Lô Borges: um pavio aceso

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O cantor e compositor Lô Borges - fotos: Flávio Charchar/ divulgação
O cantor e compositor Lô Borges - fotos: Flávio Charchar/ divulgação

Contemporâneo, criativo e produtivo. Em torno destes três adjetivos, que bem traduzem o espírito de Lô Borges, terminou a entrevista exclusiva que ele concedeu, por telefone, ao FAROFAFÁ. Aos 72 anos, o mineiro, um dos artífices do Clube da Esquina, acaba de lançar Tobogã (Deck, 2024), com 12 faixas em parceria com a médica e poeta Manuela Costa.

É o sexto álbum de inéditas de Lô desde 2019, ou seja, de lá para cá, um por ano, sempre um lote de composições assinadas com um parceiro ou uma parceira. Ela e o cantor e compositor se conheceram em 2005: a turista visitava a casa dos Borges, em Belo Horizonte/MG, um dos templos sagrados do Clube da Esquina. Desde então, se viram cinco ou seis vezes pessoalmente. A parceria, em que tanto ela letrou músicas de Lô quanto ele musicou poemas de Manuela, desenvolveu-se virtualmente.

Manuela Costa canta em “Pouso da Manhã”, a primeira parceria dos dois. A outra convidada é Fernanda Takai, que participa na faixa-título, inspirada no homônimo livro de memórias do pai de Lô, lançado em 1987, e em “Amor Real”. Lô Borges está acompanhado de um time de velhos conhecidos: Henrique Matheus (guitarras, gravações e mixagens), Thiago Correa (baixo, teclados e percussões) e Robinson Matos (bateria).

ENTREVISTA: LÔ BORGES

ZEMA RIBEIRO: Desde Rio da Lua, de 2019, com parcerias com Nelson Angelo, fora os álbuns em que revisita repertório ao vivo, você tem escolhido um parceiro, composto um álbum inteiro com ele, geralmente um lote de 10 canções inéditas, e lançado um álbum. Desta vez são 12, em parceria com Manuela Costa. Quero te ouvir sobre esta parceira, essa relação de amizade e parceria.
LÔ BORGES: Eu venho fazendo discos sempre com um parceiro diferente, sempre um parceiro pro disco inteiro. Eu desenvolvi um hábito, quando eu faço uma música com um parceiro e aí eu gosto da letra que ele fez, aí eu falo: bora fazer mais nove? [risos]. Eu gosto de compor assim, eu gosto de fazer discos, eu fui criado assim, fazendo discos, desde sempre, desde meus ídolos que lançavam discos, bossa nova, Dorival Caymmi (1914-2008), Beatles, todo mundo lançando discos, e eu comecei com o Clube da Esquina (1972), com o [disco do] Tênis [como ficou conhecido seu álbum solo de estreia, lançado em 1972], que eram discos também, os outros discos, A Via-Láctea (1979), então eu tive uma história. Eu não gosto de fazer uma música isolada, eu não tenho essa expertise. Eu penso sempre num conjunto de músicas, quando eu faço uma música, eu já penso logo no que pode vir a seguir, qual seria a segunda, qual seria a terceira, qual seria a quarta, e vou compondo assim gradativamente todas as faixas, todas as músicas. E aí eu compus com o Nelson Angelo 10, com o Makely Ka 10, com o Márcio Borges 10, com a Patrícia Maês 10, César Maurício 10, e aí a Manuela era pra ser 10 também, mas aí eu resolvi fazer um pouco mais de música, eu estava com disponibilidade, estava viajando pouco, estava em casa, fazendo pouco show, tinha disponibilidade, e aí eu gostei do desafio de compor com uma pessoa com a qual eu não tinha quase contato pessoal nenhum. É uma pessoa que eu conheci em 2005, conheci na casa dos meus pais, ela foi visitar a casa dos meus pais, aquele circuito do Clube da Esquina, sempre que vêm à Belo Horizonte os fãs do Clube da Esquina, não só do Brasil, mas do mundo inteiro, uma vez eu estava na casa da minha mãe tocando piano, eu já não morava com eles há anos, parou uma van com uns 15 japoneses dentro desta van, para tirar fotos e filmar a família, filmar minha casa. Então com a Manuela foi assim: eu a conheci em 2005, depois disso eu encontrei com ela umas cinco ou seis vezes só, em 20 anos, sabe? Eu fiz as músicas, ela começou a me mandar poemas e eu achava bonitos, inspirados, surpreendentes, interessantes, mas eu nunca cheguei e falei para ela: vou musicar um poema seu. Eu vi que estava chegando muitos poemas e coisas que eu gostava, e minha maneira de compor, 90% das vezes eu faço a música primeiro. Eu mandei pra ela, eu falei, vamos inverter esse negócio, em vez de você ficar me mandando poemas, eu vou te mandar uma música para você fazer a letra, quem sabe a gente se torna parceiro? E aí não deu outra, eu mandei para ela uma música com o título de “Pouso da Manhã”, foi a nossa primeira parceria, eu até a convidei para cantar no disco, no final do processo todo, quando tinha terminado todas as músicas, estava na pré-mix, eu a convidei para cantar o “Pouso da Manhã”. Eu acho que a gente fez mais de 12, a gente fez várias, aí eu fiz uma seleção das músicas que eu tinha composto com minha parceira improvável, porque é uma pessoa que eu nem conheço, passei a conhecer nesse momento em que a gente estava fazendo as músicas, passei a conhecer mais, não presencialmente, sempre através [de tecnologias], eu mandava áudio com minhas músicas para ela fazer letras, e ela me mandava poemas, que não eram os poemas anteriores, para eu musicar alguns poemas. Então o disco ele tem até uma certa [interrompe-se], são 12 músicas, são oito letras que ela fez para músicas que eu mandei para ela áudios, mp3, whatsapp, ou e-mail, não lembro como mandava, variava, e quatro poemas dela eu musiquei. Então das 12 músicas são quatro poemas dela que eu musiquei e oito canções minhas que ela colocou letra.

