O Brasil não tem fome na ilha de Lia de Itamaracá

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Lia de Itamaracá - foto Ytallo Barreto
Lia de Itamaracá - foto Ytallo Barreto

Poucos dias antes de completar 78 anos, a pernambucana Lia de Itamaracá inicia 2023 lançando em single “Dorme, Pretinho“, cantiga assinada por ela com Beto Hees. Trata-se, na verdade, de uma versão livre em português para o tradicional canto latino-americano de trabalho e de ninar “Duerme, Negrito” (ou, por vezes, “Duerme, Duerme, Negrito”), recolhido pelo argentino Atahualpa Yupanqui entre a fronteira de Venezuela e Colômbia. Desde os anos 1950, a releitura dolorida de Atahualpa tem sido disseminada pela América hispânica, em múltiplas gravações dos chilenos Victor Jara e Quilapayun, da argentina Marcedes Sosa e dos uruguaios Alfredo Zitarrosa e Daniel Viglietti, entre muitos.

Atahualpa Yupanqui (1908-1992) canta “Duerme, Negrito”

“Duerme, duerme, negrito/ que tu mama está en el campo, negrito/ trabajando/ trabajando duramente, trabajando sí/ trabajando y no le pagan”, diz a lancinante versão de Atahualpa, situada entre os imaginários indígena e afro-americano e retratando, em qualquer das situações, o trabalho em condição escravizada. “Y si negro no se duerme/ viene el diablo blanco/ y ¡zas!, le come la patica, chacapumba, chacapum”, completa a versão antirracista do “boi da cara preta”, definindo abertamente qual é o tom de pele do agente opressor.

Mito vivo da ciranda pernambucana, Lia de Itamaracá ameniza as duras condições a que “diablos blancos” europeus e americanos vieram submetendo historicamente seus semelhantes indígenas e africanos: “Dorme, dorme, pretinho/ que mamãe está pescando, pretinho/ dorme, dorme, Maria/ que mamãe está pescando, Maria/ e vai trazer muitos peixes para ti/ e vai trazer carne de ostras para ti/ um jereré bem cheinho de siri/ e vai trazer muitas conchas para ti”.

No tempo e no espaço do mangue da ilha de Itamaracá, Lia torna realizáveis as promessas vãs que (como observava Atahualpa no vídeo acima) a mãe preta não pode cumprir, de trazer “codornizes”, “fruta rica”, “carne de cerdo” e “muchas cosas” para o filho que não pode criar no dia a dia. Pensando bem, nem tampouco a mesa da maioria da população brasileira de 2023 tem podido contar com os “muitos peixes”, “carne de ostras”, “um jereré bem cheinho de siri” e “muitas conchas” desfiados por Lia de Itamaracá, cruelmente recolhidos das mesas nacionais pelo diabo branco neofascista.

"Dorme, Pretinho" (2023), single de Lia de Itamaracá
Capa do single “Dorme, Pretinho” (Amplifica Records), de Lia de Itamaracá
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