Wanderléa canta choros em show no Sesc Vila Mariana, em São Paulo, na noite deste sábado, 2

Wanderléa nasceu virada para a Lua. Na mesma semana em que estreou um show de choro em São Paulo, na noite deste sábado, no Sesc Vila Mariana, o choro foi declarado Patrimônio Imaterial do País pelo Patrimônio Histórico. Mas o fato é que a cantora mineira também deveria ser declarada patrimônio cultural brasileiro: à beira dos 80 anos, cantando, dançando, elemento vibrante das conexões entre diversos expoentes da música brasileira (Roberto Carlos e Raul Seixas, Erasmo Carlos e Luiz Melodia, Egberto Gismonti e Jorge Mautner, Caetano Veloso e Gilberto Gil, entre dezenas de outros), show-woman de talento natural, potência emancipatória feminina, a voz preservando um alcance juvenil assombroso, Wanderléa fez um dos shows do ano no Sesc na noite passada (que repete neste domingo, daqui a duas horas, no mesmo teatro).

Cantando 18 números musicais em cerca de uma hora e meia de show, acompanhada de um octeto instrumental, uma frente ampla de notáveis instrumentistas (Roberta Valente, Alessandro Penezzi, João Poletto, Fabricio Rosil, Milton de Moura, Zé Barbeiro, Celso de Almeida e Alexandre Ribeiro), Wanderléa é a chave viva para a compreensão de uma época de revoluções cruciais. Epígono da Jovem Guarda, movimento jovem dos anos 1960, ela foi a anti-Celly Campello, uma garota que se insurgiu, ainda menor de idade, contra as convenções familiares e passou a andar na noite com os transviados de sua época, recebendo a carga de preconceitos que estava à espreita. Nessa fase, influenciou decisivamente quase todas as cantoras que viriam depois, algumas que reinariam em décadas seguintes (como a também mineira Vanuza, por exemplo, cujo compacto O Geghege, de 1967, é absurdamente influenciado por Wanderléa).

Wandeca abriu o show com a liricíssima Pedacinhos do Céu, composta em um banheiro da gravadora Continental (para perseguir a justa musicalidade que requeria) pelo compositor e cavaquinista Waldir Azevedo, nos estertores dos anos 1940. Com um vaso de flores brancas e amarelas sobre uma mesinha e uma cadeira no cenário, cadeira na qual ela só sentou duas vezes, Wanderléa contou da influência que os choros tiveram na sua infância, e do sonho de cantá-los um dia que demorou mais de 60 anos para chegar. É curioso: a Jovem Guarda surgiu para enterrar todo o establishment musical que se tinha estabelecido anteriormente, incluindo o choro, e sua nova “redenção” se dá justamente pelas mãos de uma algoz.

Por isso, justamente, a canção seguinte foi Delicado (Waldir Azevedo e Ary Vieira), que o maior virtuose da música instrumental contemporânea, Hamilton de Holanda, trabalhou no disco Wanderléa Canta Choros (Selo Sesc) com a anfitriã do show, conferindo sua implacável eletricidade moderna ao clássico. Mas é quando chega ao remoto Galo Garnizé, choro da fase inaugural do Rei do Baião (composição de Luiz Gonzaga com Antonio Almeida e Miguel Lima, de 1943), que o teatro se incendeia de vez. O canto onomatopaico de Wanderléa, brasileirinho em sua essência, misturado a scats jazzísticos e um festival de sopros carnavalesco faz a plateia vibrar de alegria, um momento de pura sintonia.

João Poletto e Douglas Germano compuseram a canção-manifesto do show e do disco, a única inédita, chamada de Um Chorinho para Wandeca. “Se você pensa aí que eu vou me despedir, se aquieta, acabei foi de começar”, canta Wanderléa, para um pouco mais adiante anunciar que está com três projetos musicais em cena atualmente: esse concerto de chorinhos, uma revival da Jovem Guarda e um outro show com sucessos de toda a carreira. Com direção musical de uma das filhas, produção de outra filha, neto no palco no final do concerto, Wandeca maceta sem dó qualquer sintoma de etarismo, uma ponte pênsil entre performers femininas de glamour e vital insolência, uma rainha do após-calypso.

Wanderléa armou um leque abrangente de pedras fundamentais do choro: Doce Melodia (Abel Ferreira e Luis Antonio), Apanhei-te, Cavaquinho (Ernesto Nazareth), Tico-Tico no Fubá (Zequinha de Abreu), Acariciando (clássico de Abel Ferreira, delírio de clarinetas), Uva de Caminhão (Assis Valente), O que vier eu traço (Alvaiade e Zé Maria, pedra de toque de Ademilde Fonseca, a quem ela dá crédito). Pontuando o “core” do show, ela coloca apenas uma escolha de dois mundos: Carne, osso e coração (da cantora Joyce, do álbum Feito Gente). Tudo é fiel ao receituário do choro, e a voz da cantora é realçada como um instrumento a mais do conjunto, explorada em sua capacidade de improviso e duelismo sonoro.

Aí, é chegada a hora de um intervalo breve, com o octeto fazendo sozinho dois números instrumentais: Um a Zero (Pixinguinha) e Brasileirinho (Waldir Azevedo). Em meio à neblina de Carinhoso, também de Pixinguinha, Wanderléa retorna das coxias para o set final do show.

Ao avançar um pouco mais, incomodada com a instabilidade de um dos seus cílios postiços, Wanderléa o arrancou sem hesitar e colocou sobre a mesa de flores. Como se retirasse ali também parte da disciplina ensaiada, ela atacou os pot-pourris liberalizantes (com Felicidade, A saudade mata a gente e Ternura), entregando toda sua explosão dionisiaca ao público. Parecia que tinha acabado, já tinha uma multidão no gargarejo. Mas aí ela chamou uma que não estava no script, Quando, um Roberto Carlos de 1967, para delírio geral da galera.

Em todo o espectro musical brasileiro, poucos artistas têm o background e o senso de palco de Wanderléa. Sua maturidade sóbria, inteligente e vigorosa em cena é um acontecimento em si. Mas tem muito mais: tem o imenso songbook nacional, que ela instala com charme e autoridade por onde quer que passe.

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