” rústica/rural/rupestre, mas também por ser “proveniente de”. Denunciando os excessos e abusos perpetuados pela ala mais reacionária da academia, Ivan Vilela parece um homem-bomba instalado dentro da USP, e não nega sua disposição: “Quero que esse barco afunde para começar um novo, porque não dá mais para tentar segurar aquilo ali”. Leia a seguir a entrevista contracorrente do acadêmico-artista.
A luta de classes na cultura
Pedro Alexandre Sanches: Seu livro confronta uma série de hierarquias: viola versus violão, popular e erudito, caipira e MPB, regional e nacional, nacional e universal, cultura oral e escrita. É um livro sobre luta de classes, na verdade?
Ivan Vilela: Cresci em cidade pequena, Itajubá, e tinha cursado história em Minas Gerais quando comecei a trabalhar com música, sobretudo quando vim pra Campinas, com 26 anos. Gravei um LP, larguei o curso em 1985, fiquei tocando. Em 1988 vim para São Paulo, em 1989 fui parar em Campinas, onde eu percebia muito esse pedantismo, essa dominação simbólica dos eruditos sobre os populares. Fui fazer um curso de composição e logo vi que para o pessoal da música erudita eu era um músico popular, e para o pessoal da música popular era um músico folclórico, regional. Eu já tocava música popular em bar, queria conhecer mais esse outro universo e fui percebendo que é um universo muito apoiado numa falsa presença, que é uma dominação simbólica, do erudito sobre o popular, de saber mais contra saber menos. Quando vim para a USP, já com 42 anos, abri um bacharelado em viola, e senti muito, porque as pessoas não me cumprimentavam. Só passaram a me cumprimentar depois de descobrirem que eu dava aula de percepção musical, sabia música e tinha uma ópera composta.
PAS: Chegava ao ponto de não cumprimentarem?
IV: Era impressionante, era isso mesmo. Era um curso de currículo muito antiquado, é até hoje. A única matéria de Brasil que tinha era no último semestre, chamada folclore brasileiro nos contextos da musicologia, em que o professor dava etnomusicologia africana. Comecei a abrir matérias relacionadas à música popular, à história da música popular, ensinando com contextualização histórica e ouvindo música. Abri um curso de aspectos da música popular brasileira, parafraseando o Mário de Andrade dos Aspectos da Música Brasileira (1965). Em um semestre dou um curso sobre o Clube da Esquina, no outro vou pegando discos significativos da música popular, Canções Praieiras (1954) do Dorival Caymmi, o disco do Elomar e vários. A gente faz uma contextualização do período e depois ouve o disco inteiro. É meio ensinar como escutar a música de uma maneira diferente.
PAS: A escola lhe dá liberdade pra criar tudo isso?
IV: São matérias optativas. Aí os alunos exigiram que música popular virasse uma matéria obrigatória. Virou, até eu ir pra Portugal, e então o pessoal tirou. Eu falei: vocês não poderiam, porque sou concursado para essa cadeira. Entrei como mestre, depois do doutorado fiz um concurso. Fui abrindo outras coisas que eu achava que seriam interessantes. Fiquei um ano e meio dando assessoria à Rádio USP, a pedido da Pró-Reitoria de Comunicação Social, pois havia acontecido um plano de demissão voluntária que desmontou a rádio. Ficava o computador tocando samba o dia inteiro, era o que tocava. Fiquei trabalhando dentro dessa área de música popular. Abrir matérias relacionadas à música popular gerou um ruído absurdo dentro da escola, sem eu perceber.
PAS: Você não imaginava que aconteceria?
IV: Imaginava, mas a questão foi ciúme. Teve um semestre, em 2018, em que música popular teve 223 alunos inscritos. A relação que o pessoal da música erudita tem, entre eles e com os alunos, é muito vertical. Não fui criado assim.
PAS: Fiz jornalismo na mesma escola, não saberia dizer na época, mas também sentia isso com os professores do departamento.
IV: Se você fez ECA, conhece bem o ambiente. E começou a ficar pior quando vinha alguém da reitoria com uma comissão estrangeira, e chamavam um violeiro, não chamavam um pianista para tocar para a comissão da Alemanha. Isso foi gerando um ciúme. Quando entrei, o pessoal das ciências sociais, Alfredo Bosi, a própria Ecléa Bosi, que virou minha orientadora depois, e José de Souza Martins escreveram para mim, sem me conhecer: “Que bom que tem violeiro agora aqui”. Tive uma acolhida muito intensa ali, e era o pessoal com quem eu convivia mais, que queria saber mais do mundo da viola. A gente criou uma relação bastante íntima. Quando cheguei no departamento, comecei no campus de Ribeirão Preto, e lá teve uma questão de assédio moral contra alguns alunos que eram gays, que me levantei contra, e foi ficando insustentável a condição, então vim para São Paulo. Chegou uma professora para mim e falou: “Quer dizer que é você o professor que tem mais citações no Google?”. Nesse nível. Eu nunca olhei nem as dela nem as minhas, nunca reparei nisso.
PAS: Ou seja, os eruditos também prestam atenção nessas coisas reles, tipo Google e Instagram…
IV: Quando fiz o concurso para doutor, a vagas era para viola, percepção e música popular, e ninguém entrou para concorrer. Passei com nota dez, e na livre docência passei com dez nas seis provas, e isso gerou um falatório. “Ah, eu soube que você passou com dez”, mas como você soube?, eu não falei para ninguém. “Não, eu passei com sete, porque me sacanearam.” Cara, não perguntei nada, não estou sabendo. Agora chegou uma professora e me falou: “Enquanto você fica tocando por aí, eu estou aqui dando aula”. Respondi: quando estou tocando por aí na Universidade de Weimar, na Universidade de Viena, nos Estados Unidos e onde for, é a USP que está tocando, você deve ficar contente que tem alguém do departamento que leva o nome para fora, mas não.
PAS: Você está dando mais exemplos de luta de classes?
IV: É o tempo todo. Fui agora para a Alemanha para o encontro da Unesco, o único brasileiro que convidaram, e meu chefe não queria me dar a liberação para ir. Dois dias antes ele me liberou, eu ia levar para o conselho de ética. Eles tentam me barrar de todo jeito.
PAS: Um dos cursos se chama viola caipira? Ou viola brasileira?
IV: É Bacharelado, em viola brasileira. Em Ribeirão Preto ficou viola caipira, foi como começou. E aqui sugeri o nome viola brasileira, que é mais amplo que só caipira.
PAS: E foi você que implantou? Como conseguiu?
IV: Em 2001, eu tinha acabado o mestrado, não estava dando aula em lugar nenhum e fui fazer uma turnê em Portugal e Itália. José de Souza Martins escreveu para o professor José Machado Pais, também sociólogo, dizendo: “Vai assistir esse camarada”. E esse professor, muito simpático, foi e gostou muito, veio conversar comigo. Em 2003, ele me escreveu falando que ia organizaro seminário Sonoridades Luso-Afro-Brasileiras e gostaria que eu apresentasse uma comunicação sobre a viola no Brasil e fizesse uma apresentação final. E tinha lá um pessoal da USP de Ribeirão, [o violista, violinista e professor] Régis Duprat e mais dois professores, que estavam pesquisando o barroco brasileiro e inferindo a possibilidade de, na falta do cravo, utilizar a viola, como utilizavam o alaúde lá na Europa. Só que eles não tinham ideia de que a viola estava num nível de performance mais avançado. Achavam que era uma coisa mais caipira.
PAS: Pensavam em algo rústico, no sentido habitual dessa palavra?
IV: Rústico é exatamente o termo. Ficaram muito impressionados, estavam José Ramos Tinhorão e um monte de gente nesse encontro. Me rodearam no último jantar e falaram: “Você não quer dar aula na USP?”. Se algum dia tiver um concurso para bacharelado eu presto. Isso foi em outubro de 2003. Em abril de 2004, disseram: “Foi aprovado por unanimidade no conselho universitário, a gente vai abrir um concurso e gostaria que você se inscrevesse”.
PAS: Quer dizer, além da força contrária há também uma força impulsionando? Se foi por unanimidade…
IV: Mas era no conselho universitário, não no departamento de música. Tem muita gente no conselho que está ligada no Brasil. Pessoal da FFLCH, da literatura, do teatro e das artes plásticas trabalha com Brasil, mas na música é só música europeia, clássica e romântica. Então prestei concurso, e deu tudo certo. O curso começou em Ribeirão Preto, subordinado à ECA. Era cria do [fagotista e compositor] Olivier Toni. Ele já morreu, se revezou na chefia do departamento com mais dois colegas durante
mais de 20 anos. Os caras criam uma estrutura como a do [maestro] Benito Juarez na Unicamp, que dizia que o curso nunca estava totalmente instalado. Um curso instalado fica subordinado às leis do campus, da prefeitura universitária. Quando não está instalado, pode furar brecha, contratar sem concurso. Em Ribeirão era a mesma mentalidade do Toni, um pessoal muito preconceituoso. Para você ter uma ideia, quando fiz vestibular, prestei também na USP, e na prova teórica o Toni veio até a minha carteira e perguntou: “Que instrumento você toca?”. Violão. “Violão não é instrumento. Você já gravou disco?” Sim, respondi. “Mas disco até dupla caipira grava.” Não tenho problema com nada, mas os dois caras da chefia eram enrustidos e humilhavam os alunos gays, uma coisa muito complicada. Um dia vi o melhor aluno do curso chorando. Era um gênio, mas era uma moça: “Estou trancando o curso, não aguento mais ser humilhado em classe pela minha condição de ser gay”.
PAS: Isso tudo num curso de arte…
IV: Era o melhor aluno do curso. Falei: não tranca, vai para casa, dá uma semana, eu vou resolver. Cheguei nos meninos do centro acadêmico e perguntei se não iam fazer nada. “A gente ia, mas fomos ameaçados de não nos formarmos.” Os professores estavam pressionando os meninos. Angariei alguns professores para bater de frente.
PAS: Uma rebelião?
IV: Uma rebelião. Fui para lá em 2004, isso foi em 2007. Pedi transferência para São Paulo, falando eles não tinham hombridade para dirigir o curso. E dito e feito, os três se pegaram em brigas, um não fala com o outro, nenhum dos três. E o curso foi muito prejudicado. Quem articulou minha vinda para cá, o primeiro chefe mais aberto, foi [o flautista, compositor e maestro] Gil Jardim, um ótimo chefe [entre 2006 e 2009], que fez essa transição de maneira muito radical até, de uma ditadura para um curso mais democrático, onde todo mundo tinha voz. Mas o começo, em 2010, foi difícil também. Teve um professor que tentou me mandar de volta para Ribeirão, e chegando eles iriam me demitir, ou qualquer coisa assim. Esse professor era um cara muito afetado, sucedeu Gil Jardim na chefia, ele já se aposentou. Ele falou: “Ivan, não tem jeito, vou ter que te mandar de volta para lá”. Falei: Amilcar, escuta uma coisa, se você pensar em me mandar pra lá, eu vou te foder, porque tenho duas atas do conselho que me trazem para cá, te processo por prevaricação, processo o departamento inteiro. No dia da reunião do conselho, ele disse: “Gente, Ivan é muito importante aqui” [risos]. Não precisa chegar nesse nível para as coisas serem resolvidas. Nesse momento, Eduardo Monteiro, que não era chefe ainda, disse: “Quando você foi contratado foi contratado pela ECA ou pela filosofia de Ribeirão?”. Pela ECA, respondi. “Então o assunto está encerrado, nosso chefe não pode te mandar de volta pra lá.”
PAS: Você tem que se impor assim o tempo todo?
IV: Claro, o tempo todo. Essa ala é ultra-reacionária. Para você ter uma ideia, nessa lógica eles não podem estudar pianistas-compositores do século XX, como [o russo Sergei] Rachmaninoff. Começaram a ter treta com o pessoal da composição, um pessoal mais graúdo, que tem titulares. A professora que foi acusada de ter agido de maneira racista com uma aluna negra agora é a chefe da ouvidoria.
Música na USP: cotistas, evangélicos, eurocentrados
PAS: Como é a composição racial atual do curso?
IV: Agora tem muitos alunos negros. Grande parte da produção das escolas de música do Brasil vem de igrejas da Assembleia de Deus, os sopros, e da Congregação Cristã, as cordas. Inclusive, uma professora que vive ocupando cargos de chefia falou com um outro professor, e isso vazou: “A gente precisa acabar com esse sistema de cotas, porque essa escola está ficando suja”. Acho que mais da metade dos alunos são negros.
PAS: Os alunos ainda são como você relata no livro? Vão para estudar música erudita e nunca ouviram Chico Buarque?
