Del Rey traz de volta ao rock’n’roll a fase soul de Roberto Carlos

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A Banda Del Rey - foto Luiz da Fonte/divulgação

Não é a Lana del Rey. Passaram-se 19 anos desde que a banda pós-manguebit Mombojó e o roqueiro solo também pernambucano Chinaina (então apenas China) começaram a fazer shows baseados no repertório de Roberto Carlos, sob o nome perspicaz de Del Rey. Lançando somente agora seu primeiro álbum, o quinteto se diferencia da cantora estadunidense semi-homônima (que só estouraria mundialmente em 2011) adotando o formato mais explicativo Banda Del Rey. O álbum que demorou uma geração para ser publicado chega batizado ironicamente de O Disco, com capa que simula o envelope gasto de um velho LP. Como diz a molecada, é sobre isso.

Os Del Rey começaram a brincar de Roberto Carlos na juventude, à mesma época em que seus conterrâneos da banda manguebit Nação Zumbi se apresentavam sob o codinome Los Sebosos Postizos em shows fundados no cancioneiro de Jorge Ben Jor. O álbum (até hoje único) do grupo também demorou a acontecer, mas menos que o correlato de Del Rey: Los Sebosos Postizos Interpretam Jorge Ben Jor veio ao mundo em 2012.

O Disco mantém a dicotomia que marcava os shows de Los Sebosos Postizos e Del Rey em suas origens: enquanto a Nação Zumbi tornava soturnos os sambas-soul de Jorge Ben, Chinaina e Mombojó seguem transformando em festa e alegria o imaginário romântico e frequentemente deprimido de Roberto Carlos.

Isso se dá, em parte, devido ao repertório selecionado. A única faixa extraída da fase romântica de Roberto é a que abre O Disco, “Ilegal, Imoral ou Engorda”, de 1976, que, não por acaso, pende mais ao protesto (não político) que ao tom açucarado sempre crescente dos anos 1970 em diante. Ornamentada por uma linha de baixo lisérgica, é também a única faixa do álbum que leva a assinatura de Roberto e de Erasmo Carlos – as outras nove faixas foram lançadas originalmente pelo então “rei do iê-iê-iê”, mas não são composições dele. Segundo Chinaina, essa opção não se deve a dificuldades de liberação dos fonogramas por Roberto Carlos: “A gente quis de propósito pegar outros compositores que ficaram famosos na voz dele. A ideia era mesmo falar dessa galera”.

O que acontece então, e já acontecia no início do Del Rey, é a retomada do que chegou a ser um clichê dos anos 1990 e 2000, a revalorização da chamada fase soul de Roberto – só que em compasso de rock’n’roll. O demonstrativo mais reluzente dessa tendência acontece em “Não Vou Ficar“, que o artista capixaba gravou em pique de funk psicodélico em 1969, quando seu autor, Tim Maia, ainda não havia escalado os primeiros degraus do sucesso. A nova versão respeita os moldes do funk genial de Tim, e ainda assim adiciona identidade própria à releitura, como se Tim Maia, Roberto Carlos e Reginaldo Rossi se encontrassem num só ídolo pop pós-Bacurau e pós-Cangaço Novo.

Os demais compositores pertenciam ao núcleo central da jovem guarda e, gravados por Roberto sobretudo na segunda metade dos 1960, revelavam-se insuspeitos autores de baladas soul e balanços funk à brasileira. Del Rey os rock’n’rolliza novamente. Isso acontece, por exemplo, na versão ska-rock do clássico “Negro Gato” (lançado por Renato e Seus Blue Caps em 1965 e transformado em sucesso por Roberto no ano seguinte), da lavra do “negro gato” Getúlio Côrtes, autor também de “Quase Fui Lhe Procurar“, balada soul inserida no disco que marcou o apogeu soul de RC, O Inimitável (1968).

Renato Barros, líder dos Blue Caps, aparece também em dose dupla, em “Não Há Dinheiro Que Pague” (1968) e “Você Não Serve pra Mim” (1967), soul-rock-clichê do clássico Roberto Carlos em Ritmo de Aventura (1967), aqui transformado em divertido rock de breque. Seu irmão Paulo Cesar Barros, outro dos Blue Caps, assina a balada “Nada Vai Me Convencer” (1969). Os demais autores n’O Disco são Helena dos Santos, em “Do Outro Lado da Cidade” (1969); Edson Ribeiro e Hélio Justo, em “Ninguém Vai Tirar Você de Mim” (1968); e Pedro Paulo e Luiz Carlos Ismail, em “Se Eu Pudesse Voltar no Tempo” (1970).

O órgão psicodélico, à maneira do pioneiro Lafayette, brilha e deleita em faixas como “Do Outro Lado da Cidade”, outra transformada em ska-rock e acrescida de arabescos orientais, “Não Há Dinheiro Que Pague” e a linda “Se Eu Pudesse Voltar no Tempo”, que encerra O Disco em grande estilo, romântica e áspera a um só tempo. Menos desgastada que a maioria das canções da transição de Roberto Carlos do iê-iê-iê ao romantismo popular brasileiro, “Se Eu Pudesse Voltar no Tempo” vem do LP de capa preta de 1970, repleto de diamantes hoje obscuros do soul branco/mestiço brasileiro (como “Ana”, “Uma Palavra Amiga”, “Preciso Te Encontrar”, “Minha Senhora”, “120… 150… 200 Km por Hora”). “Eu preciso voltar no tempo/ pra ser feliz”, canta Chinaina, exuberante na interpretação e melancólico na temática.

As releituras d’El Rey soam sempre luminosas, mas certa timidez (ou direito$ autorai$ complicado$) impede os rapazes (hoje nem tão rapazes assim) de ousar uma reentrada no universo do Roberto Carlos mais desbragadamente romântico, fosse abordando a fase soul (por exemplo de “Jesus Cristo”, o grande sucesso do Roberto Carlos de 1970 e canção de despedida do RC black power) ou o imenso relicário “cafona” do músico. No início dos 2000, Del Rey cantava por exemplo “Coisa Bonita (Gordinha)” (1993), que teria feito par harmônico com o rock hoje politicamente incorreto “Ilegal, Imoral ou Engorda” (“será que tudo que eu gosto é ilegal, é imoral ou engorda?”), em suas proposições tipo “coisa bonita, coisa gostosa/ quem foi que disse que tem que ser magra pra ser formosa?”. Seja como for, O Disco é uma homenagem à altura ao melhor legado do senhor de Cachoeiro do Itapemirim, atualmente com 82 anos de idade. Um eventual volume dois não faria mal a ninguém.

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