Quem manda no Theatro Municipal de São Paulo?

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A fachada do Theatro Municipal de São Paulo, inaugurado em 1911 - foto Ricardo Klein
A fachada do Theatro Municipal de São Paulo, inaugurado em 1911 - foto Ricardo Klein

Quando estrear no palco do Theatro Municipal de São Paulo, no próximo dia 12 de maio, a ópera O Guarani (1870), de Carlos Gomes, trará à cena um novo velho elemento: a Orquestra Sinfônica Municipal, sob direção e regência do maestro Roberto Minczuk, e o Coro Lírico Municipal, regido por Mário Zaccaro, estarão acompanhados por um grupo batizado Orquestra e Coro Guarani, integrado por indígenas guaranis habitantes da cidade de São Paulo. Sob consultoria artística do líder indígena e filósofo Ailton Krenak, um crítico contumaz da compreensão europeizada sobre a formação do Brasil, e cenografia do multiartista e ativista indígena Denilson Baniwa, a nova montagem almeja devolver lugar de fala à população que justificou o título do romance romântico O Guarani (1857), de José de Alencar, do qual a ópera de Carlos Gomes foi adaptada.

Em tempo de instalação do Ministério dos Povos Indígenas, a transição legitimadora das populações originárias no Brasil ainda é parcial: o protagonista indígena Peri será interpretado, em dias alternados, por dois artistas não-indígenas, Atalla Ayan e Enrique Bravo (a heroína Ceci ficará a cargo de Nadine Koutcher e de Débora Faustino). De todo modo, a montagem ilustra ventos de mudança que sopram há algum tempo sobre o edifício europeizado inaugurado em 1911 no hoje degradado centro de São Paulo. Seja entre maestros, solistas ou gestores, tem crescido a presença afrobrasileira e feminina nas estruturas do Theatro Municipal, a começar por sua diretoria-geral, atualmente ocupada por Andrea Caruso Saturnino, doutora em artes cênicas egressa do meio teatral, e não do da ópera ou da música erudita.

Escolhida pela Organização Social (OS) Sustenidos, que gere o Municipal desde maio de 2021, Andrea promove uma mudança no modo habitual de dirigir o espaço. Ela acumula a diretoria administrativa e a diretora artística, secundada nesse segundo caso por um comitê curatorial definido sob critérios de multidisciplinaridade e diversidade. Na elaboração da programação do teatro para 2023, integram o comitê Ailton Krenak, a bailarina e professora Ana Teixeira, o músico e compositor Livio Tragtenberg, o ativista Preto Zezé (presidente da Central Única das Favelas), a maestra Priscilla Oliveira e o professor e especialista em ópera Sergio Casoy.

Os curadores trabalham em conjunto com os diretores dos seis corpos artísticos que constituem a instituição: Orquestra Sinfônica Municipal, Balé da Cidade, Coral Paulistano, Coro Lírico Municipal, Orquestra Experimental de Repertório e Quarteto de Cordas da Cidade de São Paulo. O chamado Complexo Theatro Municipal incorpora ainda a programação da moderna Praça das Artes, a poucos quarteirões de distância, onde ficam a Sala do Conservatório e as sedes dos corpos artísticos, da Escola de Dança e da Escola Municipal de Música.

No conjunto, a composição de curadores não necessariamente ligados à ópera e a música erudita tem feito o Municipal se abrir para linguagens como dança, teatro, música popular, literatura e assim por diante, uma tendência que já se esboçava antes da gestão atual e teve momentos emblemáticos como a ocupação do palco principal pelo rapper Emicida e pela cultura hip-hop, em 2019.

Esse modelo quebra a tradição centralizadora exercida, até passado recente, por diretores artísticos como o maestro John Neschling, que sucumbiu em 2016 diante de escândalo de corrupção e lavagem de dinheiro, ao lado de José Luiz Herencia, então diretor-geral da Fundação Theatro Municipal, instituição responsável pela intermediação entre o poder público municipal e a iniciativa privada gestora do espaço, sob o modelo de OS. Sob direção do administrador público Abraão Mafra, a atual gestão da Fundação Theatro Municipal tem privilegiado parcerias com o setor privado, como a cessão do palco para a gravação, no ano passado, de um DVD de louvor do padre-cantor católico Adriano Zandona, da Comunidade Canção Nova.

Sob direção-executiva de Alessandra Costa, a gestora privada Sustenidos (antes Associação Amigos do Projeto Guri) vinha da administração de empreendimentos de educação musical como o Projeto Guri e o Conservatório de Tatuí, e venceu chamamento público de maio de 2021, para gerir o Theatro Municipal por cinco anos. Desde então, a OS enfrenta fogo cerrado movido pelo segundo colocado naquele chamamento, o Instituto Baccarelli, fundado pelo maestro e filantropo Silvio Baccarelli (1931-2019). Em sede no bairro periférico de Heliópolis, o instituto formou a Orquestra Sinfônica Heliópolis, cujo diretor artístico e regente titular desde 2011 é o maestro Isaac Karabtchevsky, hoje com 89 anos.

