Poucos dias antes de completar 78 anos, a pernambucana Lia de Itamaracá inicia 2023 lançando em single “Dorme, Pretinho“, cantiga assinada por ela com Beto Hees. Trata-se, na verdade, de uma versão livre em português para o tradicional canto latino-americano de trabalho e de ninar “Duerme, Negrito” (ou, por vezes, “Duerme, Duerme, Negrito”), recolhido pelo argentino Atahualpa Yupanqui entre a fronteira de Venezuela e Colômbia. Desde os anos 1950, a releitura dolorida de Atahualpa tem sido disseminada pela América hispânica, em múltiplas gravações dos chilenos Victor Jara e Quilapayun, da argentina Marcedes Sosa e dos uruguaios Alfredo Zitarrosa e Daniel Viglietti, entre muitos.
“Duerme, duerme, negrito/ que tu mama está en el campo, negrito/ trabajando/ trabajando duramente, trabajando sí/ trabajando y no le pagan”, diz a lancinante versão de Atahualpa, situada entre os imaginários indígena e afro-americano e retratando, em qualquer das situações, o trabalho em condição escravizada. “Y si negro no se duerme/ viene el diablo blanco/ y ¡zas!, le come la patica, chacapumba, chacapum”, completa a versão antirracista do “boi da cara preta”, definindo abertamente qual é o tom de pele do agente opressor.
Mito vivo da ciranda pernambucana, Lia de Itamaracá ameniza as duras condições a que “diablos blancos” europeus e americanos vieram submetendo historicamente seus semelhantes indígenas e africanos: “Dorme, dorme, pretinho/ que mamãe está pescando, pretinho/ dorme, dorme, Maria/ que mamãe está pescando, Maria/ e vai trazer muitos peixes para ti/ e vai trazer carne de ostras para ti/ um jereré bem cheinho de siri/ e vai trazer muitas conchas para ti”.
No tempo e no espaço do mangue da ilha de Itamaracá, Lia torna realizáveis as promessas vãs que (como observava Atahualpa no vídeo acima) a mãe preta não pode cumprir, de trazer “codornizes”, “fruta rica”, “carne de cerdo” e “muchas cosas” para o filho que não pode criar no dia a dia. Pensando bem, nem tampouco a mesa da maioria da população brasileira de 2023 tem podido contar com os “muitos peixes”, “carne de ostras”, “um jereré bem cheinho de siri” e “muitas conchas” desfiados por Lia de Itamaracá, cruelmente recolhidos das mesas nacionais pelo diabo branco neofascista.
Legal o texto.