Escândalo em 2020, com a revelação dos megacachês de Gusttavo Lima, os shows patrocinados pelo dinheiro público em prefeituras de cidades de orçamento modesto do interior do Brasil parece que tinham dado uma “trégua” aos mirrados cofres públicos. Mas, desde o ano passado, cresceram muito, alimentando uma bolha de prosperidade em certo espectro da música ao vivo nacional, majoritariamente sertanejo ou derivado. Uma música alinhada politicamente. Detalhe: tudo sem licitação. Em 2022, esses shows levaram o Congresso Nacional a estudar a abertura de uma CPI de investigação.
Ituiutaba (MG) contratou o grupo baiano Os Barões da Pisadinha para seu Carnaval 2024 por 450 mil reais de cachê. No dia 5 de maio, a banda foi contratada para tocar em Barcelos (AM), também por 450 mil reais. “Considerando a subjetividade que permeia a contratação em epígrafe, verifica-se que a inexigibilidade de licitação é o meio mais adequado para a contratação na área, uma vez que a banda tem um histórico comprovado de performances bem-sucedidas em eventos similares, e o preço ofertado considera-se justo a ser desembolsado pela Administração”, registrou parecer da Prefeitura de Barcelos. No dia 11 de junho, os barões foram tocar na festa Arraial dos Buritis, em Buritizeiro (MG), por 370 mil. Os cachês pouco se alteram de um ano para o outro: no dia 9 de julho de 2023, a prefeitura de Itaguaí (RJ) desembolsou 370 mil reais para levar os Barões da Pisadinha para tocar em sua exposição agropecuária.
Os Barões da Pisadinha, duo de piseiro e tecnobrega formado pelos irmãos baianos Felipe (tecladista) e Rodrigo Barão (vocalista), tem uma das agendas mais corridas nesse circuito. Gentio do Ouro (BA) os contratou por 380 mil para tocarem no dia 23 de junho durante o evento festivo e tradicional São João de Itajubaquara 2024, no distrito de Itajubaquara, quase o mesmo valor que o município gastou com a alimentação escolar da rede pública de ensino.
Mas o circuito vai muito além da pisadinha. O mesmo Carnaval de Ituiutaba (MG), no Triângulo Mineiro, que contratou os Barões levou o artista baiano Tomate por 600 mil reais. E a dupla Hugo e Guilherme por 500 mil reais. Da mesma forma, Luan Santana fará um show para a 46ª Expopec, em Ituiutaba (MG) dia 16 de setembro de 2024, por 700 mil reais – no dia anterior, na mesma jornada, a dupla Bruno e Marrone ganhará 650 mil para se apresentar na cidade. A prefeita de Ituiutaba, Leandra Guedes Ferreira (Avante), foi assessora parlamentar do deputado federal André Janones (Avante).
Zezé di Camargo cobrou 380 mil para se apresentar em Teresina de Goiás (GO) no dia 31 de maio, na festa de emancipação política do município. A cidade do Centro Oeste brasileiro tem 3 mil habitantes.
O pastor e cantor gospel Davi Sacer, que pediu votos para Jair Bolsonaro em 2018 e apoiou manifestações antidemocráticas, cobrou 120 mil reais para participar da comemoração de 266 anos do município de Barcelos, no Amazonas.
Gusttavo Lima, cujos shows desse tipo tinham arrefecido em 2022, voltou a ser o Rei da Inexibilidade de Licitação. Por uma apresentação na Expoagro, no aniversário da cidade de Mara Rosa, em Goiás (uma cidade de 6 habitantes por km2), fixou o cachê em 1,1 milhão de reais. Para fazer um sow na 26ª Vaquejada Nacional (e aniversário de 130 anos de emancipação do município) de Brasília de Minas (MG), ele cobrou os mesmos 1,1 milhão de reais. Mas há variações sazonais de preço: para fazer um show no final de 2023 em Campo Alegre de Lourdes (BA), Gusttavo cobrou 1,3 milhão de reais.
Esse circuito próspero tem levantado a suspeita de uma operação teleguiada de emendas parlamentares. O jornal O Globo informou hoje, 26, em reportagem, que o Ministério Público do Estado do Tocantins abriu um inquérito para investigar se a deputada estadual e pré-candidata à prefeitura de Palmas Janad Valcari (PL), ex-sócia do grupo musical Barões da Pisadinha, teria se utilizado das apresentações da banda para “enriquecimento ilícito”. A deputada foi sócia e administradora da empresa Os Barões da Pisadinha Produção Musical Ltda até dezembro de 2023. Mas, no período, os promotores suspeitam que 5 apresentações da banda em Tocantins, cujo valor chega a R$ 1,7 milhão, tenham recebido valores de emendas parlamentares da própria deputada. Deputados e senadores não podem, de acordo com a Constituição, manter contrato com pessoa jurídica, e muito menos beneficiar a si mesmos com esses contratos.