Os Paralamas do Sucesso pedem que Maurício Valladares sugira uma música para eles começarem a apresentação. Ouve-se a vinheta do RoNca RoNca e na sequência a banda ataca “Caleidoscópio” (Herbert Vianna) num arranjo diferente do que o fã-clube se acostumou a ouvir.
Era 13 de outubro de 1999, às vésperas do grupo carioca gravar seu “Acústico MTV” [1999], e ali já experimentava arranjos, sonoridades e repertório – Os Paralamas do Sucesso fugiu do formato consagrado dos álbuns acústicos que circularam no Brasil com certa frequência a partir dos anos 1990.
O material daquela sessão acaba ser resgatado por Maurício Valladares no vinil “RoNca RoNca apresenta Os Paralamas do Sucesso Ao Vivo”, que traz, em suas nove faixas, além de “Caleidoscópio”, alguns lados b da banda (“A dama e o vagabundo” e “O homem”, parcerias de Herbert Vianna com o baixista Bi Ribeiro) e releituras de Stevie Wonder (“The tears of a clown”), B. B. King (“Sweet sixteen”), The Doors (“The end”), Raimundos (“Eu quero ver o oco”) e Eric Clapton (“Sunshine of your love”).
Mas a história começa bem antes e acaba de completar 40 anos: em 17 de dezembro de 1982, antes mesmo de Os Paralamas do Sucesso estrearem em disco (o que só aconteceria no ano seguinte, com “Cinema mudo”), Maurício Valladares tocou o grupo pela primeira vez no rádio, no Rock Alive, que apresentava com Liliane Yusim, na Fluminense FM.
Maurício Valladares relembra os diversos encontros e a amizade que se consolidou, a partir de então, algumas mudanças de nome do programa, emissoras e plataformas depois. “A primeira página [de seu livro “Os Paralamas do Sucesso”, com texto de Arthur Dapieve, Editora Senac, 2006] é a reprodução do que teria sido o diálogo meu com o Hermano [Vianna, antropólogo], irmão do Herbert, que era ouvinte do programa na Fluminense e ganhou a promoção do Clash, com “Combate rock”, aí a gente conversando pelo telefone, “pô, então vamos nos encontrar, passa lá em casa e pega o disco”, ele morava em Copacabana, o papo, vários assuntos comuns, a gente se encontrou, eu dei o disco pra ele, a gente ficou conversando, e no final ele falou assim: “bom, a próxima vez que a gente se encontrar eu vou te dar a fita que o meu irmão tá gravando com a banda dele”. Eu falei “ah, beleza, qual é a banda?” Ele falou: “Os Paralamas do Sucesso”. Eu falei: “pô, mas que nomezinho mequetrefe” [risos do repórter]. Bom, o mundo girou, os dias passaram, ele me deu a fita, e aí quando eu recebi a fita e gostei, eu de cara, isso era dezembro de 1982, eles tinham gravado três músicas, “Vital e sua moto”, Encruzilhada noturna [“Encruzilhada agrícola industrial”], e uma outra música [“Patrulha noturna”], isso é fácil de descobrir, porque existe uma lauda do programa que circulou pela web, eu contando, falando que hoje vamos receber uma nova banda, chamada Os Paralamas do Sucesso, e a Liliane que fazia o programa comigo, ela lembra perfeitamente deles três no estúdio. E lembra que o Herbert ficou muito eufórico, porque ele achou que a gente ia tocar uma música e tocamos as três que existiam. E essa demo sumiu. O João Barone, principalmente, procura essa demo há anos, há décadas, e não acha esse áudio. E aí a gente ficou amigo. Em sequência pintou a coisa deles gravarem pela Odeon, negócio de capa, de fotografia e aí o bagulho foi crescendo. Mas eles estiveram no estúdio da Fluminense no dia 17 de dezembro de 1982. E a gente esteve juntos agora, sábado, dia 17 de dezembro de 2022, exatos 40 anos depois, que foi esse show deles lá na Barra [no Qualistage] e eu fiz um som antes”.
“O Maurício é um cara que construiu uma reputação como homem do rádio, ele naquele momento, onde estava todo mundo surgindo, tava todo mundo emergindo daquela grande efervescência, que todo mundo sentia, com o final da ditadura, com a necessidade de reescrever um pouco a cena musical jovem, a nova cena musical que apontava ali naquele início dos anos 1980, e a Rádio Fluminense, que teve uma atitude muito pioneira e instigante, ela tocava as inúmeras fitas que chegavam para a programação da rádio, porque eles deram essa abertura, essa receita, de ir atrás do novo”, lembra o baterista João Barone.