ZR: Lô, esse processo de composição foi todo à distância. E na hora da gravação? Vocês se juntaram num estúdio, cada um gravou de seu lugar? Como é que funcionou?
LB: Quem? Eu e os músicos? Eu e minha banda? 

ZR: Sim.
LB: Minha banda está comigo já, alguns deles estão comigo há muitos anos, antes de eu fazer essa sequência de seis discos inéditos nestes seis últimos anos, eles estão comigo desde 2019, sendo que o baterista e o guitarrista estão comigo antes, sempre fizeram parte da minha banda, sabe? Eu faço as músicas, aí quando eu faço uma música, eu ligo direto pro meu técnico de som, que é o meu guitarrista, ele é técnico de som e de mixagem, o Henrique Matheus, ligo pra ele e falo assim: vamos marcar, então? Eu tou com uma música aqui pra gravar. Isso com uma frequência maluca, eu mesmo na época da pandemia ia para lá de máscara, ficava eu e ele de máscara e eu gravando meus instrumentos, às vezes violão, depende do disco que eu estava fazendo. Teve disco que eu fiz compondo todas na guitarra, igual o do ano passado, que era uma experimentação que eu fiz com César Maurício, o de 2022, que eu fiz com a Patrícia Maês, eu compus as músicas todas no órgão, e aí quando termina o conjunto de músicas, 10 ou 12, eu convido eles para uma audição de tudo, porque quando eu estou gravando, está só o Henrique comigo, só o guitarrista e técnico de gravação e mixagem. Aí quando fica pronto tudo, eu faço uma reunião com eles e falo: gostaria que os arranjos caminhassem para tal lado, fossem mais assim, fossem mais assado, então a gente discute o que pode ser o disco. Aí eu dou total liberdade para eles criarem os arranjos que vierem na cabeça deles, de acordo com a música que eu mandei. Só que eu deixo lá as músicas com eles, mas eles me mandam antes de ficar pronto, na hora em que está quase na pré-mix, eles me mandam para ver se eu aprovo ou não. De seis anos para cá a gente foi se afinando cada vez mais, a gente foi interagindo cada vez mais, eles entendendo mais o que eu quero com a minha música, eu entendendo o que eles querem com os arranjos, tem sido uma troca importante, porque eles aprenderam muito com minhas músicas e eu aprendi muito com os arranjos que eles foram criando. Então, normalmente, 90% dos arranjos que eles me mandavam, eu aprovava todos, aí eu dava minha opinião: olha, tal música pode ser diferente, pode ser assim, pode ser assado. Cara, eu compus demais, então eu não tinha tempo de fazer letra, eu gosto de fazer letra, até fiz umas letras, umas músicas com letras, mas é tanto disco que eu faço, um atrás do outro, não sei que febre louca foi essa que me deu de 2019 para cá, isso já começou antes, em 2003, com um disco chamado Um Dia e Meio, eu venho fazendo muitos discos. Para você ter uma ideia, eu dobrei minha produção de compositor, de autor, em 20 anos eu fiz o dobro de músicas que eu tinha feito em 40.

