Minha terra tinha palmeiras

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Gostava de tomar banho de rio pelado e teve namoradas simultaneamente na Áustria, Alemanha, França e Bélgica. Não tinha dinheiro, era filho de um português e uma mulher indígena (de quem foi separado ainda criança), mas abria portas no Brasil e na Europa com as medalhas de mérito e as credenciais dadas pelo Imperador Pedro 2º, admirador de sua poesia, e frequentava bordéis, inúmeros, com o dinheiro emprestado dos amigos. A biografia do poeta maranhense Antonio Gonçalves Dias (1823-1864), o célebre autor de Canção do Exílio e expoente do romantismo literário, transposta para a linguagem dos quadrinhos pelo quadrinista, professor e pesquisador, antropólogo e historiador André Toral, é uma revelação quadro a quadro.

O Filho do Norte – Gonçalves Dias, o Poeta do Brasil, lançamento da Veneta Editora, é uma grande história sobre a força de uma atitude artística e nativista, os sentimentos que moveram com mais energia a saga do poeta de Caxias, no Maranhão. Ao publicar na Europa obras como Os Timbiras e Diccionario da Lingua Tupy, Chamada Língua Geral dos Indígenas do Brasil, (1857)e mantendo uma ação científica na atuação como servidor graduado do Instituto Histórico e Geográfico do Brasil (IHGB, fundado em 1838), além das conversas sobre a identidade nacional com Von Martius (1794-1868), Gonçalves Dias inaugurou um debate ético fundado na responsabilidade com a origem, com a terra, com o povo.

Filho de uma mulher indígena de quem foi separado ainda menino, tendo os estudos financiados pelos amigos farristas em Lisboa, indigenista do Imperador, que se tornou seu admirador, o maranhense Antonio Gonçalves Dias foi o poeta do século 19 que cuidou de afirmar uma poesia brasileira, inoculando nela palavras originárias. Também buscou construir tratados culturais, analisando as trajetórias dos povos indígenas nacionais ao longo dos rios Amazonas e Negro e também fazendo comparações com outras tradições, como as da Oceania.

A história em quadrinhos de André Toral busca colocar em uma perspectiva mais coloquial, livre de amarras morais, a narrativa tradicional histórica desse período da História nacional. Um padre do Alto Rio Negro que se vale dos efeitos alucinógenos das plantas indígenas para se manter atento (ou livre), militares em farrapos destroçando povos originários com a violência da escravidão e a prostituição, a indiferença cultural para com os relatos da cosmogonia indígena: a trajetória trágica de Gonçalves Dias é iluminada pela ambiência que Toral resgata dos livros e das comunidades em que pesquisou.

Os premiados quadrinhos de André Toral valem por um compêndio da história originária do Brasil. Em 2017, publicou Os Holandeses, indicado ao Jabuti de 2018 e aos maiores prêmios daquele período. Em 2020, publicou A Alma Que Caiu do Corpo (Veneta Editora), trabalho com um foco mais genérico sobre a mestiçagem. Agora, a visão é de fora para dentro – a afirmação europeia do “caboclo” exilado Gonçalves Dias é o retrato de uma diáspora existencial, algo que permite conhecer um pouco do nosso sentimento nacionalista a partir do ponto de vista daquele que é “aceito”, assimilado.

Evocando cenas de obras de Toulouse-Lautrec (artista com quem se pode fazer aproximações; Gonçalves Dias era um sujeito de baixa estatura, um dândi sifilítico) e Degas, além de clássicos de Debret e Thomas Ender, o quadrinista brasileiro consegue repor na ordem do dia um personagem fundamental das fundações da brasilidade. O final da vida de Gonçalves Dias é como se fosse um roteiro de tragédia anunciada: a poucos quilômetros da terra firme, regressando da Europa saudoso de suas palmeiras onde canta o sabiá, doente terminal, o navio em que viaja encalha em um banco de areia. A tripulação abandona o navio e o poeta, deixando-o morrer solitariamente como a única vítima de um naufrágio tolo. “Não permita Deus que eu morra sem que eu volte para lá”, para esse Brasil sempre tão fugidio. Contam que, na época das secas, é possível ver no baixo de Atins, na região da baía de Cumã, no Maranhão, a carcaça do Ville de Boulogne, o navio que afundou com a poesia.

O FILHO DO NORTE. Hq de André Toral. 96 páginas, 45 reais. Veneta Editora

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