“A Fé e o Fuzil” antevê o Brasil evangélico das próximas duas décadas

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A Fé e o Fuzil, em sua capa, estampa duas armas de fogo, lado a lado, que vistas à distância formam a imagem de uma cruz. A capa verde, cor que costuma ser associada à esperança, à liberdade e à saúde, em nada atenua o simbolismo dos dois objetos bélicos e assassinos assim dispostos. Bruno Paes Manso, autor deste livro recém-lançado pela Todavia, não produziu apenas mais uma obra explicativa do Brasil. Ele projeta o futuro sombrio do País que ocorrerá em menos de duas décadas.

O jornalista persegue, quase como uma devoção de fé, o tema da violência desde que um dia foi pautado para produzir uma reportagem sobre chacinas em São Paulo. Fim dos anos 1990, a capital paulista era uma das campeãs mundiais de assassinatos, e havia apenas dois tipos de jornalistas policiais. A maioria “bebia” nas fontes de segurança, portanto reproduzia o que e como pensavam os homens que deviam combater o crime. Bruno fazia parte do outro time, daqueles que preferia desconfiar das versões oficiais e ir atrás dos personagens das ruas, vítimas ou vilões da violência. Daquela grande reportagem que a muito custo saiu publicada na revista Veja resultou O Homem X: Uma reportagem sobre a alma do assassino de São Paulo (2005, Record).

Pois foi naquele momento que uma fagulha de um livro que só viria a ser publicado 18 anos depois, A Fé e o Fuzil: Crime e religião no Brasil do século XXI, já chispeava em sua mente. Na ocasião, ao entrevistar matadores, Bruno conheceu personagens que o acompanham em sua trajetória de entender como a violência é parte atávica da sociedade brasileira. Descobriu que as chacinas eram sempre “justificadas”, e, para sua surpresa (àquela época), que alguns desses personagens cansados do ciclo da violência interminável decidiram se converter para as igrejas evangélicas.

O Brasil, explica Bruno, viu um fenômeno emergir silenciosa e subrrepticiamente sem que muitos se dessem conta, e ocorrido de baixo para cima: a transformação acelerada de um país católico em evangélico. Há até uma data para que isso se torne realidade: 2040, segundo apontam os dados do IBGE. Para o jornalista, que também é pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo, essa constatação é menos alarmante do que as suas descobertas derivadas das apurações que fez para este novo livro: os movimentos pentecostais recorrem à imagem de um Deus vingativo para justificar a perseguição aos inimigos (leia-se infiéis, minorias em geral, progressistas etc).

“Uma vez no poder, a pauta dos pentecostais não é a salvação do planeta, nem a construção de estruturas que domestiquem o mercado ou preservem a vida, mas a expulsão do mal para que o bem impere. A competição e o acúmulo de riquezas, inclusive, devem seguir a todo vapor para a vitória dos mais fortes — que, nesse caso, contam com a proteção das armaduras de Deus”, diz o autor em um trecho de A Fé e o Fuzil.

Despido de preconceitos, Bruno Paes Manso se matriculou, durante a pandemia, num curso online para fiéis, pastores e missionários. Queria, ao contrário de jornalistas fanáticos por julgar, acusar ou defender um lado da história, compreender o fenômeno e as consequências da relação do crime com a religião a partir da ótica de seus personagens. Como é possível que as igrejas neopentecostais tolerem e até justifiquem a violência praticada por muitos ex-criminosos? A conversão (a Deus) seria a resposta, mas o jornalista vai além, com propriedade de causa.

Com sua experiência em incursões pelas periferias brasileiras, sobretudo as paulista e fluminense, Bruno adentra outros universos que não deixam de cruzar com a realidade violenta que busca investigar. É o que ocorre quando ele lembra que expressões culturais como hip-hop, funk e samba não deixaram de ser incorporadas até mesmo por novelas bíblicas da TV Record, do bispo Edir Macedo. Embora a imagem que se faça do funk seja das piores entre os conservadores, o jornalista lembra que, quando necessário, histórias de redenção são oportunas mesmo entre esses personagens. Kondzilla, o principal produtor do funk brasileiro, converteu-se para a Assembleia de Deus, tornando-se assim “aceito” pelos pentecostais, um exemplo de redenção. Mais que isso, o próprio gênero é cooptado e acaba por virar o funk superação (quase como oposição ao ostentação).

Em 2018, Bruno publicou seu segundo livro, A Guerra: a ascensão do PCC e o mundo do crime no Brasil (2018, Todavia), que elucida como a facção que nasceu nos presídios reestruturou a vida no mundo criminal. É um petardo. Dois anos depois, com A república das milícias: Dos esquadrões da morte à era Bolsonaro (Todavia), o jornalista parecia ter encontrado sua obra-prima. O livro explica, literalmente, como o País que convivia com os esquadrões da morte nos anos 1960, sucumbiu ao tráfico nos anos 1980 e 1990, pós-ditadura militar, e viu as milícias ocuparem criminosamente as periferias, dar uma eleição “de presente” a Jair Bolsonaro.

Em A Fé e o Fuzil, Bruno faz uma amarração com os livros anteriores, sempre tendo como pano de fundo a necessidade de uma população exposta a todo tipo de violência a encontrar saídas (seja pelo culto, pela milícia, pelas facções). O ex-presidente Bolsonaro, diz o jornalista, não deixa de ser como um “comandante ungido dessa guerra santa”. O novo livro é um convite a uma dolorosa reflexão sobre o Brasil atual. Se o fuzil explica, per si, o estado beligerante de uma sociedade, a fé deveria ser a contraposição espiritual, holística, afetiva ou o que seja frente a essa escalada da violência. O livro não traz respostas concretas sobre esse dilema existencial de uma nação, nem deveria. Mas vale torcer para que depois de falar dos crimes, das milícias e das religiões, Bruno Paes Manso parta para explicar a relação da violência tipicamente brasileira com os personagens da política e da economia, fechando um ciclo. 

A Fé e o Fuzil. De Bruno Paes Manso. Todavia, 304 págs., 75 reais.
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