IV: Na realidade, hoje tem pessoas pobres, de periferia. Os alunos de hoje têm um nível cultural muito baixo, não têm formação nenhuma, para ler um texto é difícil, sobretudo essa grande massa de evangélicos. Já presenciei pregação na escola, aluno tentando converter outro. É o maior volume de gente que está entrando. Antigamente os alunos que vinham da música popular eram da licenciatura, agora é na composição também. Eles querem outras coisas, mas está sendo feito um novo currículo totalmente engessado. Os professores não têm noção do que é o mercado fora, não sabem como esses alunos sofrem quando saem daqui. Orquestra está acabando, é um fenômeno mundial, e eles ou vão tocar em orquestra ou vão dar aula, não conseguem fazer mais nada. Não conseguem sentar num grupo e tocar junto, tocar num bar. Só sabem ler. Brinco que é datilografia musical. É aquela história de pessoas mais velhas, tias, avós, “estudei piano dez anos e hoje não sei tocar uma nota”, como que pode? É datilografia, só sabiam datilografar, não escutavam.
PAS: Voltando à luta de classes, o que na sua história individual explica que você tenha essa abordagem e esse interesse pela música popular e caipira?
IV: Sou o décimo terceiro filho, o último, o caçula, o fruto da menopausa, como diz mamãe, o temporão, numa família mineira. Tive um pai muito culto, que cresceu numa infância abastadíssima até que o pai dele perdeu tudo em jogo. Mas era um poeta parnasiano, deixou uma biblioteca maravilhosa. Era chefe de estação de trem. Cresci numa família de comunistas, de presos políticos. Não é nem que fui doutrinado, mas eram os assuntos em casa. Papai mudou para Itajubá para meus irmãos fazerem engenharia, numa escola tradicional de lá, de 1913. Essa percepção de luta de classes veio muito intensa. A gente, para morar, família grande que éramos, tinha que morar na periferia. A periferia da cidade pequena é mais uma roça que uma periferia de cidade grande. Era escola estadual, tinha contato com o pessoal mais burguês, mas não tinha amizade. Minha turma era essa outra. Eu era vizinho de um palhaço de folia de reis. Com seis anos de idade, já via festas de folia. Meus irmãos escutavam de tudo. Tinha pra todos os gostos. Um irmão que gostava de música clássica, vários ouviam MPB e música da contracultura estadunidense e músicas do Brasil de dentro, uma irmã beatlemaníaca. Quando dou aula de composição, digo que é legal primeiro os alunos entenderem que o que faz o compositor é sua história de vida. Não é estudo, talento. Eu trabalhei com erva medicinal, fui vendedor de enciclopédia Barsa, trabalhei com abelha, para tentar me manter como músico. E tenho uma irmã, que é minha madrinha, uma médica que, quando se formou e acabou a residência, foi viver no sertão do Maranhão. Ficou dois anos lá e falou: “Lá eu mais aprendi medicina do que ajudei”. E depois começou a fuga dela, ficou oito anos na clandestinidade, de 1965 a 1973. A vida inteira trabalhou com saúde pública, lidou com gente pobre, é uma pessoa de classe média, médica, uma casa simples, recebe a pensão do Tortura Nunca Mais e dá para os amigos que estão precisando. A outra irmã mais velha também foi presa, a família veio meio nesse curso, a gente dando muita atenção para isso e não para essa ascensão social, embora eu tenha irmãos que ficaram ricos e acharam que isso era o maior barato mesmo.
Intelectuais, canônicos, hierárquicos
IV: Eu nunca me vi como intelectual, como escritor. Minha coisa sempre foi mais aula, tête-à-tête. Uma coisa que me incomodava muito dos meus queridos colegas da USP, José Miguel Wisnik, Luiz Tatit, Marcos Napolitano, é que eles são canônicos. Eles entendem a música como um eixo principal e estudam aquilo. Mas trabalhei com [o violeiro] Dércio Marques, com sua irmã Doroty Marques, tem tantas outras músicas de alta qualidade neste Brasil.
PAS: Quando você fala canônico, quer dizer grafocêntrico, usando seu próprio termo no livro?
IV: Não, é canônico porque a gente tem um eixo de construção da música popular pela via do Rio de Janeiro, que é a via da MPB também.
PAS: Como você diz, é contraditório, porque a maioria dos músicos não estudou, não sabe ler partitura.
IV: Os sambistas dos anos 1930 não sabiam ler partitura, só os chorões sabiam. Ninguém mais sabia, a não ser os arranjadores. João Bosco não sabe ler partitura. Milton Nascimento lê catando milho. Chico Buarque acho que lê, Edu Lobo lê muito porque estudou, mas são poucos os compositores ligados nesse processo. Acabou se construindo uma música que vem pela via do choro, do samba, do samba-canção, da bossa nova, que aí desdobra nos artistas que nasceram em Salvador, São Paulo ou Rio de Janeiro.
PAS: Todos urbanos.
IV: O resto todo vira uma segunda categoria. E esse pensamento é tão forte que uma professora da ECA que chefiou a Rádio USP falou: “Nós vamos dividir a discografia em quatro patamares. Primeiro, o MPB 1, segundo o MPB 2, terceiro o MPB 3”.
PAS: Mais hierarquias.
IV: Em MPB 1 vai João Gilberto, Tom Jobim, Caetano Veloso. MPB 2 vai Alceu Valença, tal e tal. MPB 3, tal e tal. Ela esqueceu do MPB 4 [risos], falei brincando, numa palestra.
PAS: Os caipiras estavam em alguma dessas categorias?
IV: Não, caipira nunca estava em lugar nenhum.
PAS: Não é nem hierarquia, é casta mesmo.
IV: É casta. Com essas aulas, fui desenvolvendo uma expertise, com muita leitura, reflexão, sobre aquela questão de duração, intensidade, timbre e altura. A educação que a gente tem é uma educação das alturas. Das harmonias e das melodias.
O chamado Ocidente domina o discurso musical
PAS: Segundo você defende no livro, o chamado Ocidente só valoriza melodia e harmonia?
IV: Melodia e harmonia, que são os filhos da altura.
PAS: É a mesma coisa de usar apenas a escrita ou a via oral também. É como se a gente usasse um dos cinco sentidos, só? Por que a gente se meteu nessa enrascada?
IV: [O filósofo russo Mikhail] Bakhtin traz um pouco essa resposta, quando vai mostrar que a cultura erudita surge da cultura popular. É até a explicação que Alfredo Bosi me deu, o ex-rus. Na realidade, é tudo uma questão de dominação mesmo. O que sabe mais, o que estudou mais, vai mostrar que sabe mais. Mas no meio pobre, quem sabe mais não é quem estudou mais, é o mais velho, o que viveu mais. Porque é outro tipo de saber.
PAS: Mas, como você mesmo fala, o aluno sabe ler, mas não sabe escutar. Ele e nós deixamos de usar os cinco sentidos? É uma limitação da própria maneira ocidental de ver o mundo?
IV: Exatamente. Lá até falo em saber oral, visual, aural, gustativo, olfativo. E sensitivo.
PAS: Esse último é o sexto sentido?
IV: Sim, já vi gente ensinando a benzer, também benzo criança às vezes. A gente aprende benzimento, mas é sentindo, não só recitando a reza. Você vai ensinar a bordar, é olhando, a mãe não vai falar “suba a agulha, vire 90 graus, faça um círculo”.
PAS: O modo como você fala no livro sobre erudito, ou “eurodito”, é de um homem-bomba dentro da academia?
IV: Mas a ideia é essa. Esse grupo que tomou posse agora me tirou da pós-graduação. E fui eu que introduzi a pós-graduação em música popular. Uma aluna que fez um trabalho sobre Milton Nascimento foi indicada ao Prêmio Jabuti. Outra fez um trabalho belíssimo sobre Dércio Marques, situando Dércio no contexto da época, e virou livro. Marlui Miranda está acabando o livro dela sobre música indígena do Brasil, que ela chama de o novo tradicional. Orientei muita gente, só que orientei gente que trabalhou com Egberto Gismonti, Luiz Bonfá, Almir Sater, congada, fandango. E a lógica hoje da universidade é o neoliberalismo, que, para tomar conta da economia, teve que tomar conta da produção industrial, e o que mantém a produção industrial é a produção de conhecimentos. Os professores acadêmicos no mundo estão num grau muito alto, só que foram todos cooptados, da seguinte maneira: abandonaram as graduações, porque na pós-graduação tem muito dinheiro. Agora você assina o trabalho do aluno, o Currículo Lattes é uma mentira, porque o aluno publicou, mas você assina antes. O professor publicou uma pesquisa, e os alunos têm que trabalhar na pesquisa do professor. São apertadores de parafusos numa engrenagem que eles nem sabem qual é inteira e nem vão receber nenhuma notícia. Os alunos são cada vez mais assim, estudam aquele pedacinho daquela música. E eu não aderi a essa história, continuei orientando aberto. [O compositor, cantor e violonista] Paulo Padilha foi fazer um mestrado sobre educação. Fiz um relatório à pós que virou meu livro, e mandei. O parecer foi que não tinha introdução nem justificativa nem fonte bibliográfica. Mas é um relatório, gente, não é um projeto de pesquisa. Disseram ainda que enquanto eu não publicasse com os alunos eu não voltaria. Quem é que escreve com alunos? Eles só assinam os artigos que os alunos escrevem. Vi que eles queriam me tirar. Comentei com José Geraldo Vinci de Moraes, da história, que tem um núcleo de pesquisa de radiofonia e fonografia no início do século XX. Ele falou: “Vem para cá”. Então estou lá agora, na história, mas não orientando.
PAS: Está dando aula?
IV: Dando aula. Mas [o flautista e professor] Toninho Carrasqueira me deixou no maior projeto de extensão da ECA, que é o Sabiá-Laranjeira.
PAS: Quem é o Olivier Toni de agora na escola de música?
IV: Eduardo Monteiro, pianista. Difícil haver alguém que substitua os criadores do curso, graças a Deus! Era um cara bacana, mas já foi chefe e diretor da ECA duas vezes. O hábito do cachimbo entorta a boca, né? Ele tem um séquito junto de si, só contratam gente que pensa igual a eles. O curso está
entrando num buraco. Virou uma fábrica de criar alunos deprimidos que entram lá esperando uma coisa e veem que nada daquilo dialoga com o mundo deles fora da faculdade. E a reitoria começou a cobrar produtividade. Eles só produzem para seu próprio segmento. Se perguntar para muitos “qual
é sua pesquisa na academia?”, não tem. É impressionante isso, não tem. A reitoria começou a cobrar e vieram cobrar de mim: “E o Núcleo de Música Popular? Você precisa assumir, fazer coisas”. Os alunos criaram quando eu fui embora para Portugal, agora estão precisando que eu faça coisas? Falei que
vou pensar. Não vou fazer nada que eles querem para apoiá-los. Continuarei fazendo os meus projetos. Quero que esse barco afunde para começar um novo, porque não dá mais para tentar segurar aquilo ali.
Era um cara bacana, mas já foi presidente e diretor da ECA duas vezes. O hábito do cachimbo entorta a boca, né? Ele tem um séquito de seguidores, só contrata gente que pensa igual a eles. O curso está entrando num buraco, e a reitoria começou a cobrar produtividade. Eles não produzem. Se perguntar qual é sua pesquisa na academia, não tem. É impressionante isso, não tem. Areitoria começou a cobrar e vieram cobrar de mim: “E o Núcleo de Música Popular? Você precisa assumir, fazer coisas”. Os alunos criaram quando eu fui embora para Portugal, agora estão precisando que eu faça coisas? Falei que vou pensar. Não vou fazer nada. Quero que esse barco afunde para começar um novo, porque não dá mais para tentar segurar aquilo ali. É muito desgaste, a gente fica doente por causa disso. Minha companheira diz: “Não fala da USP hoje, por favor, deixa do lado de fora de casa, isso está acabando com você”. A gente dorme mal, acorda com rancor. É uma luta de classes. A grande maioria das pessoas é bolsonarista.
PAS: Também, sério? Os professores?
IV: Total, apoiaram o golpe parlamentar em Dilma Rousseff. Se você for na Osesp [Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo] ou na Orquestra Municipal de São Paulo, é capaz que uma grande parte seja. Engraçado, eles são operários, celetistas, mas não se consideram, porque servem à elite.
PAS: Por servir a elite acabam achando que são a elite. Com jornalistas é mesma coisa.
IV: Também é assim?
Uma escola de música que não ensina música brasileira
PAS: É. Tem uma frase do seu livro que explica muita coisa. Você fala que fez o curso de composição na Unicamp e que o único compositor brasileiro que estudou foi [o compositor e pianista] Almeida Prado, que era seu professor. O que que isso quer dizer? O Brasil tem a música que a gente sabe que tem, e a universidade não ensina, por quê?
