A prática não é inédita nem nova, mas ganha novas camadas em dias de ascensão da chamada inteligência artificial: o tributo Eu Sou Assim, lançado pelo Selo Sesc, inclui entre suas 30 faixas, todas reelaboradas sob arranjos contemporâneos, 12 registros na voz do homenageado, Wilson Baptista (1913-1968), um dos maiores autores de samba de todos os tempos. Em três dessas faixas, o compositor fluminense morto há 55 anos dueta com vozes de agora, de Ney Matogrosso, no clássico “Louco (Ela É o Seu Mundo)” (lançado em 1947 por Aracy de Almeida), da portuguesa Ana Bacalhau (na fusão de duas parcerias com o sambista mineiro Ataulfo Alves, “Oh, Seu Oscar”, de 1939, e “A Mulher do Seu Oscar”, de 1940, originais nas vozes respectivas de Cyro Monteiro e Odete Amaral) e de Maíra Freitas (nas inéditas “Sossega a Moringa” e “O Bom É Ele”).

Algumas circunstâncias separam Eu Sou Assim, idealizado pelo músico e biógrafo de Wilson Rodrigo Alzuguir, da mera inteligência artificial. Primo de Cartola e autor de sucessos gravados desde os anos 1930 por estrelas como Francisco Alves, Silvio Caldas, Linda Baptista, Jorge Goulart e Moreira da Silva, Wilson Baptista não teve a oportunidade de lançar em vida nenhuma gravação como cantor solo. As 12 canções em sua voz emergem de registros caseiros gravados já na maturidade e perto da morte precoce aos 55 anos.

Grande parte desse material vem de uma fita demo gravada por Wilson para a cantora Thelma Soares, que lançara em 1966 o primeiro álbum em tributo a Nelson Cavaquinho e cogitava fazer um equivalente com o cancioneiro de Wilson Baptista. O disco de Thelma nunca foi gravado, mas a demo caiu, entre outras, nas mãos de Paulinho da Viola, que nos anos 1970 promoveu uma verdadeira ressurreição musical do gênio então completamente esquecido.

“Meu Mundo É Hoje (Eu Sou Assim)”, pela primeira vez na voz do autor

É assim que ressurgem, pela primeira em interpretações de autor, sambas antológicos de fina e ferina inclinação social como “Meu Mundo É Hoje (Eu Sou Assim)” (lançado por Jorge Veiga em 1966, mas popularizado a partir da delicada versão de Paulinho da Viola, em 1972), “Nega Luzia” (lançado por Cyro Monteiro em 1956 e revigorado por Paulinho em 1973), “Chico Brito” (original na voz de Dircinha Baptista, em 1950, e mais uma iluminada por Paulinho, em 1979), “Mulato Calado” (Aracy de Almeida, 1947, retomado por Clementina de Jesus no segundo volume do disco-show Rosa de Ouro, em 1967), “Mãe Solteira” (Roberto Silva, 1954) e “Conversa Fiada” (do célebre bate-boca musical com Noel Rosa nos anos 1930, em resposta a “Feitiço da Vila”, mas só gravada em 1956, por Roberto Paiva).

Eu Sou Assim torna-se mais precioso porque incorpora sete sambas de Wilson que nunca antes haviam sido gravados. São eles, além dos já citados (“Sossega a Moringa” e “O Bom É Ele”): “Calúnia” (de 1946, cantado apenas no rádio por Dircinha Baptista); “Boato de Felicidade” (da Dupla Verde e Amarelo, formada por Wilson e Erasmo Silva nos anos 1930, registrada agora por Lívia Nestrovski); “Fui Olhar nos Teus Olhos” (apresentada a Azulguir pelo co-autor então com 100 anos de idade, Francisco Malfitano, e gravada agora por Marcos Sacramento); “Minha Infância” (letra inédita com melodia colocada postumamente por Delcio Carvalho, aqui na voz de Moyseis Marques) e “São Paulo Antigo” (na voz do próprio Wilson).

Chama a atenção entre essas a primeira gravação de “Calúnia”, na voz de Mônica Salmaso, que confirma o prumo proto-feminista de Wilson Baptista, também presente em canções como “Nega Luzia” e “Mãe Solteira”: “Calúnia/ calúnia/ juro que não fiz nada pra ele me abandonar/ (…) ‘não há vinho que embriague mais que a verdade’/ estou de acordo com Machado de Assis“. Por sugestão de Alzuguir, Mônica encerra o samba com um acréscimo: “E viva Capitu!”.

Em grande parte, Eu Sou Assim aborda temas mais apagados pelo tempo e pelo esquecimento, alguns na voz de Wilson Baptista, como “Flor da Lapa” (1952), “Bastião” (1954), outros nas vozes de Cristina Buarque (“Ele Me Passou pra Trás”, 1942), Ilessi (“Sem Cuíca Não Há Samba”, 1942), Dori Caymmi (“Meus 20 Anos”, 1942), Pretinho da Serrinha (“Coisas do Destino”, 1942), Joyce Moreno (“Gosto Mais do Salgueiro”, 1943), Filó Machado (“Não É Economia – Alô Padeiro”, 1943), Larissa Luz (“Lealdade”, 1943), Alexandre Rosa Moreno (um medley de “Laurindo Filho”, 1944, e “Oba Oba”, 1945), Rodrigo Alzuguir (“Lar Vazio”, 1949), Ayrton Montarroyos (“Amor Que Maltrata”, 1951), Beatriz Rabello (“Passou”, 1952), Áurea Martins (“Sou um Barco”, 1957) e Nei Lopes (“Copacabana à Noite”, 1957). Algumas dessas canções foram publicadas originalmente sob pseudônimos, ou então vendidas para outros compositoras – esse era o tempo de Wilson Baptista.

A João Bosco cabe, por fim, outro dos históricos sambas de personagem do autor, “O Pedreiro Waldemar”, lançado para o carnaval de 1948 por Blecaute, que dava caráter também racial a um protesto social veemente. O pedreiro Waldemar, que “faz tanta casa e não tem casa pra morar”, “constrói o edifício e depois não pode entrar”, é uma alegoria do próprio Wilson Baptista, que vendia suas composições para sobreviver, fazia os sambas e não podia cantá-los.

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