Desde 2021, o Instituto Baccarelli tem contestado repetidamente o resultado do chamamento junto ao Tribunal de Contas do Município (TCM) de São Paulo, que emitiu parecer em fevereiro passado, detectando irregularidades e metas não cumpridas (em respeito a acessibilidade, por exemplo), recomendando a abertura de novo chamamento público e dando prazo de 30 dias para que a prefeitura tomasse providências. Esse prazo se esgotou em 8 de março.

Da parte da administração do prefeito Ricardo Nunes, do MDB, a Sustenidos conta com manifestações de apoio da atual secretária municipal de Cultura, a paulistana periférica de Pirituba Aline Torres, uma mulher negra, pós-graduada em gestão cultural e também filiada ao MDB, pelo qual foi candidata não-eleita a vereadora em 2020 (antes, concorreu também à Câmara Federal em 2018, pelo PSDB). Na prática, a prefeitura não promoveu nenhum reajuste nos repasses orçamentários desde a chegada da Sustenidos, o que gera instabilidade permanente nos campos artístico e administrativo, compostos por cerca de 500 funcionários.

A OS afirma que vem solicitando reajuste dos repasses de acordo com os índices inflacionários, mas até aqui não houve nenhum reajuste. A decisão do TCM foi precedida por uma rodada de denúncias veiculadas em janeiro pela Folha de S.Paulo, a partir de queixas anônimas de integrantes de um dos seis corpos artísticos do teatro, o Coro Lírico Municipal. A Sustenidos queixa-se de que as reportagens de denúncia nem sequer mencionam a programação do Theatro Municipal ou pontos de orgulho de sua administração, como o projeto Ópera Fora da Caixa (que faz a programação circular por diferentes bairros da cidade), a reativação da Central Técnica de Produções Chico Giacchieri, antes abandonada à condição de mero depósito, e o foco no acervo da instituição, que conta, por exemplo, com figurinos guardados desde a inauguração há 112 anos.

Por vezes, os conflitos de interesses, de classes, de gênero e raciais também acabam subindo ao palco do Municipal, sob uma direção que busca a democratização e, de quebra, a deselitização das relações da música dita clássica com a cidade. Aconteceu no ano passado, durante as comemorações do centenário da Semana de Arte Moderna, quando esteve em cartaz no teatro a ópera Café, criada a partir de libreto do patrono municipal Mário de Andrade, publicado pela primeira vez em 1942. Entre artistas negros como os cantores e compositores Juçara Marçal e Negro Leo, o diretor Sérgio de Carvalho, da Companhia do Latão, incorporou à montagem integrantes do Movimento Sem Terra (MST), que ajudaram a trazer para a contemporaneidade o contexto da depressão capitalista de 1929 tratada por Mário, interpretando famílias camponesas que, expulsas do campo, protagonizam uma revolução popular.

A combinação multidisciplinar, nessa ocasião, se deu entre Orquestra Sinfônica Municipal, Coral Paulistano, Balé da Cidade, MST e artistas circenses. O silêncio estridente da mídia comercial diante da provocação inserida na ópera dá medida da relação ainda tensa da tradição histórica do Theatro Municipal com o ato de contestação à propriedade alegorizado pelo MST, que, por sinal, agora mesmo volta a estar sob ataque da mídia opositora ao governo de Luiz Inácio Lula da Silva. A sobreposição de preconceitos é complexa, e na reportagem da Folha sobre o suposto descontentamento dos funcionários com a administração em curso um artista anônimo aparece afirmando que “a atual programação do Municipal parece a de um circo, e não a de uma casa de ópera”.

Reação conservadora à parte, nos detalhes ou de forma geral, o atual momento do Theatro Municipal favorece um grau de subversão da lógica sempre masculina, branca, europeizada da cultura erudita e da sociedade paulistana dominante. Sem assumir esse direcionamento como proposital, Andrea Caruso Saturnino interpreta a movimentação da programação e suas motivações: “No momento em que optamos por formar um comitê curatorial com pessoas diversas, de olhares, estilos e lugares diferentes, isso muda a lógica de uma casa como esta, que historicamente partia de uma pessoa só, de um único olhar. A gente respira, faz o teatro pulsar junto com a cidade. Isso é muito coerente com os tempos atuais”. No rol de críticos do Theatro Municipal, há quem reclame dos preços excessivamente baixos praticados pela política de ingressos da casa. Além de diversos projetos de gratuidade, quem desejar assistir à tomada do palco pelos guaranis desembolsará valores que partem de R$ 12 e chegam a R$ 158.

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1 COMENTÁRIO

  1. Me espanta uma matéria “jornalística” não ter relacionado o fato de um dos atuais conselheiros, Livio Tragtenberg, ter sido umas das pessoas envolvidas nos escândalos da era Neschling/Herência, sendo que deste último chegou a ser parente e para quem emitiu notas ficais frias.

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