Cena de The Beatles: Get Back
Cena de "The Beatles: Get Back", da Disney+ - Foto: Divulgação

Soa realmente como se fosse uma sobra de gravação de Double Fantasy, o último disco de John Lennon, de 1980, com uma sonoridade encaixada ali entre Watching The Wheels e I’m Losing You, trazendo uma evocação das chamadas “angst songs” de Lennon. Nada contra, mas é algo que apenas tangencia a música dos Beatles – o que é considerado mais que suficiente pela maioria, mas não chega a satisfazer uma minoria extravagante.

Frankenstein composto da exumação de pedaços de corpos resgatados separadamente, Now and Then, a decantada faixa inédita dos Beatles, chegou adequadamente ao mundo no Dia de Finados, ontem, 2 de novembro. Reúne dois mortos e dois vivos – John e George e Paul e Ringo – com o intuito maior de mostrar que a realidade da era da Inteligência Artificial (IA) é essa: a da promoção dos encontros impossíveis (e involuntários, muitas vezes), das combinações matemáticas irrastreáveis, da abolição circunstancial da morte (e também do desejo). A história da canção foi amplamente divulgada: a viúva de John, Yoko Ono, entregou a Paul McCartney, em 1994, uma fita cassete escrita “For Paul”, que continha algumas gravações feitas por John Lennon ao piano, no Edifício Dakota, em 1977. Dessa fita, saíram duas canções já lançadas anteriormente: Free as a Bird e Real Love (lançadas em 1995 dentro do projeto Beatles Anthology).

Now and Then era um caso mais complicado porque a voz na gravação estaria com ruídos. Não foi só por isso: em 1997, Paul declarou à revista Q que George não tinha gostado da música e que, como os Beatles eram “uma democracia”, não foram adiante. Mas Harrison (que morreria de câncer em 2001), Ringo Starr e Paul chegaram a trabalhar na sua conclusão instrumental, diz a máquina de divulgação oficial. Com o avanço das novas tecnologias (o mesmo software utilizado pelo cineasta Peter Jackson para materializar o assombroso documentário Get Back), foi possível isolar a voz de Lennon e o piano e limpar a gravação, o que permite seu lançamento agora. Paul e Ringo, os vivos, produziram novas partes instrumentais para a canção, que também recupera a parte das guitarras gravada por George em 1995 (embora fique faltando um solo mais característico). Foi acrescentado um arranjo de cordas criado por Paul, Giles Martin (filho de George Martin, produtor dos Beatles) e Ben Foster. Os vocais de apoio também são “exumados”: vieram das gravações originais de Here, There and Everywhere, Eleanor Rigby e Because. Jeff Lynne (guitarrista da Electric Light Orchestra) foi o produtor adicional.

Solidão extrema, um sentimento de frustração, a maldição da incomunicabilidade, a busca incessante da redenção pelo amor: as canções tristes de Lennon nessa fase carregam a marca de sua incompatibilidade social e existencial. Nesse sentido, a poesia e o amargor de Now and Then (expressão que pode ser utilizada, em português, no lugar de “de vez em quando”, “de tempos em tempos” ou “vez ou outra”) é mais presente do que sua sonoridade híbrida. “Eu sei que é verdade, é tudo por sua causa/ E, se eu conseguir passar por isso, é tudo por sua causa/E, de vez em quando, se tivermos que começar outra vez/Bem, vamos saber com certeza que eu amo você”. Teria sido uma música que John compôs para Paul, diz a lenda. Quando do seu último encontro, no hall do Edifício Dakota, John teria dado um tapinha de despedida no ombro de Paul e lhe dito as últimas palavras entre os dois: “Think of me every now and then, old friend” (Pense em mim de vez em quando, amigo velho”).

Paul defendeu com a serena habilidade de sempre o lançamento, argumentando que “nada foi criado artificialmente ou sinteticamente. Tudo é real e todos nós tocamos na música. Limpamos algumas gravações que já existiam, um processo que tem sido realizado há muitos anos. Esperamos que vocês gostem dela tanto quando nós gostamos”. Ringo também tem as manhas do convencimento: “Foi o mais próximo que chegamos de tê-lo (John) de volta, então foi muito emocionante para todos nós. Foi como se John estivesse lá”.

Houve toda uma preocupação em marcar o lançamento dessa música como uma espécie de “último ato” dos Beatles em seu longevo reinado de 60 anos este ano. A capa, por exemplo, que sugere alguma displicência geométrica, demasiado simplória, é na verdade uma menção à famosa foto de 1963, feita por Angus McBean para a capa do seu primeiro disco, Please Please Me, na qual os quatro Beatles estão nos balcões internos do edifício de Manchester Square, 20, em Londres, olhando para baixo. A capa de Now and Then é como se fosse uma imagem estilizada dos balcões, só que os Beatles são apenas imagens na memória de quem se lembra precisamente de suas canções.

As vozes emparelhadas de Paul McCartney, aos 81 anos, e John Lennon, então com 37 anos, criam uma espécie de fenda temporal nos ouvidos dos fãs. É possível criticar o excesso de produção, o piano extemporâneo (em relação ao resto da instrumentação), o toque muito modernizado (“Estão copiando o Oasis?”, ironizou um fã), mas é impossível lutar contra o apelo emocional da canção. É uma história perfeita para encerrar telejornal com o sorriso de satisfação cúmplice de âncoras do mundo todo. O Natal de 2023 será dos Beatles, esse certamente será o hit número um em todo lugar do Planeta.

PUBLICIDADE

DEIXE UMA REPOSTA

Por favor, deixe seu comentário
Por favor, entre seu nome