IV: Acho que a resposta é bem simples: é a elite brasileira. Como falo no livro, no século XIX, enquanto a cultura estava sendo gestada, eles estavam de costas para o Brasil. Eles continuam de costas. Eles não se percebem. Eles não se percebem. Só ouvem música clássica, ao ponto de uma menina do terceiro ano, de 21 ou 22 anos, de classe média, falar: “Acho que eu já ouvi uma música desse tal de Chico Buarque”. Isso é um absurdo, é não ter noção da dimensão do que foi esse cantautor ao longo da história do mundo.
PAS: Mas, por exemplo, por que a faculdade de música não ensina Heitor Villa-Lobos no curso de composição?
IV: A ideia de composição parte do [compositor alemão Ludwig van] Beethoven, a composição motif, “tchan tchan tchan tchan”. Tudo é pensado assim. É fácil pensar isso num país que não tem a multiculturalidade nem a multinatureza que o Brasil tem. Villa era prolífico, desenvolvia pouco uma ideia, já pegava outra. Ouvi um colega falando: “Villa compunha como uma colcha de retalhos”. E nunca ninguém contestou. Foi preciso um violonista finlandês, Eero Tarasti, escrever um livro sobre Villa-Lobos e dizer que esse cara é um gênio que compôs a natureza do país dele. Aí agora todo mundo aceita.
PAS: Aceita, mas ainda não ensina?
IV: Não ensina, embora tenhamos agora um professor que tem elevado Villa-Lobos à altura que ele merece.
PAS: Seja qual for o pretexto que se dê, a verdade é que é porque ele é brasileiro, não?
IV: Não ensina porque é brasileiro e é de uma qualidade inferior, supostamente. Eu, musicalmente, coloco Villa no patamar do Stravinsky. São potências diferentes, mas são do mesmo nível. Para eles não, Villa é nacionalista.
PAS: E o russo Stravinsky não é tido como regional, mas como universal…
IV: Como eles foram educados com o ouvido para essa música universal, ouvem a partir daquele filtro.
PAS: Essa elite que ficou de costas e está de costas até hoje escravizou pessoas que vieram da África, mas é escravizada pelo pensamento europeu, não é?
IV: Totalmente. E vai demorar para mudar, porque acho complicada a ponta que tem chamado a atenção disso, o decolonialismo, que acaba colocando a figura do colonizador no centro. Operspectivismo ameríndio do [antropólogo] Eduardo Viveiros de Castro é uma ideia de que esses caras estão aí, pelas descobertas na Serra da Capivara, há 48 mil anos. Já falam em 100 mil anos. Isso é um outro conceito de civilização, não é que eles estão na idade da pedra polida. É um outro conceito de gerência de mundo, muito sutil. Decolonial já vem com uma outra carga, é como o termo etnomusicologia, “etno” é outro. Essa musicologia surge dos eruditos que foram descobrindo as maravilhas da música popula e folclórica.
PAS: Sempre de cima para baixo.
IV: É. Agora que estou munido desse arcabouço de análise, uso para reverter esse olhar, essa história da duração e da intensidade. Por que a gente privilegia as alturas em detrimento das outras coisas?, sendo que a grande força do Brasil é o timbre, o jeito de cantar de cada um, de cada sonoridade, de cada região, de pessoas, de ritmos também. É porque é assim que se pensa na Europa. O jazz, nos Estados Unidos, é a mesma coisa. O jazz também é uma música mais harmônico-melódica do que rítmica. Há quatro parâmetros que a gente precisa para identificar uma fonte sonora: duração, intensidade, timbre e altura. Só que eles elegeram um, historicamente.
PAS: Que deve ser aquele em que eram bons?
IV: Exatamente, foi a aptidão cultural dos europeus. Se a música clássica fosse na África, certamente seria uma outra coisa, porque ali a percepção é rítmica. A riqueza ali está no outro universo.
PAS: E a gente tem o privilégio de ter as duas vertentes…
IV: A gente tem todas, o Brasil é foda. Mas a pergunta que sempre me vem é esta: nós, na nossa vida cotidiana, somos a mistura desses saberes. A gente tem pequenas superstições, a gente vai na casa do outro e não abre a porta para sair na primeira vez. Por que na hora que a gente vai para a escola tem que ser só uma, que privilegia a via do colonizador?
PAS: E não só isso, você bate bastante na tecla do indivíduo versus o coletivo, o eu versus o nós. Tudo isso é o neoliberalismo, que nos condiciona a não ter o espírito coletivo, que é de que os folguedos e festas populares são feitos?
IV: É verdade, é exatamente isso.
PAS: Você vê a luz no fim do túnel dessa enrascada de 500 anos?
IV: Vejo. No curso de música da USP, não sei, tenho muitas dúvidas. É um curso muito atrasado que não dialoga com a contemporaneidade. Já se imaginou fazendo medicina ou engenharia e estudando a história desses conhecimentos até 1940? Pois é, nos cursos de música erudita espalhados pelo Brasil ainda é assim. A contemporaneidade nesses cursos fica restrita ao pessoal da composição musical.
PAS: Seus colegas já leram o livro? Vão ler?
IV: Não sei.
PAS: Provavelmente nunca vai saber, porque eles não vão dizer…
IV: Não vão dizer. O boicote é de todas as maneiras. Antigamente tinha um jornalzinho no departamento, que falava das atividades dos alunos e professores, contava quando a pessoa ia tocar em tal lugar. Em 2010 fui convidado para tocar na Inglaterra, ganhei um prêmio da Funarte. Mandei para o jornal e não colocaram nada. Aí parei de mandar, não querem saber. Pelo menos na elite da música, desse pessoal erudito, o que fazem é apagar. Trabalham para apagar. Não citam, não comentam.
PAS: É o silêncio do poder que governa tudo, o que falam existe, o que não falam não existe. E você fica no meio-termo, porque existe, está lá dentro, mas ao mesmo tempo não existe.
IV: Faziam encontros de compositores do departamento e não me convidavam. Tudo bem, não me incomodam essas coisas. Já compus coisas eruditas também, mas aprendi a ficar silencioso, não participar das coisas. É muita burocracia. Toda vez que, no conselho, definem a distribuição de cargos burocráticos-administrativos me mandam para longe do departamento de música, lá para a Sibéria. Luiz Tatit um dia me disse que a universidade não quer que sejamos professores, efetivamente. Quer que ocupemos cargos burocráticos, e é claro que essa condição estimula o auto-favorecimento, a ajuda aos amigos etc. Falei para o chefe do departamento e para o chefe da comissão de graduação: não, eu quero aqui, me dá o seu cargo, eu assumo agora, de coordenação da graduação, de chefia.
Eruditos contra populares, estabelecidos versus outsiders
PAS: Você cita bastante o livro Os Estabelecidos e os Outsiders, do sociólogo alemão Norbert Elias, é disso que se trata? São outras variantes de uma mesma coisa?
IV: No fundo, o eixo principal desse discurso todo é do Norbert Elias, em O Processo Civilizador (1939) e Os Estabelecidos e os Outsiders (1965). Fui ler em Portugal, quando fui para lá. A cena mais rica da música portuguesa é a da Ilha da Madeira, a mais moderna, a mais solta.
PAS: Por que isso?
IV: Porque é periferia. É o rap, o funk, é de onde vem a novidade. Os centos estão estabelecidos, seguem regras, têm que dar satisfações.
PAS: Seus pares na academia vão ter um desmaio lendo você usar as palavras rap e funk de modo respeitoso no seu livro?
IV: É. É, tinha uma professora lá que nem era concursada do departamento, era do IEB [Instituto de
Estudos Brasileiros, da USP] e dava aula lá, fazia anos. Durante um ano eu dei aulas numa sala ao lado da dela e toda semana ela esperava os alunos na porta. Eu passava por ela e dizia: boa tarde, professora. Ela virava a cara. Um dia, num restaurante da USP, eu estava indo almoçar com Alfredo e Ecléa Bosi e ela veio até eles dizendo “boa tarde, professores”, cheia de abanos e reverências. Dei um
passo atrás e Ecléa, percebendo, disse: “Este aqui é um grande amigo nosso, o professor Ivan Vilela, da ECA, você o conhece?”. Essa professora, com a cara de pau disse: “Ah eu não conheço, muito prazer, professor”. Haja hipocrisia. Comentei com Ecléa e Alfredo que ela já me conhecia e eles comentaram: “Tem gente assim na universidade”. Um dia, essa professora estava comigo, numa banca de um aluno meu de mestrado, um aluno mineiro, muito humilde, que fez um trabalho belíssimo sobre os processos composicionais do Almir Sater. Ela falou: “Almir Sater é música de entretenimento”. É mesmo, professora? A senhora já ouviu? “Eu já ouvi muito.” Então me fala o nome de uma música dele, ou canta um pedacinho aí.
PAS: Você fez bullying com ela em público…
IV: Em público. Falei para o aluno: olha para mim, conversa comigo. Foi aprovado. Um dia fui em outra banca com ela, era um trabalho legal, mas com questões da orientação, dessa orientação de ler cultura popular a partir de lentes da cultura erudita.
PAS: “Eurodita”.
IV: “Eurodita”. Falei ao aluno: aqui você está tratando essa música como comercial, mas que música não é comercial? A Filarmônica de Berlim, quando grava um disco e vende, é música comercial. Almir Sater é música de entretenimento, Ivan Lins era, mas agora que ele doou o acervo para o IEB e apareceu em uma foto no Jornal da USP junto com essa professora, deixou de ser música de entretenimento. Ela ficou puta.
PAS: Vocês são uma arena de leões…
IV: Preciso ser mais manso e não deixar, mas tem hora que não aguento. Essa professora que falou que eu andava passeando por aí, um dia chegou para mim – ela estudou comigo na Unicamp, virou uma nova rica. Ela falou para os alunos: “Esse negócio de greve é bobagem, eu não preciso desse dinheiro. Faço o que gosto, deixa os professores aí fazerem”. Nesse nível. O instrumento dela é o piano.
PAS: A maioria dos meus professores na ECA nunca tinha entrado em uma redação de jornal. Na música também é assim, só teoria?
IV: É sobre o saber da experiência, né? Ela me falou um dia no corredor: “Estou muito feliz, tenho mais alunos que você”. Nossa, que legal, que bom, porque dar aula de percepção para menos gente é muito melhor. Ela traduziu um livro norte-americano, que é sua única publicação, muito quadrado, que ensina por negativas. Isso não se usa mais, ensino é sempre positivo.
PAS: Tudo que está no livro você ensina abertamente para seus alunos? Como eles assimilam? Como é sua relação com eles?
IV: Abertamente. Tem um grupo de alunos que gostam muito de mim, se formaram e continuam próximos.
PAS: São os cotistas, ou não há essa relação direta?
IV: Não, porque os cotistas são mais da música erudita. Mas tem um exemplo que virou uma bíblia, uma menina jovem, Luísa Carvalho. Ela é do Capão Redondo, estudou na escola de Ibirapuera, super-música. Toca flauta, mas também toca violão. Se você vê essa menina no Instagram, fica impressionado com o talento. Ela me disse: “Você foi um marco na minha vida e de alguns alunos, porque ensinou a gente a pensar fora da caixa”.
PAS: E você tem aluno resistente, que não aceita de jeito nenhum o seu discurso? Como isso se manifesta?
IV: Tem. Teve um aluno de regência, do terceiro ano, ele trancou a matéria. A primeira coisa que faço na aula de ouvir música é: todo mundo sabe cantar “Atirei o Pau no Gato”? “Sabemos.” Então vamos cantar, dó maior, escreve aí. Ele não sabia escrever. Falei: “Parabéns pra Você”, vamos lá. Ele não sabia escrever. É muito elementar. Quando fui falar com ele para fazer um acompanhamento à parte, na terceira aula, tinha trancado. Mas, de maneira geral, como pego os alunos do terceiro ano para frente, minha caveira já está feita. Vejo, às vezes, algum maravilhamento em alguns alunos, quando descobrem que, pô, esse cara é legal, não é o babaca que os professores estavam falando. Normalmente é no curso de música, porque o curso de história da música popular é aberto a toda a comunidade. Vem gente de fora, inclusive. É baseado em escuta e contextualização histórica, todo mundo está aprovado já, não precisa fazer trabalho, só precisa vir à aula e não ligar o celular durante a aula. Esse curso é para formar cidadãos. Vi pelos meus filhos, que na faixa dos 20 anos não tinham mais razão para gostar do Brasil. E pela música vão achando um eixo, vendo que a música é legal, que tem um povo legal no Brasil. Os jovens hoje não conhecem a música popular, nunca vão perceber o tamanho da riqueza desse universo.
PAS: Os colonizadores estão nadando de braçada?
IV: Exatamente, e a gente podia colonizar o mundo com a música popular. Vivi situações na Europa com música. As pessoas ficam impressionadas, que coisa maravilhosa. Quando descobrem isso, os jovens começam a sentir orgulho.
PAS: Em geral os alunos chegam se achando gringos?
