A Amazon, se você for um liberal, é um trunfo do capitalismo globalizado. Já se for um progressista, verá ela como um símbolo do mundo de empregos temporários, terceirizados e superexplorados. Entre as Top 10 companhias mais valiosas do mundo, a empresa do bilionário Jeff Bezos é dissecada na peça E Se Fôssemos Baleias?, em cartaz no Sesc Pinheiros. Seria interessante poder dizer destroçada, mas a balança sempre é desigual entre forças desproporcionais.
O Coletivo A Digna conclui, agora, a Trilogia do Acúmulo, na qual procura discutir o capitalismo numa perspectiva crítica. Foi assim com Verniz Náutico para Tufos de Cabelo (2015) e Insones (2018). Desta vez, o espetáculo E Se Fôssemos Baleias? conta a história de uma trabalhadora de um centro de distribuição da Amazon, bem aos moldes de Nomadland (2020), filme vencedor do Oscar de Melhor Filme, Direção e Melhor Atriz.
Na produção cinematográfica norte-americana, a atriz Frances McDormand interpreta Fern, uma trabalhadora que aceita empregos temporários num depósito da Amazon, mas vive de forma nômade, dentro de seu carro que virou sua casa. É uma vida sem vida. O mesmo acontece com a personagem de E Se Fôssemos Baleias?, que tem dramaturgia de Victor Nóvoa e direção de Fernanda Raquel.
A personagem da peça que se submete a essa vida é capaz de lembrar os nomes de produtos por meio dos códigos de barras. Para o mundo amazonificado, mereceria a placa de funcionário do mês. Mas, claro, desde que não cometa erro algum, nunca. O problema é que seres humanos são suscetíveis ao erro, o que ocorre quando a personagem finalmente consegue dormir após longas jornadas exaustivas. Nesse dia, ela sonha que é uma baleia. Mas ao voltar ao emprego, na manhã seguinte, comete um pequeno deslize que gera sua demissão.
Duas atrizes, Ana Vitória Bella e Helena Cardoso, dão vida simultaneamente a essa personagem, numa construção cênica que produz os efeitos pretendidos: elas são iguais, robotizadas, mas no fundo sabemos que é exatamente isso que o capitalismo globalizado exige de nós. Máquinas são substituíveis, sempre, enquanto humanos não deveriam ser. O texto quer se contrapor a essa banalização das relações afetivas cada vez mais carcomidas pelo trabalho.
A peça é uma ação política por provocar no espectador um incômodo de que somos nós mesmos que estamos causando esse problema. Precisamos mesmo de tantos produtos etiquetados adquiridos em plataformas de comércio eletrônico como Amazon, Shein e Aliexpress? O desperdício capitalista, a aceleração (desnecessária) de um mundo, tudo isso é o que cria a demanda na sociedade por autômatos modernos, o que não ocorreria se fôssemos baleias.