“Os Delinquentes”, em busca do tempo roubado

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O que é roubar um banco comparado a fundar um? A conhecida frase do comunista Bertolt Brecht é uma crítica mordaz ao capitalismo e poderia servir de epígrafe para o filme Os Delinquentes, de Rodrigo Moreno, aposta da Argentina para o Oscar de melhor filme estrangeiro. Além de “roubar” os tomadores de empréstimo com juros abusivos, os bancos também “roubam” seus próprios funcionários, explorando o seu trabalho, como qualquer outra empresa capitalista que ambiciona o lucro. Afinal, de acordo com Marx, o salário não remunera todo o tempo empregado pelo trabalhador para produzir a riqueza. A mais-valia consiste justamente na parcela do tempo de trabalho não remunerado, do qual o capitalista extrai o seu lucro.

Em Os delinquentes, Morán (Daniel Elias), cansado de uma rotina tediosa e massacrante como funcionário de um banco, resolve aproveitar o livre acesso ao cofre e se apropriar exatamente da mesma quantia que receberia de salário em 20 anos, até se aposentar. Ao contrário de outros assaltantes, que buscam fugir da punição, Morán está resignado em ser preso, fazendo o seguinte cálculo: passar três anos e meio na prisão, com o dinheiro surrupiado devidamente escondido, para ser usufruído depois do cumprimento da pena, é melhor do que passar 20 anos trabalhando no banco. Essa premissa, que sustenta o filme, diz bastante não apenas sobre o nascimento do capitalismo, mas também da própria prisão, dois fenômenos intrinsicamente relacionados.

O trabalhador livre, não proletário, trabalha apenas “quando há trabalho” ou necessidade de trabalhar. Tem muito mais tempo livre, portanto, para descansar ou fruir de atividades de lazer. Já o proletário, dentro da lógica capitalista, se submete a uma jornada rígida de trabalho, controlada pelo patrão. Para disciplinar a mão de obra na forma de trabalho capitalista, foi preciso que instituições como a religião e a escola difundissem a ética do trabalho. Georg Rusche e Otto Kirchheimer mostram em Punição e Estrutura Social como é justamente quando o capitalismo surge, com a necessidade de disciplinar a mão de obra para o trabalho nas manufaturas, que também surgem as casas de correção, instituições punitivas que precederam as prisões e tinham como objetivo fazer com que criminosos, marginais, “desajustados” e pobres em geral fossem “domesticados”, ou seja, tivessem seus corpos treinados para o trabalho mecânico e exaustivo. Não é à toa que campos de concentração do regime nazista tinham em seus portões de entrada a frase “O trabalho liberta”.

Michel Foucault, em Vigiar e Punir, relata que a necessidade de introduzir a ética do trabalho nos pobres e criar neles uma aversão ao criminoso foi maior no momento em que os trabalhadores passaram a ter acesso direto à riqueza em seus postos de trabalho, como Morán tinha livre acesso ao cofre do banco. Para Foucault, o poder disciplinar se exerce a todo momento em instituições como quartéis, conventos, fábricas e cárceres.

São micropoderes que não estão regulamentados e é o que faz com que o carcereiro tenha uma margem grande de arbitrariedade para exigir comportamentos dos detentos, como adotar uma determinada postura corporal para mostrar submissão, mas também é o que faz com que o chefe de Morán e uma investigadora privada contratada investiguem internamente o roubo ao banco e apliquem punições coletivas aos funcionários, vistos todos como suspeitos de cumplicidade com Morán, o que em algumas legislações seria considerado assédio moral. É simbólico, assim, que o mesmo ator, Germán de Silva, interprete em Os Delinquentes tanto o chefe no banco, Del Toro, quanto o “chefe” da cadeia, o criminoso Garrincha, que explora Morán da mesma forma, com leis próprias e informais do sistema penitenciário. A analogia entre o patrão e o “chefe” da cadeia curiosamente também aparece no ótimo filme brasileiro Estômago, de Marcos Jorge.