IV: É, e vão aprendendo a escutar e a ter opinião. Digo que eles têm que aprender a pensar e têm que me convencer. Um dia falaram: “Você é muito autoritário, não aceita nossa opinião”. Aceito, mas eu quero que você me convença com seus argumentos.
PAS: Eles têm razão? Você tem tendências autoritárias?
Músicos que sabem ler, mas não sabem escutar
IV: Eles fazem meme comigo, deixo brincarem. Quanto mais você tenta proteger sua imagem, pior ela fica.
PAS: No livro você fala que na faculdade de música não se estudam discos. Tudo bem, Beethoven não gravou disco, mas como entender isso?
IV: Luísa, aquela aluna, comentou comigo de um professor que já se aposentou, um cara legal, mas que foi com 19 anos para a Alemanha. Estavam ouvindo música, e ele disse: “Ouvir música não é importante, importante é ter a partitura aqui”. Aquilo marcou ela. Ouvir a música é mais importante, isso é primário. Uma vez fui tentar tirar um tango do [bandoneonista argentino] Astor Piazzolla para fazer um arranjo, era uma nota, outra aparecia de repente, outra entrava. É impossível a escrita, não dá. Aí encontrei um amigo que afinava piano, um argentino, que tinha um bandoneon. Pedi para ele tirar, que eu queria entender. Ele pôs a mesma música, era tudo em colcheias, e explicou: “Tango é roubado, você tem que tocar roubando o tempo, atrasando, acelerando. Se não, não é tango”. Se pegar escrita de música folclórica brasileira, você fala: que coisa boba. Mas se vai ver o povo cantando, não. A escrita é mais uma guia, aquela escrita é para música europeia. A depender do samba do Djavan, é uma medida diferente, no outro samba é outra. João Bosco é outra medida, Tom Jobim é outra, Chico Buarque é outra. Cada um joga de um jeito.
PAS: Você quer dizer que a gente só percebe isso escutando?
IV: Se você for ler a partitura, você vai achar que é [cantarola de modo linear e monótono] “tinha cá pra mim que agora enfim eu vivia o grande amor”, não é assim que a gente canta.
PAS: Na verdade, o disco é a tradição oral do século XX? É o que se chama, muitas vezes pejorativamente, de folclore?
IV: E a tradição oral está voltando agora com os podcasts. Eu estudo história por podcast. Você conhece o podcast História Preta? É legal, um jovem negro que fez história no Rio. Tem um dele que chama “Eu Sou Exu”, um de história do funk carioca, é um barato. Ele lê socialmente as coisas. Até dá uns foras musicais, fala umas bobagens, mas é irrelevante. A leitura social, da perspectiva do preto, é muito bacana. Ele inverte a leitura das coisas.
PAS: É o que você fala no livro sobre olhar o mundo com os nossos olhos e não com os dos outros? O cara preto não olhar com o olho do branco, por exemplo?
IV: Exato. Uma vez fizeram um cartazinho na porta do departamento: “Procura-se um ogan”. Eu achei o máximo, até fotografei, quando é que vai ter um ogan no departamento?
PAS: Tem preconceito quanto a candomblé lá dentro?
IV: Total, ainda mais entre os evangélicos.
PAS: De uma maneira geral, como são os evangélicos musicalmente?
IV: Eles tocam direitinho [risos]. Esfregam o arco direitinho. Dá vontade de dizer: fuma um baseado, vai assistir Woodstock, vai fazer outras coisas, abre um pouco.
PAS: Eles estão entre os que não sabem escutar, que só sabem ler?
IV: São poucos desses alunos que escutam. A faculdade que menos dá aluno para mim nas matérias de música popular é a de música, normalmente a grande maioria é da FFLCH e da psicologia.
PAS: Como é que aquela escola produziu, por exemplo, Arrigo Barnabé? Ele é meio o oposto de tudo que você está criticando, não?
IV: É essa força da natureza do autodidata. Não no sentido de Arrigo ser autodidata, mas de já ter essa força dentro. Luiz Tatit é um cara muito interessante, embora eu não ame profundamente, acho interessante, musicalmente gosto. Em 2010, Chico Costa, que era editor da Revista USP, pediu para eu organizar um número da revista só sobre música. Fiz um de música não-canônica e não chamei Wisnik nem Tatit. Foi até descortês da minha parte, mas não tinha como chamar.
PAS: Mas quem que entrou?
IV: Chamei Luiz Carlos Sá, do Sá & Guarabyra, para escrever sobre rock rural. Marcos Napolitano falou de samba-canção. Eu falei sobre Clube da Esquina. Não deixei ninguém falar de bossa nova e tropicália. Se escrever no Google “PDF” e “tropicália” ou “bossa nova”, você vê a quantidade que tem, são centenas de artigos. Clube da Esquina não era, agora está começando a virar moda. Tropicália é maravilhosa, mas…
PAS: É como ter cinco sentidos e só usar um?
IV: É verdade. Gosto de tudo, de maneira geral, adoro a tropicália. Em 2016, fiz uma outra revista para fazer as pazes com todo mundo. Foi sobre música popular brasileira na USP, aí chamei todos os professores e chamei duas professoras, que não foram. Aí vêm chicotada: “Você só põe homem”. Porra [ri], elas foram convidadas. Eu estava agora na Alemanha, e um professor lá me falou: “Sua filha está acabando o curso de composição, manda ela para cá, que agora as orquestras estão pedindo mulheres compositoras”. Mas quando você solta a vara de um lado, ela vem para o outro. Não posso escrever sobre preto, sou desautorizado. Não posso escrever sobre congado, por exemplo. Aí a gente rodeia, vai falar do Milton. Estou preparando esse livro sobre Clube da Esquina agora.
Professores “euroditos” e a tática da fofoca
PAS: No livro, você atribui o termo “eurodito” a jovens, quem são esses jovens? Seus alunos?
IV: É uma sátira dos alunos. Ouvi eles dizerem uma vez, achei o máximo, adorei. Era o pessoal da música popular.
PAS: No livro você diz que o ensino de música na universidade atual é como se fosse estudar odontologia e parasse nas técnicas do século XV. Trabalhei na revista CartaCapital por muito tempo, Mino Carta é exatamente assim. A cultura para ele terminou com Caravaggio, não gosta de música brasileira. É mais um retrato do pensamento da sua escola.
IV: É mesmo? Minha irmã está frágil, mas muito lúcida, tem contado muitas coisas da época da tortura, está lembrando as coisas. Falei: madrinha, vou falar pra você, eu nunca acreditei na sua geração. Sempre fui de esquerda, mas nunca acreditei. Ela falou: “Por quê?”. Porque vi os homens, eram todos machistas, preconceituosos, racistas. Como esse povo vai tomar o poder e fazer mudança? [A filósofa] Márcia Tiburi tem uma frase ótima, que nem todos os filósofos quiseram mudar o mundo, as feministas querem. Isso é muito bacana.
PAS: Filosofia é outra área eurocêntrica, não? Será que eles quiseram mudar o mundo mesmo [risos], ou estavam garantindo o deles?
IV: Não, acho que não, né? É totalmente eurocêntrica.
PAS: Mas hoje isso tudo está em xeque, não valem mais as regras que sempre valeram, ou pelo menos tem mais gente contestando e contestando ao ar livre – os pretos, os gays, as mulheres.
IV: É, essa situação que aconteceu em Ribeirão Preto com os alunos gays, se tivesse acontecido em São Paulo os professores iam apanhar, iam tomar porrada dos alunos. Eles sabem que o ambiente é outro, os alunos aqui são muito mais agressivos.
PAS: Mas você falou da professora racista que queria tirar os cotistas…
IV: Ela falou para um professor, que é pardo e me contou, e eu cuidei de contar para os alunos [risos], saibam com quem vocês estão lidando.
PAS: Falou o milagre e o santo? Você é linguarudo [risos].
IV: Falei o milagre e o santo. O jeito que a gente tem de enfraquecer esse povo é esse. É a tática da fofoca. Foi o jeito que a gente derrubou Benito Juarez na Unicamp. Ele era professor da graduação e não dava aula, era professor da pós e não dava aula, era maestro da Orquestra Sinfônica de Campinas e era diretor da Orquestra de Câmara da Unicamp. É proibido por lei ter dois cargos públicos. Ele tinha dois cargos públicos, mas não cumpria duas das quatro funções. A gente tentou de toda forma, não tinha jeito de derrubar o cara. Aí começamos com a fofoca. E um dia essa fofoca chegou num aluno do primeiro ano.
PAS: Nesse momento você era aluno?
IV: Eu estava no mestrado já. Esse menino fez mil cópias num panfletinho, num papelzinho jornal, e espalhou. Aí ele afundou.
PAS: Seus filhos são músicos?
IV: Os três são, mas só a mais velha está estudando composição. O outro é cinéfilo que faz matemática, toca guitarra, adora Pink Floyd, toca bem, mas não se mostra. O negócio dele é ler, é o intelectual da família. O outro, o caçula, faz química, tocava piano, foi morar em Portugal comigo e virou violeiro. Hoje ele tem canal de viola na internet e faz química na Universidade Federal de Diamantina.
PAS: Um virou intelectual, outro foi para a música popular e outra foi para a erudita?
IV: Isso. Minha filha, na realidade, compõe música popular, mas está vendo que é onde o campo está crescendo para ela, e é essa composição orquestral. Ela toca piano e acordeon.
PAS: Uma pianista, um violeiro e um guitarrista?
IV: Isso. José toca piano também, mas começou com a guitarra.
PAS: Faz música de entretenimento?
IV: É esse filho [ri]. Na época dos iPods, ele pediu para copiar os discos do Led Zeppelin e do Pink Floyd. Eu tinha tudo.
PAS: Você era roqueiro também, então, além de violeiro?
IV: Não um roqueiro integral, mas gostava. Gostava de rock. A segunda música do disco Paisagens (1998) é um rock progressivo nordestino, “Armorial”. Tem outras meio pinkfloydianas, vai misturando. Perguntei se meu filho queria que eu gravasse umas músicas minhas, ele falou: “Não, não precisa não, brigado” [risos]. Depois veio falar: “Pô, pai, meu colega na Ufscar falou que um professor citou você, grava as músicas para mim”. Agora ele já está ouvindo.
“Pense em Mim”: sucesso sazonal ou um clássico sertanejo?
PAS: Preciso fazer uma provocação, sobre o momento do livro em que você fala dos sertanejos e de “Pense em Mim” (1990). Você está sendo eurocêntrico ao rejeitar “Pense em Mim”? Não é eurocêntrico, mas você está hierarquizando, dizendo que “Pense em Mim” é uma música sem valor artístico. Não acaba cometendo o mesmo erro que acusa nos “euroditos”?
IV: Gostei da provocação, posso tentar responder isso da seguinte maneira: já desde os anos 1980, tem um tipo de música sendo produzida no Brasil, inclusive hoje é a inteligência artificial que faz. Você tem a música muito baixa, muito ruim, para ser vendida. É a música fácil. Antes [o engenheiro acústico francês] Abraham Moles, teórico da comunicação dos anos 1960, falava que uma obra de arte tinha que ter uma grande dose de informação e uma pequena dose de redundância, porque a redundância fazia o leigo se apegar. Ele até falava que uma música atonal não tem redundância, então as pessoas têm dificuldade de escutar. Hoje, essa redundância melódica é harmônica. Você ouviu falar dos quatro acordes mágicos?
PAS: Não.
IV: São três australianos que pegam quatro acordes e emendam 40 hits do mundo pop com os mesmos acordes. As pessoas estão condicionados, é conforto para os ouvidos. Tem um brasileiro que vive nos Estados Unidos, um jovem guitarrista chamado Marco Antero, que mostra que o riff de guitarra mais famoso do mundo, do Deep Purple, é a “Maria Moita” (1964) do Carlos Lyra. Esse menino tem a partitura, ele analisa.
PAS: Você está dizendo que o heavy metal inteiro veio de “Maria Moita”?
IV: De “Maria Moita” [risos].
PAS: Bem, dizem que o Kiss copiou os Secos & Molhados e que o Black Sabbath copiou alguma coisa da Vanusa…
IV: Ah, é? Isso eu não sabia. Mas esse cara mostra uns oito discos de músicas de rock inglês menos conhecidos, que os caras lançavam, e depois o Deep Purple lançava a mesma música com outra letra. Diz que Richard Blackmore é um puta plagiador mesmo. E tem um outro trabalho desse menino que se chama A Nota Ré. Ele vai mostrar que, dentro da escala de dó maior, no campo harmônico, a nota ré combina com acorde de dó, de mi, de fá. É uma nota muito cómoda, ela não cria tensões. Ele pega três duzias de músicas pop, põe um tacladinho e vai mostrando que os caras não saem da nota ré. Então tem outra redundância agora.