“Enfim, quando chegou esse momento dOs Paralamas levarem a fita até a rádio Fluminense, a gente teve a surpresa do Maurício Valadares tocar no programa dele a nossa fita e dali já, as músicas começaram a tocar na programação da rádio, “Vital e sua moto” foi um hit, dentro daquela lista das bandas novas que eram pedidas pelos ouvintes, e o resto foi história. A gente no começo de 1983 assinou o contrato com a gravadora. O Maurício já era fotógrafo antes de ser um cara da rádio e ele era um fotógrafo fora do comum, era um cara com um perfil muito artístico em termos de fotografia, ele nunca foi um fotógrafo profissional, sabe?, de trabalhar em estúdios e não sei o quê. O Maurício é um cara que a personalidade dele também está na fotografia que ele faz. A gente chamou ele pra fazer as capas do nosso disco, ele foi o cara que fez a primeira foto oficial dOs Paralamas, para a revista Pipoca Moderna, ali no final de 1982, onde já anunciava-se o nosso show no Circo Voador em 1983, quando a gente abriu [pro] Lulu Santos. Maurício sempre foi um cara muito de personalidade, ele não é um fotógrafo como todo mundo acha que o fotógrafo é, aquele cara que sai tirando um milhão de fotos. O Maurício tirava meia dúzia de fotos e olhe lá [risos], ele busca o momento ideal para fazer o clique, ele não é o cara que sai numa roleta russa, tirando foto a três por quatro. A personalidade dele sempre se expressou muito nas fotografias, na música que ele apresenta”, continua Barone.
Valladares se denomina “um acumulador do caralho”. Em mais de 40 anos de rádio e outros tantos de fotografia, tem um acervo inestimável e muito em breve deve transformar parte em um almanaque. Em meio ao material há outros discos, que ele não lança por falta de paciência para a burocracia.
“Eu guardo tudo. Eu tenho ingressos. Um exemplo que casa com isso que a gente está falando, eu volta e meia conto essa história: quem, que em 1984, guardaria um bilhete deixado na portaria do prédio, de um tal de Renato Manfredini, dizendo que estaria mandando uma fita pra eu ouvir? Eu guardei, esse bilhete do Renato [Russo, vocalista da Legião Urbana], ele tinha uma letra linda, desenhava muito bem, está no livro “Cartas brasileiras” [“Correspondências históricas, políticas, célebres, hilárias e inesquecíveis que marcaram o país”, Companhia das Letras, 2017, org.: Sérgio Rodrigues], é um livro maneiríssimo, tem carta de Lampião [o cangaceiro Virgulino Ferreira da Silva] a Getúlio [Vargas, ex-presidente da República], passando por Dolores Duran [cantora e compositora] e o caralho a quatro, e está lá, numa página inteira, o bilhete do Renato pra mim. Qualquer pessoa pegaria aquele bilhete, de um anônimo, Renato Manfredini, ali, pô, legal, amassa e joga na lata do lixo. Hoje esse bilhete está eternizado num livro com cartas de D. Pedro II, Princesa Isabel, tá entendendo? Eu guardo tudo, cara. É um negócio preocupante, porque, bilhete de show, de jogo… agora a Rainha Elizabeth morreu, eu tenho bilhete de 1968, que eu fui num jogo com meu pai, seleção carioca contra seleção paulista, o jogo foi armado pra Rainha Elizabeth no Maracanã, um bilhete lindo, o ingresso do jogo. Eu tenho essa merda!”, revela.
“O repertório que foi registrado nesse vinil que agora é lançado pelo Maurício Valladares, o RoNca RoNca, podia se dizer o RoNca RoNca sessions [risos], o Maurício tem um baú com registros incríveis de um monte de gente que foi no programa dele fazer uma apresentação ao vivo, ali, em tempo real, foi gravado, mas era tudo ao vivo, a nossa participação foi ao vivo, a menina lá, a ouvinte, pediu para a gente tocar “Navegar impreciso” [Herbert Vianna] e a gente tocou ali, na hora. Esse repertório foi bem inusitado, que a gente apresentou ali no programa do Maurício, o Herbert puxou lá uns blues e algumas músicas não tão conhecidas, não tão hits assim dOs Paralamas e o que tem de interessante nesse registro é que ali a gente estava começando a rascunhar o que viria a ser o nosso “Acústico MTV”, que a gente gravou dali a alguns meses. A gente começou a experimentar algumas coisas nesse formato acústico, apesar de o Herbert ter gravado com uma guitarra elétrica, mas a gente já estava ali esboçando um projeto pra gente fazer um acústico que seria meio na contramão da receita do formato, que era sempre pegar as músicas mais conhecidas e tocar com um violão, um bongozinho. A gente estava pensando assim, ousadamente, num acústico onde a gente não traria apenas obviedades, então esse registro do programa do Maurício, que agora está saindo nesse vinil, é uma espécie de caviar, é uma tiragem limitada, de produção limitada, com um registro assim raríssimo dOs Paralamas despojados, e que tem um valor, por conta dessa pré-produção, desse pré-registro do nosso acústico”, relembra Barone.
