A versão de Álbum de Família de Jorge Farjalla foi feita sob medida para criar um desconforto no espectador. Só a leitura do texto de Nelson Rodrigues, que completa oito décadas no ano que vem, já incomoda do começo ao fim. Mais do que uma trama obscura, obscena e polêmica em torno de uma família disfuncional, a obra é envolta em questões sobre a moral e a condição humana. O diretor Farjalla faz questão de criar um clima tenso, claustrofóbico e opressivo para essa nova montagem.
Obra essencial do teatro brasileiro, Álbum de Família já teve inúmeras montagens nos palcos e até uma versão no cinema (de Braz Chediak). Em 2008, no Solar de Botafogo, o próprio Farjalla interpretou Jonas, o protagonista, um patriarca desprovido de moral. Na ocasião, segundo relata em entrevista ao crítico teatral Dirceu Alves Jr., da Veja São Paulo, ele já havia montado um palco com quilos de terra vermelha, como repete agora nesta montagem que estreou no novíssimo Teatro Estúdio, em São Paulo, em 6 de julho.
Álbum de Família mostra a decadência da estrutura familia oligárquica. Personagem após personagem, cada um deles vai desmoronando conforme a trama vai se revelando. Jonas (Alexandre Galindo) é casado com Senhorinha (Mariana Barioni), mas violenta mulheres corriqueiramente. Eles vivem com Rute (Lídia Engelberg), irmã de Senhorinha, que aceita a violência do cunhado. O casal tem quatro filhos. Guilherme (Daniel Marano) vira seminarista para sufocar a paixão que sente pela irmã Glória (Fernanda Gidali), que estuda num convento e é odiada pela mãe. Edmundo (Iuri Saraiva), o filho mais velho, é casado com Heloísa (Jullia Leite), mas vive uma relação fracassada por sufocar um amor reprimido. E há Nonô (Agmar Beirigo), o caçula, que perambula em torno da fazenda sempre nu.
Todos os personagens rodrigueanos são complexos e multifacetados. Em Álbum de Família, o dramaturgo e jornalista ficou à vontade para esgarçar ainda mais essa característica. Farjalla sabe disso e também está ciente de que a peça ainda é capaz de chocar, em pleno século 21. Assinando também a cenografia, os figurinos e adereços, o diretor se vale da disposição do novo teatro para criar situações desconfortáveis. A terra vermelha, por exemplo, beira e dificulta o acesso às cadeiras e ela não está ali à toa. Representa o útero materno, mas também as mortes presentes no enredo.
A plateia é disposta em dois blocos, um diante do outro, porém separados pelo palco. O elenco fica o tempo todo em cena, e personagens aparentemente secundários ganham expressão. É o caso de Nonô que corre e grita o tempo todo em torno do palco e da plateia. A grávida Totinha (Lara Paulauskas), perto de dar à luz, urra, como se estivesse ali a deixar claro uma violência a que todos estão sendo vítimas. Sambas de Cartola intercalam algumas cenas, causando outro desconforto por estarem deslocados de seus contextos.
É difícil imaginar que a peça Álbum de Família possa um dia ser contemplada com alguma montagem mais leve. Nelson Rodrigues se reviraria no túmulo, certamente. O espetáculo em cartaz em São Paulo não foge ao espírito original. É tão desconcertante quanto a própria obra, como queria o autor.
Vi o filme na internet,pena que a cópia está em péssimo estado.