De que falam os retratos

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Imagem de Afonso Pimenta do aniversário de 6 anos da Renatinha, 1988 - Foto: Afonso Pimenta
Aniversário de 6 anos da Renatinha, 1988 - Foto: Afonso Pimenta/Divulgação

Exposição Retratistas do Morro, em cartaz no Sesc Pinheiros, é uma janela para décadas de histórias de vida de toda uma comunidade

Uma mostra fotográfica é uma constelação de momentos, alinhavados por uma intenção de história ampliada, complexa, múltipla. Assim é a exposição Retratistas do Morro, em cartaz no Sesc Pinheiros, em São Paulo. Ao reunir décadas de trabalho dos fotógrafos João Mendes e Afonso Pimenta, ela é uma celebração potente de milhares de histórias de vida de toda uma comunidade. 

Retratistas do Morro nomeia um projeto criado em 2015 pelo pesquisador e artista visual Guilherme Cunha, que assina a curadoria da exposição. Ele investiga a produção de fotógrafos em comunidades e trabalha pela preservação de uma memória rara no País – registros da vida íntima, de hábitos e sonhos de uma população pouco retratada na história oficial: a periférica, pobre e, não por coincidência, mas como fruto de séculos de segregação, também majoritariamente negra. 

Parte importante dessa pesquisa é o impressionante acervo de João e Afonso, fruto de décadas de trabalho na belorizontina Aglomerado da Serra, uma das maiores favelas do Brasil. Em atuação desde os anos 1960, os fotógrafos somam mais de 25 mil fotogramas – registros de festas de aniversário, casamentos, formaturas, bailes e tantos outros cotidianos. Uma população apresentada a partir de dentro é muito diferente daquela vista por fora. Não estão aqui os registros de violência, miséria e falta, mas de uma vida abundante como se quer e deveria ser.

As histórias de João e Afonso têm no bairro e na fotografia dois valiosos pontos em comum. Vindos do interior, eles se mudaram para Aglomerado da Serra com suas famílias, acabando por se conhecer quando Afonso se tornou assistente e aprendiz de João, que abrira um estúdio na comunidade. João, sempre ali, na fotografia. Afonso, alternando temporadas com outros trabalhos. 

Muito ao largo da ideia de fotógrafo-antropólogo, estrangeiro ao tema que retrata, os olhares de João e Afonso são bastante íntimos, coisa típica de membros da comunidade. Lá eles trabalham e vivem. Sua clientela é conhecida. É a vizinhança. E essa relação parece transbordar as molduras das fotos, transparecendo nos olhares cúmplices das pessoas fotografadas.

É a primeira vez que as imagens ganham um espaço expositivo fora de Minas Gerais. Algumas fotografias falam por si: um rapaz de jardineira jeans segurando um boombox em um quintal, rodeado por mudas de samambaias, antúrios e comigo-ninguém-pode plantadas em vasos e latas, ostentando um penteado black; uma festa de aniversário infantil com crianças e adultos reunidos em volta do bolo em uma mesa, cantando parabéns.

Antes mesmo de entrar no salão do Sesc Pinheiros, ainda no corredor, já é possível ouvir uma música. O baixo bem marcado saltita suave, o suficiente para se fazer entender sem roubar a cena. Era Billie Jean, de Michael Jackson. Acompanhando o passeio por todo o espaço, é possível ouvir uma playlist desenhada por Misael Avelino, fundador da Rádio Favela, que cria na sala de exposições a atmosfera de um baile black mineiro. 

Difícil não cantarolar enquanto se caminha por um corredor branco repleto de fotografias em tons pastéis. Surgem imagens de crianças usando becas de formatura – vestes azuis sobre fundo amarelo, rosa sobre verde, laranjinha sobre rosa. Muitas peles negras, cabelos crespos. Às vezes sérias, tantas tímidas, várias com sorrisos de fora a fora. Meninas pequenas arrumadas com batom como ensaios de quem gostariam de se tornar (eu também devo ter experimentado meu primeiro batom assim, para festejar uma etapa escolar). A parede branca reúne muitas a partir de um conjunto de centenas, jovens formandos da escola pública fotografados por João ao longo de décadas. 

A viagem imagética prossegue. Uma mulher segura uma guitarra no salão da igreja. Dois homens brincam capoeira, pernas ao ar. Muitos e muitos bebês. As legendas, às vezes, traziam os nomes completos das pessoas retratadas, talvez um sinal do que foi possível lembrar – “casamento da filha da Ditinha”. 

Outra experiência

Eu estava havia tanto tempo imersa ali, naqueles olhares, roupas, beijos e poses, que não observava mais as etiquetas. Em vez disso, por conta própria, imaginava nomes e histórias, os porquês que levavam as fotos a acontecerem. Foi quando me detive em uma, e li com atenção que, abaixo do nome, havia uma outra indicação: um símbolo de fones de ouvido junto do texto: “Faixa 47”. Mas será que…

Procurei a equipe educativa e descobri que havia uma outra exposição, por assim dizer, suspensa no ar. O trabalho de preservação da história realizado pelo projeto Retratistas do Morro inclui entrevistas de história oral com João e Afonso. É possível ouvi-los, afinal, rememorando as pessoas e histórias de suas fotografias! Foi como abrir a janela pela manhã e deixar o sol entrar no quarto. Pedi à equipe um equipamento para ouvir as faixas. E, com um aparelhinho de áudio, recomecei minha visita pela exposição – desta vez, procurando escutar as vozes que me contariam as histórias que, até então, estava decidida a imaginar.

Fui até a imensa impressão da fotografia da festa de aniversário da Renatinha. Era uma das minhas favoritas. Era muito familiar ver as crianças ao redor da mesa, o bolo com glacê, os salgados e as garrafas de vidro de refrigerante – parecia com as minhas próprias fotos de família. E, cá entre nós, sempre gostei muitíssimo de usar as garrafas como escala para entender o tamanho das crianças; quando pequenos, não somos muito maiores que um suco de guaraná com gás. 

Não era tão óbvio assim conhecer o que antecedeu àquela reunião feliz. Pelos ouvidos, aprendi o que os olhos não tinham como saber. Era o sonho da Renatinha comemorar o aniversário. Todo ano, ela pedia uma festinha aos pais. Eles, na falta de dinheiro, não conseguiam dar a ela o desejado bolinho. Foi quando ela disse que não precisava de bolo, salgadinho e refrigerante. A mãe já cozinhava tão bem, que todo mundo ia ficar feliz de comer arroz com feijão que ela fazia; só queria mesmo comemorar. Então pude ver, de novo, a fotografia, e enxergar nela – nos olhares dos adultos, especialmente – uma alegria antes invisível. E assim se revelam os detalhes cruéis da desigualdade social no País: na quantidade de garrafas de refrigerante presentes nas fotos de família.

Passei um bom tempo assim, conhecendo profissões, casamentos, separações, saudades e perdas. Muitas não eram como gostaria que fossem, quando as estava imaginando. Mas elas são como são, e estavam ali contadas. Contando-se. Saí de lá com dores emprestadas e pensando que, no tempo da fotografia, é preciso ajustar também o tempo do verbo. Algo fotografado não simplesmente aconteceu, mas acontece – num presente persistente, que resiste ao que veio antes e ao que virá depois.

* Resenha produzida para o Centro de Estudos Latino Americanos sobre Cultura e Comunicação da Universidade de São Paulo (Celacc-USP)


Retratistas do Morro. No Sesc Pinheiros, de terça-feira a domingo, até 20 de novembro. Grátis

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