A forma de consumir música mudou drasticamente em muito pouco tempo. Valladares ressente-se da falta de atenção dada à música atualmente, num tempo em que o streaming domina e o ritual de parar para ouvir música foi se perdendo. “É como gastronomia. Comida é algo sagrado. É diferente você parar para apreciar um prato de sua predileção e comer um x-tudo em pé, na esquina, de qualquer jeito, embora o x-tudo também possa ser muito bom”, diz.
Ele comenta sobre o formato escolhido para o lançamento: “Outro detalhe interessante, que é bacana de as pessoas perceberem: “ah, só vai sair em vinil?” Só vai sair em vinil. Ele vai pra plataforma, o Zé [José Fortes, empresário da banda, considerado o quarto Paralama] vai botar, mas não vai sair em cd. Porque ele não é só um artefato para ouvir música, ele representa uma forma de ouvir música, ele representa uma relação com a música, com a atenção que a música precisa ter, com o tempo que a música precisa ter. Você está ouvindo o lado a, você quer ouvir o lado b? Eu lamento te informar, mas você vai ter que levantar e vai ter que virar o lado do disco, ele não vai tocar automaticamente [risos]. Ele representa isso, eu não acho que seja só saudosismo, pode ser que o saudosismo seja uma das características disso, mas é essa informação que está sendo dada, de que a música, para ser entendida como música e como um duto de informação e de tudo o que está envolvido ali, ela precisa de tempo, ela precisa da sua atenção. Isso é assim. Esse é o conteúdo, a mensagem que vai nesse disco, independente do que esteja nele, mas fora, se você olhar de fora, pô, eu preciso ter atenção aqui”.
Às vésperas do ano novo, Barone antecipa 2023 e revela suas expectativas: “a gente está adentrando aqui um ano novo com uma perspectiva muito boa de trabalho, que já começou nesse ano. Ao longo desse ano a gente teve praticamente um renascimento do show business, com o arrefecimento da pandemia. Em alguns momentos houve uma preocupação e tal, mas a gente está longe daquele cenário terrível que foi 2020, 2021. Então a gente está um pouco nesse embalo, de momento mais promissor, nossa agenda está muito boa, a gente está trabalhando bastante e vai retomar nossa frequência de encontros pra poder ver o material novo que o Herbert tem escrito, retomar mais, assim, a nossa rotina de criação mesmo, e isso não aconteceu porque durante a pandemia a gente se encontrou pouquíssimo nas horas em que a gente estava podendo se encontrar pra fazer shows e tal, e um ou outro ensaio, e ao longo de 2021, também, que foi um ano meio vagalume, acendeu, apagou. Esse ano de 2022 foi muito promissor, que a gente caiu forte na estrada e nós ficamos sem tempo de fazer esses encontros pra tocar, pra levar som, pra compor e a gente com certeza vai retomar isso nesse ano que se inicia. A gente está muito otimista com um certo alívio que a gente teve dentro da política nacional. A gente sabe que não é uma tarefa simples resolver os grandes problemas que o Brasil tem, mas o fato de a gente ter se livrado de um governo que tinha claramente um perfil fascista no seu discurso, na sua política nefasta, então já é uma melhoria. Eu acho que não vai ser nenhum passeio no parque o que a gente vai ter que fazer para reencontrar o rumo democrático no Brasil e todos os desafios que a gente sabe que existe, socialmente falando, principalmente, e é preciso muito bom senso pra gente não ficar sempre numa gangorra entre os dois extremos, da extrema-direita e da extrema-esquerda, a gente precisa achar um caminho do meio, onde a gente consiga tirar o grosso da população da miséria, do mapa da fome, fazer um investimento seríssimo na educação, fazer uma devassa fiscal, acabar com esse dinheiro todo que vai pelo ralo no nosso processo político e torcer pra que o Brasil volte a ser um país digno das riquezas e da gente que vive nesse país. Vamos torcer!”, finaliza.