PAS: Chegando aos sertanejos, é isso que eles são, redundância pura?
IV: Isso, “Pense em Mim” é uma música muito ruim.
PAS: Você diz que é um sucesso sazonal, mas essa música não foi sazonal, ela permaneceu, é um clássico do gênero.
IV: Você vê algum jovem cantando hoje? Só gente mais velha. Raul Seixas eu ouço os jovens cantando.
PAS: O que eu estou querendo provocar é que o que a gente não aceita hoje pode virar cânone daqui a 200 anos.
IV: Pode ser que sim, pode ser que não. O que eu quis dizer ali é que esse pessoal não sabia cantar nenhuma música caipira e na hora que entra uma música de mercado, que estava sendo muito tocada sobretudo no governo Collor, aí todo mundo sabia. Eles não conhecem música brasileira, só conhecem a música que é tocada pela grande mídia.
PAS: Entendo e tendo a concordar, mas tem uma contradição aí, você não está fazendo a mesma coisa que denuncia durante o livro inteiro?
IV: Tem uma contradição, mas ao mesmo tempo eu não preciso gostar de tudo, né?
PAS: Claro que não.
IV: Posso estar olhando coisas e achando que umas são pobres e outras são melhores.
PAS: A gente pode não gostar do sertanejo atual, mas não dá para recusar ele em massa.
IV: Não, não dá pra recusar. E se você recusar encontra um tsunami. É mais ou menos o que a esquerda queria fazer na época dos tropicalistas. Não, relaxa, e que a onda venha. A onda pop está vindo, a onda do rock, tem que relaxar e ver como é que a gente vai boiar nela, se aproveitar dela.
PAS: Em outro momento você diz que os artistas ditos autodidatas fazem imitação criativa. Mas os que estudam não fazem a mesmíssima coisa?
IV: Coloco isso, que o mestre de congado compõe igual o João Bosco. Eles compõem o mesmo sistema, que é a coisa da imitação criativa. No erudito menos, porque no erudito você aprende lendo. Eu aprendi a tocar violão de ouvido, para depois ler.
PAS: Mas ler partitura não é imitar também? Você lê e faz igual.
IV: Você lê e faz igual e continua fazendo igual a vida inteira. Agora, o que copia de ouvido, não, ele vai imitar criativamente, vai fazer outras coisas, mesmo porque ele não quer ser cover do outro. Ele também tem um orgulho próprio de falar: não, deixa eu inventar o meu jeito.
América Latina é Ocidente?
PAS: Você critica [o historiador francês] Roger Chartier, que fala que a história do Ocidente é a história da escrita, e aí nós da América Latina estamos fora, nem existimos dentro desse conceito.
IV: Vim saber depois que é um elefante, o Ocidente para ele é Nova Zelândia, Austrália, Israel e Europa. [O linguista] Álvaro Silveira Faleiros, que fez o posfácio do livro, falou que quando o pai dele foi preso político e se exilou na França, ele estudava numa escola multinacional, e os alunos da Austrália falavam: “Nós somos o Ocidente, vocês do Brasil não são o Ocidente”. É uma partilha, na realidade, de um hemisfério quase, mas ela pega Austrália, Nova Zelândia, Europa e Estados Unidos. Só descobri isso agora, foi aí que percebi que Chartier pode ter falado nessa visão de que a América não é o Ocidente.
PAS: Provavelmente nem lembrou que a América existia.
IV: Pô, mas estava dando entrevista para quatro mexicanos [risos]!
PAS: Você acha que o termo Sul Global resolve melhor? A Rússia não fica no Sul…
IV: Não fica no Sul Global, é verdade. Foi até uma sugestão do meu irmão, que trabalha com geopolítica: “Põe Sul Global, não põe Ocidente, não”.
PAS: Antes nos chamavam de Terceiro Mundo, que é hierárquico ao cubo.
IV: Você sabe que eu vi uma vez uma explicação de uma professora, uma alemã ligada à antroposofia, de que o norte do planeta eram os corpos, e o sul eram os intestinos. Olha que absurdo, cara. Mas quem disse que o norte está em cima? Nós estamos no espaço.
PAS: Foram os “de cima” que disseram, os que estão no norte suposto.
IV: Eu brinco que não preciso achar meu norte. Acha o sul, cara, não acha o norte que você está fodido.
PAS: Você concorda que os jovens brasileiros estão mais anglófonos que nunca?
IV: Só ouvem música pop.
PAS: Só ouvem Beyoncé, só falam botando um monte de inglês no meio das frases. Tudo bem, isso sempre aconteceu, não adianta a gente querer ser Noel Rosa e reclamar do cinema falado [risos]. Mas é desesperador.
IV: Tem alunos que compõem em inglês. Compõem canção em inglês, tocam rock em inglês. Encontrei um ex-aluno que disse: “Sabe que eu estou começando a compor em português agora? Estou achando legal”.
PAS: Tiago Iorc só fazia disco em inglês. Depois aprendeu português, mas continua tão ruim quanto sempre [risos]. Os rappers passaram por isso também.
IV: O inglês está dominado no mundo, lembro de ir para o interior da França e no bar estava tocando música pop de língua inglesa. Na Alemanha, um país que tem uma cultura mais forte, é música pop de língua inglesa. Todo lugar. Tive uma aluna interessantíssima, das relações internacionais, que fez uma pesquisa sobre por que o reggaeton não entrou nem consegue entrar no Brasil. Ela encontrou várias explicações, mas uma que dei para ela é que saiu nos anos 1990, numa matéria na Veja, que todos os similares brasileiros de sucesso estrangeiro vendiam mais no Brasil. A língua pode ser a questão, mas acho que tem uma coisa do gosto, do apego pela música mesmo.
PAS: Tem a questão do isolamento do Brasil, que, por ser o único país latino-americano que fala português, fica de costas mesmo para a América espanhola.
IV: É, e eles concorrem com dois oponentes aqui, que são o funk e o rap. É difícil derrubar.
PAS: Por falar em reggaeton, assim como você fala que a elite brasileira fica de costas para o Brasil, o Brasil de um modo geral também fica de costas para seu próprio Norte, não? Em geral a gente não se vê na música da Amazônia.
IV: E nem na música do Sul. Quem conhece Celdo Braga?, que é um autor famoso de Manaus? Tem um paraense, Tem um paraense, Walter Freitas, um ator de teatro, que gravou um disco tão bonito [Tuyabaé Cuaá, 2021]. O cara canta maravilhosamente, umas melodias diferentes, umas coisas meio indígenas.
PAS: [O pianista, compositor e maestro paraense] Waldemar Henrique devia ser ensinado na faculdade de composição?
IV: Claro. Mas ele é ensinado na área do canto. Compôs “Uirapuru” (1934), muita coisa para piano e voz. O pessoal do canto conhece.
PAS: O canto é marginalizado na música erudita? Ou não existe essa hierarquia?
IV: Tem bacharelado em canto lírico e ópera, mas é uma coisa à parte. O cantor é um ser à parte dentro do departamento, ele não é músico. É uma tribo à parte, os cantores andam juntos.
PAS: Canto popular, nem pensar?
IV: Não tem nada de popular no departamento. Cheguei para um professor que é um puta violonista, professor de violão, e falei: Eu estive conversando com [o violonista, guitarrista, compositor e arranjador] Paulo Bellinati, ele está ruim, com distonia focal, tem que tocar com palheta. Pô, um cara que tem uma obra tão representativa, vamos articular um doutor honoris causa para ele. O professor fugiu. Nunca mais falou no assunto.
Um Brasil positivista, de 1889 até hoje
PAS: É a questão de o Brasil ser determinista e positivista até hoje, como você descreve no livro?
IV: A gente está vivendo assim até hoje, e a música erudita vive sob os auspícios do século XIX, “mais vale formar um gênio que 500 alunos bons”. Todo ano tem um concurso para ver qual aluno vence para tocar com orquestra. É corrida de cavalos. Por que não chama todos os alunos que estão mais aptos e faz um concerto inteiro com cada um tocando uma música? Não, o estímulo é para a competição.
PAS: E é o individualismo, a ideia de que o gênio individual tem que prevalecer.
IV: Eles vivem ainda numa memória do século XIX. Música de entretenimento. Mas não percebem que [o filósofo alemão Theodor] Adorno tem um pensamento burguês, porque a música na época do [compositor austríaco Wolfgang Amadeus] Mozart era a música do povo. Era o povão que ia assistir.
PAS: Era o Chitãozinho & Xororó da época?
IV: Mas era um Chitãozinho & Xororó bem criativo. Era uma Janete Clair, um Dias Gomes, um Roberto Carlos. Brinco com os alunos todo ano: quem gosta do Roberto Carlos levanta a mão. Três levantam a mão. Mas quando Caetano canta “Debaixo dos Caracóis dos Seus Cabelos” (1971) vocês gostam, então o problema é Roberto, não é a música do Roberto.
PAS: Uma vez estive em um debate numa biblioteca pública, um jovem da plateia não sabia quem era Gal Costa. Mas não é preciso entender que o tempo passou, que Gal Costa é para os jovens o que Aracy de Almeida foi para nós?
IV: Quem conhece Mozart? Quem conhece Beethoven? Tento sugerir a eles que o que estou ensinando não é para escutarem, é para saberem que existiu, para terem uma noção de história, de que existe um fio aí. O movimento dos anos 1960 que mais perdurou na música popular foi a jovem guarda. Ela entrou no rock nacional, está viva até hoje. Mas acho Leandro & Leonardo fracos.
PAS: Mas também é um fio, talvez uma história trágica, o caipira vem dar no sertanejo que vem dar no sertanejo de hoje, que é o agronegócio. Antes era o universo rural, hoje é o agronegócio.
IV: Mas não é consenso entre os pesquisadores que o sertanejo romântico e o sertanejo universitário sejam desdobramentos da música caipira. Tem quatro coisas constantes que caracterizam a música caipira nos anos 1930, 1940, 1950, 1960 e 1970, até antes de Léo Canhoto e Robertinho: o uso da voz duetada – sempre duas vozes -, a utilização de um arcabouço rítmico – há 17 ritmos pertinentes a essa cultura -, a utilização de um instrumental de uso constante e a utilização do romance como base poemática.
PAS: Foi você que contou esses 17? Cada um tem seu nome?
IV: Isso, todos escritos. Isso é uma nota de rodapé do meu primeiro livro [Cantando a Própria História – Música Caipira e Enzaizamento, Edusp, 2015]. O livro é chato, uma história social da cultura caipira. O capítulo da música é legal, mas tem capítulos que já não são tão interessantes, mais sociológicos. Mas voltando, é o canto duetado, a utilização do arcabouço rítmico, a utilização de um instrumental de uso constante e a utilização do romance como base poemática. Na música caipira a viola e o violão são protagonistas, mas também tem baixo, percussão, um monte de coisa. Em cururu e desafio, tudo tem carreira, a carreira da canoa, tudo tem que rimar com “oa”, “domingo de tardezinha eu estava mesmo à toa/ convidei meus companheiros pra ir pescar na lagoa”. Tem carreira do divino, tudo em “ino”, que é um desafio e, quando entra no disco, vira um romance. Essas características são constantes, e no sertanejo deixam de existir.
PAS: As chamadas “feminejas” não têm esses quatro elementos?
IV: Não, embora eu adore as “feminejas”, e também esse movimento fortíssimo das violeiras agora.
PAS: Por exemplo, ainda existe a figura do caipira do Antonio Candido [no livro Os Parceiros do Rio Bonito, 1964]?
IV: Sim, mesmo com o Candido dizendo que a cultura caipira desapareceria. Isso eu discuto no primeiro livro. [A socióloga] Maria Isaura Pereira de Queiroz foi a primeira que bateu nele, falando que não, não acabou. Inclusive as comunidades que mantiveram contato com as cidades preservaram mais os valores do que as que estavam totalmente isoladas.
PAS: De alguma maneira, os sertanejos atuais não são o caipira de hoje, que fala com o R retroflexo?
IV: Não, falar com o R retroflexo todo mundo no estado de São Paulo fala, até quem ouve rock. Eu ainda tenho dúvidas. Eu li o livro Cowboys do Asfalto [do historiador Gustavo Alonso, 2011], muito bacana, mas ainda tenho dúvidas. Recebi um TCC de um menino que afirma que quem inventou a música sertaneja foram Milionário e José Rico. Não, é muito pretenso falar uma coisa dessa. O que esses caras fizeram foi popularizar a rancheira, que é um ritmo que veio Com [o estadunidense-mexicano] Miguel Aceves Mejía, um cantor que trouxe os ritmos espanhóis para cá. Michel Teló, Maria Cecília & Rodolfo fizeram sucesso em 2011, são sazonais, daqui a um tempo gente não vai lembrar mais dessas coisas. Por isso chamo de música sazonal. Chitãozinho & Xororó, não, esses caras têm um arcabouço até caipira. Eles gravaram coisas de música caipira.
