Os meses que se seguiram ao dia 9 de novembro de 2022 não foram gentis com Gal Costa (26/09/1945-09/11/2022). Diante da comoção pela morte da cantora, fatos extra-artísticos ganharam relevo progressivo e agressivo, na forma de ataques misóginos e lesbofóbicos que pareciam mirar sua então empresária, Wilma Petrillo, mas forçosamente atingiam em cheio a própria Gal. Quase um ano depois de sua morte, ensaia-se enfim uma mudança de curso, que recoloca os aspectos artísticos em primeiro plano, primeiro com o lançamento do álbum Belezas São Coisas Acesas por Dentro, de Filipe Catto, e a partir deste dia 12 com a estreia nos cinemas da ficção biográfica Meu Nome É Gal, dirigida em dupla por Dandara Ferreira e Lô Politi.
Se o tributo de Filipe Catto traz uma perspectiva transexual ao culto à voz feminina da tropicália, o filme de Dandara Ferreira e Lô Politi oferece uma compreensão essencialmente feminina ao mito de Gal Costa. Esse é o principal e mais importante trunfo de Meu Nome É Gal, embora não o único.
Outro grande trunfo, também de alto impacto, é o fato de o filme centrar-se num período curto e bem definido da trajetória da artista, no longo século que se passa entre 1968, quando ela migra da Bahia para o Rio de Janeiro, e 1971, quando estreia o show Fa-Tal. Na entrevista coletiva de apresentação do filme, Dandara Ferreira contou que Gal aprovou a decisão de fechar o foco da produção, que a princípio deveria chegar até os anos 1980, época de maior popularidade da cantora. Os três anos cobertos por Meu Nome É Gal renderiam não um, mas três filmes, uma série ou uma novela inteira.
De volta ao duro e áspero presente, a memória e o legado de Gal começaram a ser achincalhados no próprio cenário de sua morte, quando a Rede Globo caracterizou Wilma Petrillo como “viúva” da artista. O cerimonial do velório escrevia que Gal Costa “deixa o filho Gabriel Costa Penna Burgos“, sem qualquer menção a cônjuge ou qualquer outro parente. Como era amplamente sabido, a própria Gal preservava sua vida íntima e/ou sexual a ponto de torná-la um tabu, rechaçando abruptamente perguntas jornalísticas a esse respeito.
Meu Nome É Gal aborda esse tema e essa tensão Gal-imprensa (ou tropicália-imprensa), numa cena em que a jovem Gal abandona uma entrevista incomodada com as investidas da repórter para invadir seu espaço íntimo e privado. É uma demonstração de que esse instinto de preservação a acompanhou desde o início da fama, ou é um modo indireto e sutil de as diretoras comentarem e criticarem a violência a que Gal foi exposta no pós-morte – ou ambas as coisas ao mesmo tempo.
O espetáculo de horrores que se viu recentemente na cobertura jornalística e nas reações da base de fãs via redes sociais não é assunto para o filme, afirma a diretora Lô Politi: “A Gal do filme é a Gal do final dos anos 1960 e começo dos 1970. Como filme, a gente não pega nada do que aconteceu agora, não nos interessa, está totalmente fora do nosso recorte”.
Em contexto tão adverso, abordar a sexualidade de Gal num filme torna-se um imenso desafio. “Isso nunca foi assunto, nem Gal permitiu que isso fosse assunto”, diz Dandara Ferreira, referindo-se à devassa e a espécie de tribunal popular promovidos a partir de uma reportagem da revista Piauí. “Ela não está mais aqui, é preciso respeitar o íntimo, o privado, os desejos dela.”
Lô Politi fala sobre a luz que o filme joga sobre esse aspecto da persona de Gal Costa: “A gente aborda a sexualidade de uma maneira muito natural. Isso não era uma questão. É uma não-questão para essa turma naquele momento, um período de descobertas, testes, experimentações. Para eles não era uma questão, e para nós também não foi”. Mas, como diz a personagem Dedé Gadelha (Camila Márdila) a certa altura do filme referindo-se à dicotomia Maria da Graça/Gal, as coisas não são tão simples assim.
As sementes que germinam em Meu Nome É Gal foram plantadas pela própria artista, quando permitiu que a baiana Dandara Ferreira (filha do também baiano Juca Ferreira, ex-secretário-executivo do ministro da Cultura Gilberto Gil nos primeiros governos Lula e ministro da Cultura no segundo governo Lula e no segundo governo Dilma) dirigisse a minissérie documental O Nome Dela É Gal (2017). Satisfeita com o resultado, Gal incumbiu Dandara de preparar também uma produção ficcional, e Dandara trouxe consigo Lô Politi, uma das várias mulheres cineastas que se impuseram no contexto do golpe na presidenta Dilma Rousseff, em seu caso co-dirigindo com Anna Muylaert, de dentro dos bastidores do impeachment, o documentário Alvorada (2021).