ZR: Quando a gente conversou ano passado, por ocasião do lançamento de Não Me Espere Na Estação, de parcerias com César Maurício, você disse que o próximo álbum seria com parcerias com seu irmão Márcio Borges. Como é que a Manuela furou essa fila?
LB: [risos]. Não teve furada de fila. Como eu tenho dois, três discos, sempre semi-prontos ou quase prontos, eu tive uma conversa com a Manuela e com o Márcio Borges. O Márcio Borges é autor de 70% das minhas letras, das músicas que eu compus, quase 70% são letras dele. E aí o Márcio foi super generoso: “o que você acha de lançar o disco dessa menina que está começando agora, essa estreante Manuela? Pode lançar, o nosso, cara, a gente faz disco a vida inteira, desde que você nasceu que a gente faz música junto”. Então não foi furada de fila, foi um consenso meu e do Márcio Borges e a Manuela ficou feliz, que era o primeiro disco que ela estava fazendo. Então não teve furada de fila, não, foi uma coisa conversada. Mas a estrada está aí, firme e forte, o disco com o Márcio Borges está aí firme e forte e do ano que vem ele não passa, ano que vem é ele mesmo.

ZR: Além da parceira Manuela Costa, a outra convidada do álbum é Fernanda Takai, adotada por Minas, que nunca escondeu a influência do Clube da Esquina em seu trabalho solo ou no Pato Fu, com quem você já havia trabalhado antes. Foi uma escolha natural? O que dizer de Takai?
LB: A Takai eu tenho uma admiração muito grande por ela, pela banda dela e a carreira solo dela. Eu acho ela uma artista muito, digamos assim, muito inspirada. Quando eu a convidei para cantar a primeira vez comigo em 2011, no disco Horizonte Vertical, inicialmente ela ia cantar uma música só. E aí chegou no estúdio, ela cantou uma música, e aí eu falei: ô, Fernanda, escuta algumas outras canções que eu preparei para este disco. E ela gravou no mesmo dia, como se já conhecesse as músicas o tempo todo. Ela gravou quatro músicas comigo. Então eu convidei a Fernanda Takai para este disco, porque eu estava numa audição da pré-mix do álbum Tobogã, e eu estava ouvindo a música “Tobogã”, e eu senti falta de uma voz feminina e essa voz tinha nome e sobrenome, era a voz da Fernanda Takai. E eu prontamente peguei o telefone, mandei um zap pra ela, mandei a música, a letra, perguntei se ela toparia cantar comigo, e ela falou: “adorei a música, quero cantar sim”. E rapidamente ela cantou no estúdio da casa dela, não foi no estúdio que eu gravo meus discos, foi no estúdio da casa dela, com o marido dela, o John Ulhoa [guitarrista do Pato Fu]. E ela gravou e aí eu falei: pô, a Fernanda Takai no outro convite que eu fiz para ela, ela acabou cantando quatro, o convite era para uma só; aí eu convidei ela para cantar mais, ela cantou quatro. Eu vou convidá-la para cantar mais uma, aí convidei para cantar uma música chamada “Amor Real”, ela foi super generosa, super acessível, e falou assim: “eu adorei essa música também, canto ela sim, de boa, tá tudo certo”. Então, a Fernanda Takai eu tenho uma admiração muito grande por ela, como artista, tanto como cantora, como menina de banda, a presença feminina, a importância dela na banda dela, a carreira solo que é super iluminada, e ela tem sido generosa comigo em todos os convites que eu faço para ela.

