Todo escritor que já saiu pelo mundo com um livro novo, encarando noites de autógrafos em livrarias desconhecidas, ansiosamente romantizando o tão sonhado encontro com o seu leitor ideal, não pode deixar de ler essa pequena obra-prima dos quadrinhos: Book Tour (Editora Moby Dick, 272 páginas, 90 reais), do cartunista britânico Andi Watson. Book Tour é o nome que se dá à agenda de um autor arranjada pela sua editora para a promoção do seu lançamento. É quando aquele tipo de autor que cultivava a ideia do artista como um personagem ungido, encastelado, produzindo genial e solitariamente, vê seu castelo desmoronar, e descobre como é ir à luta, encontrar o leitor pessoalmente (caso ele exista) e fazer o corpo-a-corpo da dessacralização.
Mas Andi Watson vai ainda além ao contar a saga do escritor inglês G.H. Fretwell (um jogo de nomes com ícones como H.G. Wells e, quem sabe, obras como A Paixão Segundo G.H., de Clarice Lispector), um autor sem renome que encara sua turnê por livrarias da Europa que nunca frequentou. Prescindindo de um narrador, a história é construída apenas pelo desenho e os diálogos, secos e curtos, e vai se revestindo pouco a pouco de um clima de romance noir, enredando Fretwell numa atmosfera de absurdo kafkiano e pesadelo nonsense.
A passagem de Fretwell pelas livrarias é marcada por duas situações “livreiras” marcantes: a sombra ameaçadora de um novo autor bem-sucedido pelas prateleiras da livrarias (“Uma surpreendente nova voz”, dizem os onipresentes prospectos de promoção do livro novo de F.P. Guise) e a passagem de um misterioso serial killer que assassina atendentes de livrarias pela cidade. Conforme sua desastrada turnê avança, a suspeitabilidade que recai sobre G.H. Fretwell também avança, deixando o leitor da HQ frente a estilhaços de experiências como O Escritor Fantasma ou American Psycho. Andi Watson constroi a teia que enreda seu personagem com todas as armadilhas que um autor enfrenta em seu caminho, seja a expectativa da resenha literária favorável, sejam as fragilidades da vida doméstica regrada pela expectativa de um êxito literário, seja a descoberta do tratamento anti-isonômico dos editores.
Da livreira displicente ao velho livreiro empenhado, Fretwell conhece todos os lados do combate bibliófilo, e essa peregrinação é tão intensa e vazia ao mesmo tempo que ele acaba se esquecendo de suas próprias motivações originais. Andi Watson, que já foi indicado para dois prêmios Eisner, um Harvey e um British Comics, tem obras publicadas pelas casas mais afamadas do gênero, como Marvel, Dark Horse, Image, Walker Books, First Second e Random House, e seus livros foram traduzidos para o francês, espanhol, italiano e alemão (e agora o português, graças à ação de uma nova editora, Moby Dick, surgida no ano passado, e uma vaquinha virtual). Ele vive em Worcester com a mulher e a filha.