‘Bom Dia, Eternidade’ dos corpos negros

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Elenco da peça "Bom Dia, Eternidade", no Sesc Consolação.
Elenco da peça "Bom Dia, Eternidade", no Sesc Consolação - Foto: Julio Cesar Almeida/Divulgação

Convém adiantar, para uma boa compreensão do espetáculo, que Bom Dia, Eternidade não é uma peça linear, tampouco se revelará como uma narrativa com começo, meio e fim. Ela, aliás, parte do fim antes mesmo de iniciar. Também é bom alertar que a sinopse apresentada no programa da montagem não deve ser levada ao pé da letra. No texto, está escrito que “quatro irmãos idosos que sofreram um despejo quando crianças recebem a restituição do terreno após quase 60 anos e se encontram para decidir o que fazer”. O espectador verá no palco do Teatro Anchieta, do Sesc Consolação, não quatro, mas oito artistas, sendo que os idosos são os mais jovens, e é nisso que reside a delícia dessa provocação.

A Cia O Bonde decidiu explorar em Bom Dia, Eternidade (a não-possibilidade d)o envelhecimento dos corpos negros em um país de cultura escravagista. Passado e presente farão parte de um rebuscado jogo de heranças que os afrodescendentes trazem, mesmo quando a história insiste em colocá-los num mesmo papel social. Quando os quatro atores jovens iniciam o espetáculo, a plateia já é convidada a mergulhar num estado de euforia e felicidade típica de um grand finale que parece evocar uma história de pessoas bem-sucedidas. Mas descobre-se que não é nada disso. E que a história dessa montagem ainda está para ser reconstruída, revisada e revirada do avesso.

Bom Dia, Eternidade, com direção de Luiz Fernando Marques Lubi, mescla pequenas lembranças de cada um dos quatro irmãos que, só ao final se tornará mais vívida, de uma vida sofrida pela mãe deles. Em 15 de abril de 1964, ela sofreu um despejo, deixando-a na rua, e com as crianças pequenas sem o direito à moradia. O aparato da ditadura militar não dava brecha para contestadores, tampouco pessoas negras, pobres e periféricas. O que acontecerá naquele episódio não é inédito, acontece até os dias de hoje.

Entre lembranças, os integrantes d’O Bonde evocam também nessa construção cênica as histórias recortadas de quatro músicos, que serão gentilmente convidados a incorporar suas histórias de vida na dramaturgia, assinada por Jhonny Salaberg. O jogo entre o real e o ficcional torna a montagem por vezes caótica – de que história está se referindo em dado momento? Não é demais lembrar que os “quatro irmãos idosos” são os atores jovens, enquanto no palco os músicos estão todos com mais de 60 anos.

A presença de quatro músicos (Cacau Batera, na bateria e voz; Luiz Alfredo Xavier, no violão, contrabaixo e voz; Roberto Mendes Barbosa, no piano e voz; e Maria Inês, na voz) com suas próprias (e por que não dramáticas) histórias trará à tona também uma sorte de belas canções de Tim Maia, Johnny Alf, Lupicínio Rodrigues, Jamelão, Jorge Aragão, Djavan, Originais do Samba e Jorge Ben Jor. Já os quatro atores jovens periféricos (Ailton Barros, Filipe Celestino, Jhonny Salaberg e Marina Esteves) representarão seus duplos (os músicos no palco), e vice-versa.

Nesse encontro entre quatro irmãos, após receberem a notícia de que uma justiça (que justiça?) havia sido feita, uma pergunta que a sociedade deveria se fazer é deixada no ar: quantos negros foram despejados de suas vidas simplesmente por serem negros?

Bom Dia, Eternidade. Com a Cia O Bonde. No Teatro Anchieta, no Sesc Consolação, às sextas e aos sábados (20 horas), e domingos (18), até 25 de fevereiro. Ingressos a 50 reais.
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