Delineado desde a época do impeachment da presidenta Dilma Rousseff, Medusa estreia num momento bem diferente daquele em que a mídia comercial celebrava as virtudes de “bela, recatada e do lar” da então primeira-dama do Brasil, esposa do usurpador Michel Temer. A diretora, a carioca Anita Rocha da Silveira (de Mate-Me por Favor, 2015), não faz da política bruta um tema de seu filme, mas estão ali alegorizadas muitas das sementes plantadas em 2015-2016, que germinariam logo em seguida o bolsonarismo, com sua carga máxima de misoginia, racismo, homofobia etc. Medusa trabalha no registro da distopia, mas capturando-a do futuro e trazendo-a, convenientemente, aos tempos pontudos de 2015, 2016, 2017, 2018, 2019, 2020, 2021, 2022, 2023…

Uma atmosfera de pureza e idílio recobre os cenários em que a história se desenrola e as aparências e comportamentos das personagens femininas jovens que constituem os cabelos-serpentes da Medusa. Por baixo do idílio, no entanto, tudo é puro horror. Medusa participa da inclinação do atual cinema brasileiro aos filmes de terror, de uma maneira bastante particular, frequentemente delicada, e nada hollywoodiana. Não há criaturas monstruosas, massacres da serra elétrica nem sextas-feiras 13 para precipitar o horror. Ele brota da banalidade da própria realidade e do próprio cotidiano.
Lado a lado com rapazes militarizados que se definem como Vigilantes do Sião, as moças fanaticamente religiosas compõem um exército de vigilância dos costumes e punição de quaisquer trangressões à norma, na base da justiça pelas próprias mãos (nessas ocasiões, as moças casadoiras escondem-se atrás de máscaras tipo Anonymous). A sátira ferina ao momento presente se ancora em obsessões pequenas, mas de grande importância, cpela selfie “perfeita e cristã” “para a glória de Deus”, pelos likes nas redes sociais, pelo botox e pelas cirurgias plásticas, pela beleza de tipo europeizado. A protagonista Mariana (interpretada com grande precisão por Mari Oliveira), no entanto, tende à negritude, em contraste com a aparência supostamente angelical da amiga loira Michele (Lara Tremouroux), que lidera a gangue disfarçada de irmandade religiosa.
O grupo de canto sacro formado pelas meninas se denomina Michele e As Preciosas, e o alvo da crítica é evidente, inclusive na caracterização física da atriz. “Serei bela, recatada e do lar”, elas cantam para os fiéis, numa versão da tradicional “The House of the Rising Sun” (que, na origem, conta a história de um prostíbulo). Para as servas e os servos do Senhor de Medusa, a aparência é o que mais importa – na verdade, é a única coisa que importa. A distopia, portanto, é o presente do presente do presente.
O direcionamento dado por Anita a sua história é francamente feminista (também nos detalhes, mais que no conjunto), como atesta a cena ilustrada pela foto principal que acompanha este texto. O golpe misógino foi vitorioso em 2016, mas produções como Medusa colocam em circulação uma legião de dilminhas que surgiram e não param de surgir como, digamos, efeito colateral da violência perpetrada.