PAS: Michel Teló com “Ai se Eu Te Pego” (2011) não estava retomando a sanfona de Luiz Gonzaga de volta e levando para o mundo?
IV: Ele, é bom, é um puta músico. Agora, você sabe a infraestrutura que tem por trás da Ana Castela.
PAS: O agronegócio. Promovem um show e depois vão fazer umas queimadas. Hoje estão no poder, é uma música caipira, sertaneja ou como quer que se chame com uma sustentação financeira que não aconteceu antes.
IV: Tudo mudou muito. A internet, quando surgiu, foi um escape, de alguma forma desmontou as gravadoras. Quando o CD acabou, as gravadoras começaram a empresariar os artistas. Agora o jeito delas para ganhar dinheiro é dar conselhos. A gente não sabe muito aonde vai chegar isso. Tem Thiagson, um menino que fez um doutorado que está todo polêmico na rede social, sobre a putologia do funk [autodeclarado professor e música clássica e doutor em funk pela USP, Thiago de Souza é autor da tese Putologia Avançada – Musicologia do Funk].
O transtorno eurocêntrico
PAS: Outra provocação que você faz no livro é sobre o “buraco cognitivo” em que vive a pessoa que acha que é europeia e vive no século XV. Diz que essa pessoa precisa de tratamento. O eurocentrismo é uma doença? É um transtorno?
IV: É um transtorno. É um transtorno social.
PAS: Como se chamaria esse transtorno? Não é o obsessivo-compulsivo, nem o de déficit de atenção [risos]…
IV: Imagina você ser educado como naquele filme Muito Além do Jardim (1979), com Peter Sellers. O cara viveu no jardim a vida inteira, então tudo que ele vai falar é sobre o jardim. Ou a menina de 21 anos que em 2009 não sabe quem foi Chico Buarque. É grave. Vivem numa esfera em que não têm contato, é um buraco cognitivo, eles não sabem em que país estão. Falei para a colega racista: você tem que ganhar dinheiro na Alemanha, sua formação toda foi na Alemanha, você só fala da Alemanha, por que você não está lá?, por que você está ganhando dinheiro aqui?
PAS: Ela soube responder?
IV: Não. Ela é absolutamente germânica.
Brasil, um país sem universidades até o século XX
PAS: Uma coisa que deu nó nos meus miolos, pensando sobre, é o que você fala sobre o Brasil não ter tido universidades até o século XX. Há uma ambiguidade no que você defende, que na verdade a riqueza da nossa música se deve a esse fato. Portanto, há um lado bom em a gente não ter tido universidade até o século XX?
IV: Tem um lado bom, da oralidade. Tem um lado bom.
PAS: Lula não acha isso, ele acha que foi um absurdo a gente não ter tido universidade por 400 anos.
IV: Ele não está olhando o todo.
PAS: Na verdade, ele também é filho disso.
IV: A diversidade do folclore latino-americano, da América do Sul, é muito rica, mas não se compara com a do folclore brasileiro. Todos os países têm uma característica, que é o três contra dois [cantarola batendo os dedos na mesa]. O que é isso? É a música renascentista espanhola. Como eles tiveram acesso à escrita, ao estudo, ficou muito demarcado. O nosso é mais…
PAS: …Esculhambado mesmo…
IV: É, é mais esculhambado. Essa criatividade vaza para todos os lados.
PAS: E aí você é homem-bomba de novo, concluindo que a universidade não é tão legal assim?
IV: Não é tão legal do jeito que está. Poderia ser se agregasse, como tento falar no capítulo “A cultura como boi de guia”. A gente tem a chance de juntar o rus com o ex-rus agora. Porque nós somos essas duas coisas. Só que no ensino a gente não junta.
PAS: O circo morreu, entre aspas, quando os circenses começaram a mandar seus filhos para a universidade, e todos os circenses foram fazer rádio ou televisão. Foram fazer uma indústria que é um circo, mas em outro ambiente, eletrônico. É a mesma coisa?
IV: A universidade é mais unívoca, é uma via quase que de mão única. [Os filósofos franceses Gilles] Deleuze e [Felix] Guattari falam bastante que o saber oral é rizomático. É como a raiz do gengibre, ela vai indo. É uma mandioca, vai indo para todo lado. E a outra é mais pivotante. O sentido é aquele.
PAS: O que faz a MPB dos anos 1960, a primeira a ir para a universidade? Ela tenta apagar o passado?
IV: Nunca tinha reparado isso. Olha que bacana. Verdade. Mas, ao mesmo tempo, os tropicalistas vão regravar Vicente Celestino. Se eu pudesse dar adjetivos, eu diria que a bossa nova é esteticamente, a tropicália é conceitualmente e o Clube da Esquina é musicalmente. Bom, a bossa nova é foda mesmo.
PAS: A canção de protesto seria o quê?
IV: Todo mundo que estuda canção de protesto fala das letras, mas ninguém fala dos ritmos que eles fizeram. Gonzagão trouxe uma modalidade, eles trouxeram uma polimodalidade, como o Canto Geral de Geraldo Vandré (1968) ou o Quarteto Novo. Eles trouxeram instrumentos que não eram comuns na música popular, como a própria viola.
PAS: Quarteto Novo traz a viola e Edu Lobo canta “quem me dera agora eu tivesse a viola pra cantar”. Estavam ligados nessa luta de classes?
IV: A música popular tem alguns eixos principais, a antiga que deu origem à nova. Um eixo é Ernesto Nazareth, Chiquinha Gonzaga, Pixinguinha, Anacleto de Medeiros. Outro eixo são os sambistas dos anos 1930, Noel Rosa branco e os outros todos pretos.
PAS: Noel é o que fica mais famoso porque era branco?
IV: Não, porque a crítica dele é menos local. Wilson Baptista e Geraldo Pereira estão falando da cabritada malsucedida, do Chico Brito que vem descendo o morro na mão do Peçanha, é tudo história de favela. Noel está falando mais do governo do Getúlio Vargas, “Onde Está a Honestidade” (1933), está narrando outras coisas. Ele é mais aberto enquanto cronista. Um outro eixo é o harmônico. Essas harmonias sofisticadas e acordes dissonantes vieram pelo cinema, não foi a bossa nova. A bossa nova popularizou, mas já eram usados por Radamés Gnattali, Garoto, Laurindo de Almeida, Valzinho, que era o violonista da Rádio Nacional e Zezé Gonzaga gravou com ele tocando. Esses caras já estavam horrorizando com essas harmonias.
PAS: Mas no cinema?
IV: Vou puxar um pouco de Almeida Prado, com uma mistura que eu fiz.
PAS: Almeida Prado é o seu professor, o único brasileiro que você estudou? Ele é bom?
IV: É bom para caralho, muitos consideram Almeida o maior depois do Villa-Lobos, que tem um lugar de protagonismo como tem Renato Andrade na viola. Almeida é muito contemporâneo. Muitos acham que ele é o maior compositor brasileiro depois de Villa-Lobos. As obras dele eram editadas na França, na Alemanha, como Baden Powell, que é outro gênio. O primeiro cara que começou a usar os acordes como os conhecemos hoje, com sétimas, nonas, décimas primeiras e décimas terceiras, foi [o compositor russo Modest] Mussorgsky. Almeida era uma biblioteca na ponta dos dedos, foi ele que falou: “Repara no Mussorgsky. Ouve [o compositor francês] Debussy. Olha melhor como Debussy está ligado no Mussorgsky”. Se você pega os impressionistas, como [compositor e pianista Maurice] Ravel, ele foi professor do George Gershwin. E as big bands, essa tradição do sopro na América, começam a incorporar os procedimentos sonoros do impressionismo. Hoje tenho convicção que o desemboque da música erudita do final do XIX, início do XX, é na música popular dos Estados Unidos.
PAS: No jazz?
IV: No jazz. E os Estados Unidos vão derramar isso pelo cinema. Quando Radamés entrou na Rádio Nacional, em 1937, um dos trabalhos dele era ir à primeira sessão de cinema, quando chegava um filme novo. Na última sessão ele estava com a partitura toda escrita. Então a Rádio Nacional tocava em primeira mão antes de chegar a partitura. Radamés oculta isso, fala que quando gravou em 1937 o primeiro disco de cantor e orquestra e a crítica disse que ele usava o acorde americano. “E eu lá ouvia a música americana? Eu estava ligado no Debussy.” Ele está mentindo quando fala isso, não quer admitir que está totalmente ligado. Esse conhecimento harmônico chega tão forte que Custódio Mesquita só compunha fox. Aí Ismael Silva e Noel Rosa fazem coisas como “Não Tem Tradução” (1933), estão incomodados. Costumo pensar que a cultura brasileira é um grande caldeirão, isso tudo foi chegando e, quando chegou essa modernidade harmônica pelo cinema, aquilo bateu no caldeirão e mudou a cor.
PAS: Os indígenas daqui antropofagizaram no ato?
IV: Virou só um tempero a mais. O pessoal acha que a bossa nova inventou essas coisas porque era mais fácil tirar uma música com um João Gilberto tocando do que ouvir um Radamés na orquestra fazendo aquela música, ou um Severino Araújo fazendo altas dissonâncias com Jamelão, mas é difícil de perceber. Onde eu queria chegar é no Dorival Caymmi, que é um pilar de Milton Nascimento, que acabou inventando uma gramática nova, de Edu Lobo, Quarteto Novo. Estão todos ligados no Dorival, porque é o cara que pega a música folclórica – Canções Praieiras é quase folclórico -, mas dá um tratamento. Eu pensava: caralho, esse cara ouviu Debussy, não é possível. Um dia eu fui gravar com Renato Braz e estava Dori Caymmi. Falei: Dori, toda vez que escuto Canções Praieiras escuto Debussy. Ele disse: “Papai ouvia Debussy e Ravel o dia inteiro”. Radamés fala que estava ligado ao Debussy, Garoto compõe “Debussyana”, então esse cara é meio pai da música popular brasileira nas harmonizações.
PAS: Caymmi despistou o suficiente para parecer uma coisa completamente dele, e brasileira? Não copiou Debussy, fez sua própria versão?
IV: Exatamente. Aí a gente usa o termo do [escritor e etnomusicólogo] Fernando Ortiz, lá de Cuba, que é a transculturação. Você não sabe onde vai chegar, e aquilo não para. Nesse sentido, Caymmi é um pilar da música. E é o primeiro cara que grava um disco de violão e voz [Caymmi e Seu Violão, de 1959]. A gravadora não queria, queria um disco de samba-canção. Ele brigou para gravar esse disco, e inaugurou um outro caminho. E, do ponto de vista harmônico, Milton Nascimento é um cara que pega o modal do que chamava de santíssima trindade, Charles Mingus, John Coltrane e Miles Davis. Miles odiava Milton.
PAS: É? Por quê?
IV: Porque ele brilhava [risos]. Tem uma história com Wayne Shorter, que levou Milton no camarim do Miles. Milton não queria, “o cara não gosta de mim”. Quando Miles viu Milton, falou: “Cara, você sabe que eu não gosto de você, o que está fazendo aqui?”. Essa história é de bastidor, mas é verídica. Milton é muito ressentido com Jobim, porque quando Jobim estava morando em Los Angeles Milton foi gravar Raça (1976) e foi numa daquelas festas na casa do Tom Jobim, que ficou a noite inteira tirando pelo do Milton.
PAS: Será que de modo racista, inclusive?
IV: Racista, meio diminuindo Milton. Porque incomodava. Wagner Tiso falou para mim em 2001, numa entrevista que fiz com ele, que Jobim ficou um ano sem compor quando ouviu Milton. Tavinho Moura me disse que, segundo Paulinho Jobim, o pai ficou dois anos sem compor quando ouviu Milton.
PAS: Que anos serão esses?
IV: Acho que para valer foi a partir de 1969, 1970.
PAS: Quando Milton faz “Para Lennon e McCartney”.
IV: “Beco do Mota” e “Para Lennon e McCartney”. E qual era a piração ali? Em 1972, Jobim vai fazer Matita Perê, olhando para Guimarães Rosa, e está usando o modal.
PAS: No mínimo está em Minas Gerais…
IV: Sobre essa trindade do jazz, os jazzistas se apropriaram de uma teoria teoria sobre a utilização de acordes, de um livro chamado O Lídio Cromático, do [compositor e arranjador estadunidense] George Russell. Mas Milton é polimodal.
PAS: Então a fase ecológica, entre aspas, do Tom Jobim é uma resposta ao Milton?
