Edvaldo Santana lança mão da potência de uma big band para fazer disco de raro artesanato

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Não acho certo que deserto e agonia tomem conta do lugar“, canta Edvaldo Santana, em Chão de Cana, uma das músicas seminais de seu novo e fascinante disco, Menino do Bongô (produção independente).

Menino do Bongô, em 36 minutos, 10 canções e uma big band de 17 músicos (entre eles, o convidado especial Edgard Scandurra), mostra-se uma dessas obras musicais de insana raridade em nossos dias. Primeiro, pelo nível de artesanato, de autoralidade, de vibração harmônica, de manufatura acústica e de determinação anticomercial.

Em segundo lugar, porque é uma emboscada de clássicos precoces, de canções sobre o espírito do Brasil de nosso tempo, versos que são como golpes de capoeira mostrando as encruzilhadas que nos são postas à frente nesse momento de agudo desenraizamento.

Cronista de mão cheia, Edvaldo concentra em uma música sobre a alma do futebol “moderno”, Futebol Tá Chato, uma míriade de metáforas futebolísticas novas (embora centenárias, por paradoxal que isso pareça): “Tá todo mundo atrás da linha da bola, que a bola parada virou salvação”. A mesmice do mundo artístico subserviente, da política sem contato e da criação algoritmizada é decifrada com uma leitura simples: tudo é retranca, todo mundo esperando que uma bola mágica alçada na área venha solucionar os problemas da sociedade. E todo mundo com medo de comemorar na hora do gol, a cautela que decorre do medo, da descrença em todas as utopias.

A peculiaridade do disco é a riqueza das harmonias, de um certo chacoalhão instrumental que sobrevém em cada música, dos metais, das cordas, das percussões todas equilibrando arranjos de grande precisão. Mas nada está a serviço do barroquismo, e sim de uma desconcertante simplicidade, do recado direto, do convite singular da confraternização. Há no disco um toque recorrente de night club, e da voz tradicionalmente bluesy de Edvaldo escorre uma pegada de crooner de boleros. Verbete parece buscar uma “reserva de alegria” do cancioneiro do morro. A Coragem e O Medo se guia por uma levada de teclado de brega de cabaré, com pinceladas de um saxofone de relance.

Permeando tudo, há esse amálgama, digamos, ideológico do disco. Contra a doença do espírito que parece acometer todo o País na atualidade, o artista vai em busca de uma panaceia de tempos imemoriais, um antídoto certo contra a desistência, uma receita que vai do cigarrilho de palha até a “erva que curou Peri”. O artista lembra, em outra canção memorável, Tambor na Viola, que a linha evolutiva que gestou os diferentes entroncamentos de gêneros da música brasileira “nasceu do pavor, cresceu no Brasil”, e que, a despeito disso (da escravização e do extermínio), o sentimento da música brasileira é de luta, de superação, de ultrapassagem, de absorção. Por baixo de tudo, Tambor de Viola admite um solo de guitarra mínimo vindo do subterrâneo, a grande mistura brasileira aceitando todos os elementos.

Galego do Bongô celebra um personagem que existiu de fato, um desses notáveis brasileiros que surgem e desaparecem e cuja desaparição não parece alterar bulhufas, mas que causa uma ventania lá na frente, um furacão nos mistérios da criatividade. Dona Menina é um reggae de infusão. Há alguns corinhos francamente raulseixistas no disco (cortesia das vozes de Simone Julian, Rubens Nardo, Tata Fernandes e Jair Xavier), outras levadas luizmelodiosas, mas não se faz salamaleque especial a uma ou ou outra referência ou gênero musical. Tudo está a serviço de um corpo uno, uma maravilhosa viagem pela percepção da música, de sua essencialidade social, afetiva, sentimental, política.

Produzido por Edvaldo, Daniel Szafran, Reinaldo Chulapa e Luiz Waack, o disco foi gravado entre março e junho deste ano nos estúdios DSZ Records, em São Paulo. Um disco com esse grau de artesanato e coragem, disponível em todas as plataformas de música, e você aí perdendo tempo com esses profetas do Admirável Mundo Novo que volta e meia anunciam um futuro em que a IA transformará uma multidão de fãs em “criadores de música”. Não existe uma música que vá ganhar significado pela infinita janela de combinações matemáticas; toda grande música já carrega em si o seu próprio sentido.

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