O jurista soviético Evgeny Pashukanis defendia que o fato de a pena de prisão ser medida em tempo (anos, meses e dias) tem relação direta com o fato de o tempo ser usado na sociedade capitalista como medida de troca. Se “tempo é dinheiro” e o patrão troca um determinado tempo de trabalho por salário (descontada a mais-valia), o criminoso, por sua vez, paga o crime que cometeu justamente com tempo. Em uma fase do capitalismo em que havia ainda necessidade de disciplinar a mão de obra para o trabalho fabril, os presos eram submetidos ao trabalho produtivo na cadeia. Porém, quando surge um exército industrial de reserva, ou seja, quando há uma quantidade de trabalhadores maior do que o mercado de trabalho consegue absorver, os trabalhadores passam a se opor ao trabalho produtivo de presos, pois o encaravam como concorrência desleal. Nesse momento, o trabalho na prisão torna-se apenas punitivo, não produtivo, e a qualidade de vida dos presos despenca.

Isso ocorre devido ao princípio da less eligibility, segundo a qual, para que a punição tenha o efeito de dissuadir a prática de crimes na população em geral, a vida do preso deve ser pior do que a vida dos mais miserável trabalhador, subempregado ou desempregado. Do contrário, os trabalhadores preferirão se arriscar a cometer crimes e ir para a cadeia. Se Morán prefere trocar 20 anos de trabalho tedioso no banco por três anos e meio em uma cadeia argentina para ganhar o mesmo dinheiro no final, talvez isso não acontecesse se a cadeia fosse brasileira, com condições de vida muito mais precárias, como alerta Garrincha.

Morán reclama que, ao contrário da personagem Norma (Margarita Molfino), que trabalha apenas quando há trabalho, tem que ir ao banco todos os dias cumprir sua jornada de trabalho, mesmo quando não há nada o que fazer lá. Isso porque, ainda que não esteja produzindo o tempo todo, como o trabalhador de uma linha de montagem em uma fábrica, deve mostrar que está à disposição integral de seu patrão durante aquelas horas para fazer jus ao seu salário. A sensação de que desperdiçamos muito tempo com o trabalho, principalmente com o trabalho não produtivo, quase que punitivo, fez inclusive com que muita gente não se readaptasse à jornada de trabalho 100% presencial após a pandemia de covid-19 e pedisse demissão. Há que se lembrar que a palavra “trabalho” vem de “tripalium”, um instrumento de tortura.

Tanto o antropólogo e cineasta Kiko Goifman quanto a personagem Garrincha lembram que há um excesso de tempo na cadeia, tempo de pena, mas também tempo sem nada para fazer. Nesse sentido, o próprio tempo se transforma em punição, da mesma forma como o tempo gasto no banco, sem nada para fazer ou trabalhando em algo sem sentido.

Por outro lado, Garrincha considera que a prisão tem pelo menos uma vantagem: manter os presos afastados do celular, que aprisiona as pessoas, colocando-as 100% do tempo disponíveis para interação e viciando-as. Deve-se lembrar ainda como as redes sociais também têm uma lógica disciplinar, julgando, recompensando e punindo. Entre o tédio da prisão, do trabalho improdutivo e/ou sem sentido e o tempo acelerado que o trabalho e o celular podem impor, há um outro tempo, bem menos acelerado, de contemplação da natureza e dos pequenos prazeres da vida, algo que Morán parece buscar na cidadezinha de Norma e em sua relação com ela, uma busca pelo tempo perdido ou roubado. O próprio filme, de três horas de duração, um tempo considerado excessivo e com um ritmo bastante arrastado para os padrões hollywoodianos, parece querer provocar no espectador essa outra forma de encarar o tempo.

Ao contrário do que pode parecer pelo título e à primeira vista, Os Delinquentes não é um filme de ação e talvez os maiores delinquentes do filme não sejam exatamente Morán e seu cúmplice Román. Talvez a escolha de Morán, um homem aparentemente medíocre, que não parece nem sequer fazer jus ao termo “delinquente”, tentando resistir à exploração usando brechas do próprio sistema e jogando com as regras do jogo, seja uma escolha que muitos na plateia do cinema tomariam. Assim como Morán é um anagrama das personagens Román, Norma e Morna, pode haver um Morán em todos nós.

Danilo Cymrot é mestre e doutor em Criminologia pela Faculdade de Direito da USP e autor de O Funk na Batida: Baile, Rua e Parlamento” (Edições Sesc, 2022), semifinalista do Prêmio Jabuti.

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