IV: Matita Perê, sim. É uma influência, o cara mexeu com ele: “Pô, espera aí, eu também sei compor modal”. Isso é uma coisa que reparei escutando. Fui ouvir bastante Matita Perê e, pô, o cara está falando de Guimarães, usando o modalismo, exatamente o que Milton usa. É interessante, você não percebe a influência da santíssima trindade em Milton, porque ele manipula aquilo de uma maneira…
PAS: Você está falando que ele faz com os jazzistas o que Caymmi fez com Debussy? São coisas que não estão escritas em lugar nenhum, não existem na cultura escrita?
IV: Isso, que é meio o sentir-pensar do Guimarães Rosa. O pessoal fala muito do Clube da Esquina com o barroco também. Eu nunca ouvi nada de barroco.
PAS: Pelo menos na segunda versão de “Sentinela” (1980), não?
IV: Será que é de barroco? E um canto religioso ali. Um dia conversei com um cara que é maestro de música barroca, Ricardo Prado, que lançou um livro chamado Os Primeiros, um catatau de 800 páginas, um romance histórico sobre os primeiros, sobre Aleijadinho. É muito bonito o livro. Ele me falou: “Milton é muito barroco”. Onde ele bateu? Na melodia de “San Vicente” (1972), que é um barroco sujo, um barroco do chão. Me chamou a atenção, Milton não escutou barroco. Mas escutou congado. É muito provável que essas coisas de igreja, os cantos religiosos, tenham entrado no meio.
O lugar da viola na MPB
PAS: Sem ser na música caipira, sertaneja, rural, rústica etc., onde se situa a viola hoje dentro da música popular brasileira?
IV: A viola está na música instrumental.
PAS: E na MPB, depois de Quarteto Novo?
IV: O grupo Boca Livre usou a viola de um jeito mais de acompanhamento. Almir Sater é um cara importantíssimo, pela presença dele em telenovelas. Ele mudou diante do público a imagem de quem tocava viola. Ele toca muito.
PAS: Estou querendo entender se ela foi assimilada ou se ainda é um corpo estranho na música dita urbana.
IV: Ela está sendo assimilada. Já tem alguns, mas são mais músicos que acompanham cantor. De repente, tocava violão e guitarra, agora toca viola também. Mas acho que a viola ainda tem um chão. Tavinho Moura me falou uma coisa interessante: a viola é a última fronteira da música popular hoje, é o instrumento que mais está crescendo e onde mais está aparecendo gente. A pandemia deu uma dimensão da quantidade de violeiros que a gente tem, no Instagram. Sigo mais de mil violeiros, mulheres, crianças, tudo. Mais de mil, mentira, mas uns oitocentos tem. Todo mundo que curte minha página e é violeiro eu curto. Tenho, sei lá, 9.000 seguidores e sigo quase 7.000 pessoas. Em termos de construção, a viola avançou muito.
PAS: A craviola da Tetê Espíndola é uma excentricidade?
IV: Isso foi invenção do Paulinho Nogueira. Jimmy Page posava na contracapa da revista Pop fazendo propaganda com a craviola da Giannini, que pegou a patente do Paulinho.
PAS: Antes da Tetê?
IV: Antes da Tetê. Eu comecei a tocar com craviola. Já tocava um pouquinho de violão, estava começando. Eu tinha 16, 17 anos, estava compondo, começando a participar de festival. Em uma lojinha de discos de música caipira do lado da rodoviária de Itajubá apareceu uma craviola branca, laqueada. Então, nos festivais, eu era o rapaz da craviola, o único que tinha craviola. Era mais fácil que viola, porque é igual ao violão. Ela tem 12 cordas, o violão tem seis, então são cordas dobradas. É o princípio da viola, que na realidade é o princípio da vihuela, que é o instrumento da renascença espanhola, o instrumento de 12 cordas que vem do alaúde árabe, que é o pai da história toda.
PAS: Você, como músico, onde se situa atualmente?
IV: Puta merda, acabei de mandar um projeto para a prefeitura para gravar um disco de canções. A vida inteira compus canções com letra, mas gravei só no primeiro disco. Não vou cantar, a ideia é convidar várias pessoas, Ná Ozzetti, com quem já trabalhei. Por falcatrua da Prefeitura, nove dos dez selecionados não foram aprovados. Disseram que faltaram documentos, mas tinha uma confusão ali, está todo mundo entrando com processo. Mas onde estou? Acho que nem eu sei. Vou fazer esse disco como registro. A USP me fez dar uma boa parada, estou com um disco pronto, arranjado, desde 2013, mas não consegui ainda lançar. Tive uma depressão que me tirou o élan…
PAS: Todos nós tivemos, nesse período de 2013 para cá, né?
IV: Que dureza. Estou tratando isso na terapia.
O transtorno eurocêntrico tem tratamento?
PAS: Já que você falou nisso, o tratamento para o buraco cognitivo tem que ser qual? Terapia, remédio, o quê?
IV: Ouvir música. É mais fácil e simples. Mas ouvir música é virar o rosto para olhar coisas que você nunca quis olhar, ou não foi educado a olhar.
PAS: Também é olhar no espelho, né?
IV: Que é um pouco o que estou fazendo com os alunos na música popular, e eles adoram, porque vão descobrindo, vão ficando maravilhados, pô, que país incrível, quanta música bacana.
PAS: A professora que falou que você fica dando uns showzinhos por aí disse isso como se fosse uma coisa ruim? Para ela isso é um defeito?
IV: É porque sou o professor que mais toca no departamento, e sou da música popular. Se fosse um pianista, talvez fosse ótimo. Eles vibram quando alguém do erudito sai e vai pra fora.
PAS: Aí não dá ciumeira?
IV: Não, eles apoiam.
PAS: Quando escreve sobre a experiência em Portugal, você fala sobre a economia da penúria versus a economia da fartura, sobre competir em vez de compartilhar. Não é a mesma coisa aqui no Brasil?
IV: O brasileiro tem um pouco disso, sim. Jobim falava que o Brasil é o único país que torce para você não dar certo.
PAS: Para concluir sobre você como músico, seria aquele clichê de que você é erudito demais para ser popular e popular demais para ser erudito?
IV: É com o violeiro, né? Não que a gente não tenha a vaidade acadêmica, a gente vive cheio de pequenas vaidades, mas a vaidade acadêmica é muito feia. No mundo artístico ainda vai, você tem público, fãs. Na universidade, não, a vaidade acadêmica é meio perversa.
IV: Eu acho que não. Eu gosto de música instrumental, para tocar. Vou seguindo um caminho. Tenho composto bastante, mas não estou gravando. Precisaria estar gravando agora. A ideia é gravar um disco de viola solo para entrar no mercado de música erudita, tipo concertista, fazendo um disco com composições minhas. De alguma forma, minhas composições andam um pouco numa praia em que Gismonti anda, em que vários músicos andam, meio erudito, meio popular. Eu não sou contra a música erudita, sou fruto dela, adoro.
PAS: Como você fala no livro, além de raízes, você quer que ela tenha asas.
IV: Que tenha asas. Tudo isso é muito legal. O problema é essa impermeabilidade que os músicos eruditos têm, de não aceitar nada de música popular. Quando a Universidade Federal da Bahia abriu o curso de música popular pelo Reúne, fui um dos consultores. Em 2011 ou 2012, fiz o primeiro encontro de música popular na Universidade Rio Grande do Sul, e fiz uma fala que foi muito contundente. Tinha um americano que criou o curso de música popular, todo feliz, mostrando a grade, e tinha um semestre de música regional brasileira. Na minha fala, eu falava justamente disso, e ele não gostou. Aí o pessoal da Paraíba falou que eu tinha que ir para lá, fui em 2015, fiquei uma semana dando palestras, fazendo reunião com o pessoal. Estão abrindo o curso de música popular. Mas eu até não acho que tem que ter uma escola de música brasileira. Tem que ter uma escola brasileira de música. Porque a gente é culto.
PAS: O que você ia falar sobre a música do Sul do Brasil?
IV: Que nós, do Sudeste, somos etnocêntricos com o Norte e o Nordeste e também com o Sul. Tem um monte de gente compondo. Você conhece Simone Rasslan? Ela fez um disco que tem um nome interessante, Xaxados e Perdidos. É uma cantora, o companheiro dela é um violeiro, um violonista que toca bem viola. O disco é espetacular. Ninguém fica sabendo dessas coisas. Você tem gente bacana produzindo em todos os lugares, mas o que chega para a gente é mais Nordeste.
PAS: Além de todos esses apagamentos, tem o da música feita na fronteira também, como no Mato Grosso do Sul…
IV: Almir Sater é um tocador de guarânia. Aquela música dele que abre o primeiro disco Instrumental (1985), “Corumbá”, é uma polca paraguaia. “Trem do Pantanal” (1982) é uma guarânia. Agora, as da fronteira do Norte não chegam para a gente, aquela música meio caribenha, das guitarradas.
PAS: Em “Sonhos Guaranis” (1982), Almir canta sobre “a fronteira onde o Brasil foi Paraguai”, aquele território todo que é um não-lugar, porque não é nem Paraguai, nem Brasil.
IV: É tão lindo. Almir é foda. É um cara que ouço desde o primeiro disco.
Ivan Vilela e o MST
PAS: Você pode contar sobre sua relação com o Movimento Sem Terra (MST)?
IV: Minha relação com o MST foi reatada agora. O primeiro violeiro que entrou no MST fui eu, acho que em 1999. Mané Cirilo, que foi um dos sequestradores do embaixador americano, era padrasto da minha ex-mulher, mãe dos meus filhos. Ele era o segundo cara na hierarquia do sequestro. Não foi exilado, ficou dez anos preso no Barro Branco. Ele é muito amigo do [economista e líder do MST] João Pedro Stédile e deu meu disco Paisagens (1998) para João Pedro. Aí João Pedro me chamou e falou que queria levar essa cultura da viola para o MST.
PAS: A gente imagina que ela já estivesse lá, não estava?
IV: Não estava. Aí o MST começou um encontro, começou a me chamar para tocar. Eu ia, levava a Orquestra Filarmônica de Violas, que eu dirigia em Campinas. Mas fico um pouco apavorado com essa coisa de holofote, sou meio caipira. Sugeri começar a trazer outros violeiros, mas não, eles queriam que fosse eu. Aí eu Comecei a inventar desculpa, não posso ir nesse, mas tem um amigo que pode. E fui levando. Até que teve uma coisa na UERJ em que estava José Rainha Jr. Fui tocar no julgamento de José Rainha em Vitória, Lula apareceu lá. Levei cinco violeiros junto. Comecei a dar cursos para eles, viajei dando esses cursos que o MST faz.
PAS: Em assentamentos?
IV: Não, era um curso das lideranças para os jovens. Eram várias áreas, eu dava de aula de música popular. Em 2004, um cara que estava me produzindo arrumou um contrato na Syngenta, uma indústria química, para fazer um festival de viola. Eu queria fazer uma mostra, festival é muito cruel, sai um feliz e o resto puto, sem grana. Mas a Syngenta queria festival. Aí fiz. Trabalhei com R$ 1,5 milhão, teve etapas em São Paulo, Ribeirão Preto, Recífe, Cuiabá, Brasília Belo Horizonte e Curitiba. Os jurados éramos Tárik de Souza, Paulo Bellinati e eu. Foi maravilhoso. Na final, no Teatro Alfa, em São Paulo, gravaram um disco. Os violeiros se espantaram.
PAS: Esse disco é o Violeiros do Brasil?
IV: Não, é outro, Violeiros do Brasil já tinha rolado em 1997 e 1998. Fiz assim: todo violeiro que vai para a final já ganha um cachê de R$ 2.000, passagem aérea e hotel quatro estrelas para ele e mais quatro, pode ser músico ou pode ser a mãe, quem ele quiser. A gente tratou o violeiro com a maior dignidade. Mas o pessoal do MST ficou puto porque eu estava associando a viola a uma indústria química. Só que a viola é muito mais antiga e forte, ela não se associa a merda. Um amigo percussionista de Belo Horizonte um dia me encontrou e falou: “O pessoal de BH é mordido com você porque você fez o Prêmio Syngenta”. Mas, cara, qual é a marca do tênis que você usa? Em que posto você põe gasolina? Que marca é seu carro? O mundo é neoliberal, o único jeito de fazer ação é tirando dinheiro deles. Não é explodindo banco. É promover ações de enraizamento com dinheiro deles. E isso me afastou do MST. Mas até hoje, em suas falas, João Pedro põe música minha para tocar. Não me dá o crédito, mas põe, toda vez que vai falar está lá. O que mais me doeu no MST é que eles trabalham o camponês com ideologia de proletariado. Não dá, isso passa um rodo na cultura local. Tem gente do Brasil inteiro no assentamento, quantas culturas tem ali? É a mesma coisa que a música erudita faz com essas orquestras em favela. Fazer isso desenraíza as pessoas. Mas agora estamos nos reaproximando, o representante de cultura do MST me disse que os tempos são outros, que eles me querem lá, querem que eu monte um curso.
PAS: Você vai montar um curso agora? Como vai ser o nome?
