Zé Ramalho só existe um, mas no palco são muitos. Esqueça os musicais enlatados, desconectados da cultura brasileira, impostos pela indústria cultural. O Admirável Sertão de Zé Ramalho, em cartaz no Sesc 24 de Maio, é uma celebração à vida de um talentoso e multifacetado artista que inova não só por render uma merecida homenagem, mas também para ensinar como se faz um espetáculo que não vem empacotado em contêneires.
No musical, idealizado por Eduardo Barata, sob a dramaturgia de Pedro Kosovski e a direção de Marco André Nunes, Zé Ramalho pode ser menina, negro, gay, sertanejo. Para contar a vida do cantor e compositor, O Admirável Sertão de Zé Ramalho se vale de cinco versões do paraibano. Com uma trajetória de mais de quatro décadas que dificilmente poderia ser inventada pelo mais criativo dos roteiristas, o autor de Admirável Gado Novo (canção que inspirou o título da peça), Garoto de Aluguel, Pedra do Ingá e Chão de Giz ganha diferentes formas e facetas interpretadas pelo talentoso elenco. Liderado pela atriz Adriana Lessa, o espetáculo conta com Duda Barata, filha do idealizador e que interpreta o protagonista quando criança; Muato (Zé adolescente), o ator angolano Nizaj (fase inicial e difícil da carreira), Cesar Werneck e Ricca Barros (Zés adulto), Marcello Melo (o momento atual) e Diego Zangado (percussão). O musical costura canções, poemas e cenários marcantes da vida do cantor, como se as páginas da uma autobiografia ganhassem vida no palco.
A montagem, em cenário e iluminação sem pirotecnias, apresenta cinco versões de Zé Ramalho, cada uma representando uma fase distinta de sua trajetória: inicia com suas origens em Brejo da Cruz, parte de mala e cuia para Campina Grande e João Pessoa, onde começa a construir seu personagem musical, migra para a luta por um espaço no Rio de Janeiro e finaliza com sua consagração. Não era uma tarefa trivial retratar o artista que transitou entre a cruz e a caldeirinha, como já apontou FAROFAFÁ, cujas inspirações e diálogos musicais passam por nomes como Beatles, Bob Dylan, Dominguinhos, Erasmo Carlos, Fagner, Led Zeppelin, Luiz Gonzaga, Mutantes, Pink Floyd, Raul Seixas, Robertinho do Recife, Roberto Carlos e Waldonys.
As composições musicais funcionam como fios condutores para cada uma dessas fases, permitindo emergir o Zé Ramalho menino(a), o Zé Ramalho roqueiro, o Zé Ramalho místico e o Zé Ramalho consagrado. É um hit após o outro, e certamente a plateia se segura para não cair no forró ali mesmo, dentro do teatro. Nas palavras do próprio artista: “O Admirável Sertão de Zé Ramalho (…) percorre a minha obra de uma forma que me deixou emocionado. Eu me vi ali em vários momentos. Para quem gosta das minhas músicas, esta é uma oportunidade que eu recomendo. ZR”, disse ele, quando a peça esteve em cartaz no Teatro Prudential, na Glória.
Importante mencionar a bela participação da sanfoneira pernambucana Ceiça Moreno, de 77 anos, que se aventura pela primeira vez nos palcos teatrais. Desde a primeira cena, ela aparece para fazer intervenções pontuais na narrativa. Começa com um aboio que ela própria compôs com base na biografia Zé Ramalho: o poeta dos abismos, de Henri Koliver. Ceiça participou do programa The Voice Brasil, em 2021. A música, de toada triste, não deixa de remeter a uma vida repleta de percalços do homenageado.
O musical O Admirável Sertão de Zé Ramalho fica em cartaz no Sesc 24 de Maio até 8 de dezembro. Para públicos de diferentes idades, admiradores antigos ou recentes, ajuda a compreender a longevidade das canções do artista paraibano e oferece alguns sentidos poéticos a elas. A montagem estreou no Rio e já circulou por cidades do Norte e Nordeste. Obra autêntica e inspiradora, dá ao espectador um sopro de ar fresco no cenário cultural brasileiro.