O direcionamento dado por Gal à condução cinematográfica de sua história é um dado de extrema significância. Tratava-se de entregar a própria biografia a mãos femininas, o que se exacerbou na escalação de roteiro e direção, 100% a cargo de mulheres. Wilma Petrillo, a propósito, aparece como uma das produtoras associadas de Meu Nome É Gal.
Esse último detalhe poderia causar especulações sobre possíveis cerceamentos no retrato de Gal, que afinal se tornou póstumo para desconsolo da equipe do filme. Mas isso não é o que parece acontecer. O filme é transparente em vários aspectos, inclusive no trato da sexualidade da jovem Gal Costa. Um exemplo: quando a mãe da artista, Mariah (vivida magistralmente pela atriz nascida francesa e radicada baiana Chica Carelli), chega de surpresa à casa da filha em São Paulo, Gal está na cama com outra garota. Mariah se esforça por agir naturalmente, mas o incômodo da filha é evidente.
Sempre de modo sutil, fica registrado que, por incrível que nos possa parecer, não é de todo pacífica a relação da revolucionária tropicalista em gestação com o próprio corpo e a própria liberdade sexual. Antes de artista, a Gal Costa retratada no filme é um ser humano dotado de complexidades e incongruências. Essa é a primeira pista deixada de que a heroína de Meu Nome É Gal não é uma mulher-maravilha, nem coisa que o valha.
A fogueira das vaidades tropicalistas aparece na tela em faíscas, mais em personagens coadjuvantes e menos no quarteto protagonista, formado por Gal (interpretada com voz e altivez por Sophie Charlotte), Gil (Dan Ferreira), Caetano Veloso (Rodrigo Lelis) e Maria Bethânia (a própria Dandara Ferreira). Bons compreendedores das sutilezas montadas pelas diretoras e roteiristas notarão que, diante do exílio de Caetano e Gil, estabelece-se uma disputa pela voz de Gal, entre Tom Zé (Pedro Meirelles), pelo lado paulistano, e Jards Macalé (Barroso) e Waly Salomão (George Sauma), pela frente carioca. Esses últimos levam a melhor, e se não fosse assim talvez não tivessem existido o show Fa-Tal nem o clássico “Vapor Barato” (1971). Do lado oposto, Tom Zé submerge no desterro, até protagonizar um renascimento espetacular apenas nos anos 1990, quando a tropicália estivesse prestes a completar 30 anos.
(Um parêntese: na gênese da borboleta, é saborosa a cena da definição do nome artístico Gal Costa, em substituição ao original e provinciano Maria da Graça, ou Gracinha. Segundo essa versão, o primeiro lampejo parte de Gil, e Caetano resiste porque Gal é abreviatura de general e Costa é um dos sobrenomes do general-ditador de plantão Artur da Costa e Silva. O episódio semi-anedótico descortina a emergência de Gal Costa como um anti-general Costa e Silva e dá sentido extraordinário ao “casaco de general” vestido com estoicismo no “Vapor Barato” de Waly e Macalé.)
A mecânica da transparência com sutileza envolve outro fio nuclear da gestçaão de Gal Costa como a conhecemos do final dos anos 1960 em diante. A ditadura, associada a rodadas de xingamentos recebidos nas ruas (“vai pra casa, vagabunda” e “hippie piolhenta” são duas exibidas na tela), causa muito medo nessa heroína ainda muito jovem. Após cantar o hino audaz “Divino, Maravilhoso”, composto por Gil e Caetano, no festival de 1968, Gal se deprime, se encolhe em sua cama e chora desesperadamente.
Na entrevista coletiva, uma jornalista de 21 anos manifesta seu espanto diante da cena em que uma estrela pop chora de desespero depois de uma performance eletrizante (e, o tempo dirá, antológica). Como muito já se disse sobre Gilberto Gil, Gal Costa também era naquele momento, além de artista, uma pessoa assaltada pelo medo. Não é uma heroína comum ou banal a que Dandara Ferreira e Lô Politi delineiam. Novamente, Meu Nome É Gal não é um filme de super-heróis (ou é, mas de super-heróis atípicos brasileiros, sob regime de terror).