IV: Um curso de viola, que é como ensinei a maioria das pessoas. Eu ensino os alunos compondo. Ricardo Vignini, que faz rock na viola e está rodando o mundo, foi aluno. [O violeiro e construtor de violas] Levi Ramiro tem 13 discos gravados, foi aluno. Todo mundo aprendeu a tocar desse jeito. Você ensina a outra pessoa a compor na hora em que ela está aprendendo a tocar. Se pega um pianista que estudou datilografia a vida inteira e pede para ele compor, ele diz: “Você está louco, estudei 15 anos, como vou compor com Chopin olhando pra mim?”. Porque não aprende. A gente aprende na imitação criativa. Eu ensinava partitura, mas depois: primeiro a gente aprende a falar, depois a ler e escrever. É um jeito que não inventei, tirei da cultura popular e uso no ensino, e dá muito resultado, as pessoas aprendem rápido, em dois meses estão tocando viola.
Uma elite escravizada pelo pensamento europeu/estadunidense
PAS: O que é a música rural do Brasil hoje? Ela existe?
IV: Existe. Fortemente. Muito ligada às culturas populares, ao folclore.
PAS: Folclore é um termo problemático, não é?
IV: É um termo problemático. Mas a gente usa para definir essa música que o pessoal da arquitetura chama de arquitetura espontânea. A gente pode chamar de música espontânea então?
PAS: Chamam de naïf, que também é preconceituoso, é achar que o outro é ingênuo e você é esperto. O outro é ingênuo, ou é só diferente de você?
IV: É, mas o ingênuo tem uma originalidade. O estudo homogeneíza o conhecimento, e a originalidade é o oposto da homogeneização. Tem uma chave aí que pode puxar para qualquer lado. Chamo de folclore, embora resista ao termo. O termo cultura popular foi criado pelos ingleses da elite, também para estudar o povo. A gente não tem termo para chamar. Mas existe uma produção muito forte, e a música caipira está voltando com muita força. No Instagram fico impressionado de ver a meninada tocando.
PAS: Meninada que mora em região rural?
IV: Não, que mora no interior. A gente acha que o êxodo rural foi um êxodo da roça para a cidade grande, mas não, foi também de cidades pequenas para cidades grandes. Eu sou um migrante.
PAS: Eu também, de Maringá. Cresci odiando música caipira, acho que odiava o espelho. É um assassinato, colonização mesmo. Você é condicionado a achar que aquilo é de mau gosto…
IV: Que é menor. Eu acabo usando folclore na falta de um termo. A gente tenta ressignificar esse termo agora, tirar esse depreciativo que vem nele, de olhar como se fosse uma coisa menor. Mas não, tento olhar como uma coisa muito rica hoje.
PAS: O olhar predominante é hierárquico, quem é folclore é menos do que nós, não?
IV: É, eu já não vejo assim. Por exemplo, a gente não pode falar mais “denegrir”, “judiar”. Mas e “escravo”? “Escravo” vem dos eslavos.
PAS: Também não pode.
IV: Mas que termo a gente vai pôr no lugar?
PAS: É algo que a gente diz que não queria que existisse, mas existe, e não quer nem dar nome. E ela continua existindo. Inclusive na elite, que é escrava do pensamento europeu.
IV: Olha que interessante. É totalmente escrava do pensamento europeu. Tive algumas oportunidades de fazer shows em casas de banqueiros, realmente é um ambiente muito avesso ao nosso. A aparência importa muito, é o que vale. É um pouco a diferença de paulista e mineiro. O mineiro está mais ligado no ser e o paulista no ter. Sempre sofri aqui em São Paulo porque ia conhecer uma pessoa, ela fica te medindo para ver onde ela pode ser melhor que você. E ela vai puxar para aquele lado.
PAS: A pessoa é um pitbull cheio de medo achando que vai ser atacada por você.
IV: Acho que essa espontaneidade incomoda. Mas o mineiro, de maneira geral, é menos produtivo, produz menos. Não está tão ligado em produção, a coisa é viver mais.
PAS: O paulista interiorano é mais mineiro?
IV: Hoje não. São Paulo é uma usina. Senti isso em Castilho, que fica na divisa de São Paulo com Mato Grosso do Sul, mas é São Paulo. Ali a coisa anda de outro jeito. O quilo da picanha é R$ 33. É engraçado que exista isso em São Paulo. Como ninguém tem dinheiro, tudo funciona, e as pessoas são mais dadas. Muito índios, você vê a cara do povo, é tudo preto e índio misturado, e a mulher de Mercedes, dirigindo limusine. Mas de maneira geral o estado de São Paulo é produtivo também, a lógica é essa da produção.
PAS: Isso tudo é o agronegócio também.
IV: Muito forte. O sul de Minas está virando também. Não sei como é o norte do Paraná hoje.
PAS: Mesma coisa. Talvez o Brasil inteiro. Mato grosso se chama mato, mas não tem mato mais. Só tem soja. E agora querem a Amazônia.
Brasil: xenófobo ou xenófilo?
PAS: Outra coisa que você escreve no livro é sobre o xenófobo versus o xenófilo: “Se a xenofobia se manifesta como horror à cultura do outro, a xenofilia é o horror à própria cultura, restando, assim, como opção, apenas a cultura do outro”. Então o Brasil não seria muito xenófobo porque é xenófilo?
IV: O Brasil é xenófilo, tem horror à própria cultura, quer ser a outra.
PAS: Qual será a abordagem de seu livro sobre o Clube da Esquina?
IV: Mapeei dez coisas, na realidade 13, que não existiam na música do mundo e os caras trazem. Fiz o primeiro capítulo sobre o trem, o segundo é “entrando pelo cânone”, mostrando o nível em que a gente está preso a cânones. Milton demorou 50 anos para ser reconhecido. Essa historiadora que fez mestrado sobre Milton mostrou a quantidade de críticas que ele sofreu, “aquele compositor de toadas mineiras”. Ninguém entendia. Tenho uma teoria que explica em partes isso. É que grande parte da crítica brasileira sempre associou o novo comparando com o velho. É fácil perceber a bossa nova olhando o samba-canção, ver a riqueza da tropicália olhando a jovem guarda e a canção de protesto. Quando o Clube da Esquina surge, é síntese, amálgama. Olha o jeito que eles estão tocando samba na música “Me Deixa em Paz” (1972). Começa com aquele violão, depois entra o samba no prato. A música tem três degraus. Em “Pelo Amor de Deus” (1972) perguntamos: mas que ritmo é esse? é uma marcha-rancho.
PAS: Tocada do jeito dele, copiada originalmente por ele.
IV: Depois entra aquela psicodelia, aquelas distorções de guitarra. E depois volta, então é só marcha-rancho. “Dos Cruces” (1972) é um bolero, a versão de Milton traz o cante jondo da música flamenca, aquele canto melismático. Para mim, é a coisa mais árabe que tem na música, porque o resto é muito cigano. Tudo que a gente acha que é árabe, é cigano. Mas ele traz essa música com esse jeito de cantar, com micronotas, e aquela versão do bolero que ele faz é um absurdo. Parece música marroquina, é uma música que não tem cabeça no tempo forte. Milton constrói a ponte com a música andina. A gente tinha ponte com a música latino-americana do Caribe, mas não com a música andina. “San Vicente” é esse marco. Em “Cravo e Canela” (1972) traz uma África que não vem pela via do samba. Até hoje [o guitarrista mineiro] Nelson Faria chama “Cravo e Canela” de samba em três. Quer dizer, moveu a célula do congado para samba. Isso não é samba, é congado. Samba é outra coisa. Mas não se vai chamar de samba em três, porque acham que, se é um balanço de preto, então é samba.
PAS: O que você acha de Clube da Esquina (1972) aparecer em listas recentes como o maior disco da música brasileira? Virou modinha?
IV: Virou, acho isso um bobagem. Mas, dentro da música popular, é o disco que mais trouxe inovações. Está na modinha dos jovens, adolescentes, de classe média. Acho até bom que ouçam. O que fazem no Clube da Esquina é a desterritorialização dos instrumentos. Todo mundo toca todos os instrumentos, e, na hora que põe um cara que não toca o instrumento para tocar, ele vai trazer algo que o outro não faria. Toninho Horta fala numa entrevista que é o único disco no mundo que não tem coincidência na ficha técnica, porque quem gravava primeiro e descia para tomar café perdia a segunda, “ah, ele não está, eu toco”. E outra coisa é a world music. Nos anos 1980, os produtores ingleses percebem que esse movimento de globalização criou respostas locais, e o local começa a ser visto. Paul Simon faz Graceland (1986), só que aquela mistura Milton já tinha feito na música “Lília”, em 1972. Você escuta e pensa: de que país é isso? É em cinco tempos, parece África, mas é uma paisagem de qualquer lugar.
PAS: Certamente Paul Simon tinha ouvido Milton, não? Se Miles Davis tinha…
IV: Peter Gabriel falava que o Genesis só encontrou o caminho quando ouviu Milton. Um amigo que fez o trabalho gráfico do disco Angelus (1993) falou que entrou no elevador e tinha dois caras do Earth, Wind & Fire. “Nós estamos com Milton.” Agora a coisa mais chocante: eles foram ao apartamento do Milton, a banda inteira, levando uma mala com todos os discos dele. Era um totem que viajava com eles para todos os lugares. Começaram a cantar em falsete quando viram Milton cantando, a partir dali viram que era legal e não estranho. Milton mexeu com a esfera do jazz, do pop, com Björk. Na realidade, ele é muito bom para ser pop, muito denso.
PAS: Você diria que Milton faz música caipira?
IV: No “Morro Velho” (1967), sim. Aquilo é uma transfiguração de uma moda de viola, começa com um ponteio, só que à moda dele. A região de Três Pontas é muito preto, muito café, muito congado. O Sesc Pinheiros fez uma exposição em 2014, chamou Dori Caymmi, André Abujamra, e me convidaram para montar um show em homenagem a Mazzaropi. Fui escolhendo as músicas pelos filmes e descobri que não tem nenhuma música caipira. Ele não dialogou. A única que tem é “Tristeza do Jeca”, mas essa é pré-caipira, é de 1918.
PAS: Mas se não são caipiras, quais músicas estão nos filmes?
IV: Tem samba, baião, muita música do Elpídio dos Santos.
PAS: Não é caipira Elpídio?
IV: Não, Elpídio nunca tocava música caipira. “Você Vai Gostar” (1954), também conhecida como “Casinha Branca”, não é caipira, nenhuma dupla caipira gravou. A música caipira, enquanto gênero, é muito específica dentro dessas coisas que eu falei, do tipo de narrativa, do tipo de sonoridade. Não tinha música do repertório caipira, dos caipiras, ele não reconhecia. Fiquei muito espantado, tinha só Elpídio.
PAS: E, por outro lado, o personagem se fez à custa do universo caipira.
IV: É muito doido, né? Será que ele achava que ia competir com o personagem ou ia fortalecer demais uma coisa de que ele queria manter uma certa distância? Ou era ciumeira, podia tirar o foco dele? Ele começou nos anos 1950, foi um gigante, criou um parque cinematográfico em Taubaté. Fui lá ver o museu de Mazzaropi, é impressionante. E ele falava isso: se Hollywood fez, Vera Cruz está fazendo, por que não podemos continuar essa ideia de ser uma potência?
PAS: São Paulo tem vergonha de Mazzaropi até hoje?
IV: É verdade, não se fala dele. Eu via na infância, era gostoso. Os filmes são engraçados, têm uma autenticidade.
PAS: Por fim, quem afinal é você? Estou conversando aqui com um professor da USP, um violeiro ou o quê?
IV: É com o violeiro, né? Não que a gente não tenha a vaidade acadêmica, a gente vive cheio de pequenas vaidades, mas a vaidade acadêmica é muito feia. No mundo artístico ainda vai, você tem público, fãs. Na universidade, não, a vaidade acadêmica é meio perversa.
Gostei da longuíssima entrevista,”Pense em Mim”,É o Amor” e ”Fio de Cabelo”,não consigo gostar de nenhuma – Quando eu era jovem,as rádios não tocavam música sertaneja em horário comercial,era só na madrugada e à noite.
Por volta do ano 2.000,o historiador Evaldo Cabral de Mello alertou para o risco de uma emergente elite agrária (e urbana,por que não?) consumidora de música sertaneja,pobre de cultura e sensibilidade e com poderes para influir nos rumos do País.Falou Nostradamus – Lembro dele dizendo,também,que em seu tempo quem ouvia esse tipo de música era só gente da roça ou folclorista.
O entrevistado esqueceu de dizer que José Rico,apesar da linda voz,só cantou música de zona (Marília Mendonça foi sua fiel discípula),nada contra,sou frequentador assíduo dos inferninhos da vida,eu só não gosto da trilha-sonora,rs.