"Tobogã" - capa/ reprodução
“Tobogã” – capa/ reprodução

ZR: Lô, e a escolha da foto da capa? Um jovem Lô, que remete ao Clube da Esquina, a foto do Cafi (1950-2019), que fez a capa do próprio Clube da Esquina e do Disco do Tênis, entre outras pérolas da música brasileira. O que te motivou a escolher essa foto para a capa?
LB: Velho, isso, sabe que foi uma obra do acaso? O cara, meu amigo, meu produtor, designer gráfico em alguns momentos da minha carreira, que é o Rodrigo Brasil, que assina o projeto gráfico, ele de vez em quando ele me manda umas fotos minhas do passado, ele manda para meu e-mail, meu zap, e me mandou essa foto. Ele nem sabia que eu estava fazendo um disco chamado Tobogã, para você ter ideia. Ele me mandou essa foto, eu falei: oh, Rodrigo, essa foto tem tudo a ver com o disco que eu estou fazendo, que é um disco que acena um pouco, que flerta um pouco com as coisas mais pujantes, mais viscerais, é isso. Falei com ele e convidei para fazer o projeto gráfico. Mas foi uma obra do acaso, ele mandou uma foto sem nem saber que eu estava fazendo um disco chamado Tobogã, ele me mandou uma foto do Cafi, eu adorei essa foto e falei que queria na capa do meu próximo disco.

ZR: Você tem acompanhado a repercussão do Nada Será Como Antes (2024), o documentário da Ana Rieper sobre o Clube da Esquina? O que você achou do filme?
LB: Eu achei muito bom o filme, eu gostei muito do Nada Será Como Antes, achei muito legal, gostei do que a Vania Catani, a Bananeira Produções, o Rodrigo de Oliveira, fizeram também um documentário meu, um filme meu, passou no Canal Brasil, passou em vários lugares, chama Toda Essa Água (2023), que é baseado em minha turnê do Disco do Tênis. Eu sou um cara considerado meio maluco, o Disco do Tênis eu fiz ele em 1972 e lancei ele quase 40 anos depois. Só fiz show dele quase 40 anos depois. Agora o Nada Será Como Antes eu gostei demais, porque o filme meu, o Toda Essa Água, que a Vania Catani me deu de presente, e o Rodrigo de Oliveira, trata mais da minha história e eu basicamente com o Milton [Nascimento], eu basicamente com o Beto [Guedes], eu basicamente com o meu irmão Márcio Borges, são poucas as pessoas que aparecem nesse filme. Agora o Nada Será Como Antes é muito mais abrangente, conta uma história muito incrível. Eu adorei esses filmes.

ZR: Para fechar: “Esqueça tudo, só não de mim”, você diz em “Esqueça Tudo”; e em “Presente” a gente ouve: “sua presença é palavra/ cheiro palpável com gosto de flor”. Eu acho que estes versos sintetizam a tua presença na música brasileira e o fato de você continuar criativo, contemporâneo e mantendo a qualidade aos mais de 50 anos de carreira. Como é que você se sente, nesse momento, lançando um disco novo e com todas essas qualidades que eu listei aqui?
ZR: Eu fico lisonjeado com isso, porque contemporâneo eu acho que eu sou. Sabe como eu me sinto? Eu me sinto um pavio aceso desde 1970, quando a minha primeira música foi gravada, “Para Lennon e McCartney” [parceria com Márcio Borges e Fernando Brant]. E esse pavio não apaga, porque se ele está meio assim, pouco nítido, eu dou uma sopradinha e eu vejo que ele está aceso. Por isso que eu faço tanta música, eu me sinto um pavio aceso fazendo canções. É minha forma de expressão, é minha forma de lidar com o mundo, de lidar com a vida, o mundo muitas vezes mais difícil do que tranquilo, é um mundo meio inóspito. Mas eu sou acostumado com isso, porque eu comecei minha carreira numa ditadura militar, que não tinha nada pior. Eu me considero criativo, se não não teria feito seis discos em seis anos. Eu me sinto contemporâneo, porque eu sou um cara dos dias de hoje, eu sou um cara de 2024; se eu comecei em 1970, 72, isso não interessa. É como meu pai falava, isso está na letra de “Tobogã”: “o tempo é uma abstração da mente”. Naquele filme que eu te falei que a Vania Catani fez, Toda Essa Água, eu falo assim: a gente tem oportunidade na vida de fazer 20 anos várias vezes. Eu estou no meu quarto 20 anos. Então, essa chama acesa ela está sempre comigo, esse pavio aceso, e é o que me mantém produtivo, contemporâneo e criativo.

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Ouça Tobogã:

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