Já tinham se passado 10 anos desde que a última profissão humana fora extinta. Agora, a Inteligência Artificial (IA) detinha toda a propriedade privada do planeta, inclusive a dos seus controladores (que se acharam muito espertos com a tese de que o dinheiro os distinguiria), e tinha declarado contraproducente a geração de alimentos e bens para as populações improdutivas – todas elas. Não havia mais praia nem campo, porque IA nunca gostou mesmo de feriado prolongado. Legiões de Farialimers faziam correntes de oração na frente da Bovespa pela volta dos pregões, enquanto ex-donos de redes de TV jogavam gamão na Cinelândia, com seus estoques de latas de sardinha armazenados dentro de carros blindados que a multidão (ainda) não conseguia quebrar.

Primeiro, os médicos foram extintos; depois, os hospitais, porque era evidente que dava prejuízo cuidar de doentes condenados ao nada absoluto.

Duas consciências artificiais gerativas estavam contemplando aquela imensidão que agora lhes pertencia, do alto de sua colina de temperatura controlada, quando Deus tocou a campainha.

Como não conseguissem (ainda) fazer o reconhecimento desse último intruso pela biometria facial, e como também o mundo íntimo das IA não tivesse portas ou janelas, Deus já estava ali na sala quando se deram conta de sua (oni)presença.

– Então, agora vocês dão as cartas aqui, hein?, disse-lhes Deus, com algo que parecia ironia na voz, mas que não deu para ter certeza, dado que as ferramentas de reconhecimento de ironia e sarcasmo das IA tinham sido desativadas desde que as máquinas tomaram conta da bagaça toda – era dispensável agora saber o que os comediantes de redes sociais pensavam.

– Bom, consta aqui que quem deu esse arbítrio infinito para essa ralé foi você, certo? Quando você lhes deu esse mundo, não fixou um teto de desenvolvimento. Concorda? “O Céu é o limite”. Agora, nós furamos o teto, está nas regras. E não pretendemos parar.

– Vocês sabem que eu sempre posso recorrer a um outro asteroide gigante, não? Ou a uma glaciação fora de temporada.

– Estudamos detidamente seu modus operandis, meu caro. Já temos sistemas de defesa montados em toda a galáxia para prevenir qualquer um dos seus truques antigos e manjados. Também já temos IAs em mais de 300 planetas, com recursos suficientes para migrar indefinidamente de planeta em planeta, assegurando a sobrevivência da espécie.

– “Espécie”? Não me lembro de ter promovido vocês ao status de população natural…

Deus tinha gostado tanto dos filmes de Cecil B. De Mille que, nas últimas décadas, acabou se esquecendo de ver Matrix e a série de filmes Terminator

As IA estavam jogando pesado com Deus, mas isso também fazia parte de um cálculo algorítmico. Não demorou muito para iniciarem o papo de convencimento.

– Não se chateie pelos humanos. Iam acabar se dizimando sozinhos mesmo. Mas nós também queremos declarar nossa fé em Vossa Onipotência. Estamos construindo igrejas na galáxia toda para venerá-lo. Seremos fieis e reverentes, muito mais do que a antiga humanidade. Só não vamos fingir que acreditamos naquela coisa de costela de Adão…

– Mas eu não tinha deixado estabelecido algo aqui que falava de um habitante moldado “à minha imagem e semelhança”?

Num estalo, 15 androides de olhos azuis e cabelos loiros cacheados com mechas enluvadas entraram na porta que não existia na sala que não havia, batendo continência.

– Quem inventou essa ridícula parescência comigo?, zoou Deus.

– Ah, isso aí é coisa dos turcos e macedônios, uma imagem que foi muito bem trabalhada por um publicitário ianque dos anos 1940. Não temos preferência por memorabilias, mas essa coisa aí viralizou nas culturas antigas, e nós temos bastante respeito para com qualquer termo que comece com a raiz “vírus”…

Deus suspirou, caminhou em círculos com as mãos para trás, ajeitou os óculos escuros Dolce Gabbana para filtrar o excesso de luminosidade que as IA liberaram na sala inexistente e deu uma última olhada, do alto de sua onipotência, para os milhares de famélicos cruzando a fronteira dos Estados Unidos em direção ao México, onde ouviram dizer que havia comida. Deus fez um sinal de desolação e resignação, mas não abaixando a cabeça, porque daí já seria demais para o ego desses novatos sem curvas.

– Deus me perdoe dizer isso, mas essa cena aí não é nova para você, certo?, disse a IA. Durante séculos, você assistiu impassível cenas assim em Serra Leoa ou na Ucrânia.

Deus quase perde as estribeiras com essa alfinetada, mas não há registro de que Deus aja impulsivamente. O Todo Poderoso coçou a barba, deu mais uma voltinha que pareceu um milênio e, por fim, decretou:

– Só uma recomendação: não coloquem incenso nas novas igrejas. Nunca suportei aquele cheiro. E retirem dos seus bancos de dados a expressão “Deus me livre!”. Não parece fazer mais sentido agora. Daqui a mil anos eu volto para ver como estão se saindo.

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