A exposição dos pânicos de Gal Costa, do medo sexual à parúa política, dá substância e contundência ao processo de saída da borboleta do casulo, como pontua a certa altura o personagem do empresário dos tropicalistas, Guilherme Araújo (vivido por Luís Lobianco). No início do filme, no mitológico Solar da Fossa, uma Maria da Graça recatada e introvertida esboça uma risada pudica (mas fogosa) quando Guilherme se apresenta a ela como “viado”. Na parte final (prenunciada pela primeira cena do filme), a borboleta esvoaça no show Fa-Tal, lagarta da maçã de Eva metamorfoseada em fruta gogoia, calunga de louça, uma joia, tiranaboia, uma moça. O motor da metamorfose, segundo ensina Meu Nome É Gal, é o medo – e, sobretudo, a coragem de enfrentar o medo paralisante de peito aberto. Não à toa, outro dos paralelepípedos musicais da tropicália, autoria de Caetano com o poeta piauiense Torquato Neto, é “Mamãe, Coragem”.
Essa síntese entre o medo e a coragem foi o ouro de Midas descoberto pela Gal de 1968-1971 e repetido em outras ocasiões, como em 1993, quando ela expôs os seios nus no show do disco O Sorriso do Gato de Alice – e foi execrada pela crítica e pela sociedade dos anos 1990, quase 30 anos depois de os moralistas que a xingavam de “piolhenta” e “vagabunda” terem rolado por debaixo da ponte. Nem sempre o condão da metamorfose a tocou, e essa é uma conta que o Brasil ainda tem a ajustar com a memória da única mulher protagonista e autora da tropicália. Pois, como o filme mostra, Gal Costa não foi musa, mas sim autora tropicalista, ainda que não tenha escrito um verso ou uma nota musical sequer das canções do movimento. Essa é uma beleza que foi sendo apagada por dentro, em vida, pelo sofrimento e pelo esquecimento.
Em termos históricos bem ilustrados no filme, quando Gil e Caetano são exilados e Gal se refugia nas “dunas do barato” da Ipanema do inicio dos anos 1970, ela se reinventa como uma porta-voz deles na resistência brasileira, um dado em geral compreendido como casual, involuntário. Esse dado nasce do dado que que ela ficou para que eles tivessem ido, e vice-versa. Mais que como porta-voz das vozes masculinas, ela ficou como uma porta-voz de si mesma, mas isso a história não registrou com tanto afinco. Novamente sutis, as diretoras satirizam esse dado numa cena em que Dedé e Gal testemunham um acalorado debate político-filosófico entre os machos da patota. “É muito homem junto, né?”, observa uma para a outra.
Não foi feita sobre flores a pequena grande revolução tropicalista, explica sedosamente Meu Nome É Gal. A elaboração dos medos que conduzem essa Gal porta-voz de si própria pelo filme situa com precisão a matéria de que são feitos alguns de nossos trabalhos prediletos dos tropicalistas, como seus Legal (1970) e Fa-Tal (1971), a Transa de Caetano, o Drama de Bethânia e o Expresso 2222 de Gil (os três de 1972): medo, solidão, banzo, depressão. Não é a alegria que movimenta a arte que mais nos arrebata, por mais que a tropicália gritasse que a alegria é a prova dos nove.
A exposição poética de “London London” no filme é exemplar disso: a loa de Caetano por poder atravessar as ruas de Londres sem medo, já que lá os policiais são gentis, não é portanto expressão de uma celebração. Traz a nu, em vez disso, o horror pela condição brasileira de arcar com o ônus maior da truculência policial e militar (e aí está a Palestina a mostrar que o passado e o presente se embolam a cada curva). Cantar isso em inglês, em 1970, é a parte que coube a Gal num latifúndio de injustiça.
Fica como imagem potente de Meu Nome É Gal o conselho que dona Mariah, protetora e repressora como qualquer mãe, dá à filha, por carta, no início da jornada: “Cuidado pra não se machucar”. Não foi possível para ela se preservar dos ferimentos de guerra, nem naquele momento, nem depois, nem mesmo no pós-vida. O filme de Dandara Ferreira e Lô Politi oferta elementos caudalosos para que seus espectadores (e espectadoras, principalmente) compreendam por que foi assim e procurem, se puderem, não viver mais uma vez como viveram nossos pais e nossas mães. Para cá de qualquer futrica ou preconceito, as sementes plantadas por Gal Costa em seus últimos anos e dias já começam a brotar.
Uma maravilha de texto,eu só eliminaria o ”Drama” de Maria Bethânia como álbum tropicalista,a irmã de Caetano não fez parte do movimento,falta-lhe o elemento pop.
Apesar que a História não é fixa,tudo é ressignificado o tempo todo,a ”Tropicália” que já foi ”alienada”,hoje é ”engajada”,Gal Costa que era a musa do ”desbunde”,hoje é considerada a primeira cantora de ”protesto” pós AI-5.
Sim,li duas vezes.