“Se eu duvidei de você/ peço que procure esquecer/ eu sei muito bem que eu errei/ eu já sei/ eu já sei”, preconizava, em 1972, um rock’n’roll brasileiro que parecia em tudo uma resposta às saraivadas de acusações amorosas disparadas por Roberto Carlos (e Erasmo Carlos) em monumentais canções de romantismo mórbido como “Se Você Pensa” (1968) e “Sua Estupidez” (1969). “Não cabe a mim julgar seus defeitos/ nem pôr em prova os seus direitos/ Deus é quem sabe da sua vida mais do que eu”, continuavam os versos desferidos por um compositor chamado Raulzito e entoados por uma dupla romântica que tentava se reinventar depois da dissolução da jovem guarda, Leno e Lilian. A militância antirrobertocarlista permaneceu para sempre nos subterrâneos, assim como a quase totalidade da música de uma moça carioca chamada Sílvia Lilian Barrie Knapp e de um rapaz potiguar chamado Gileno Osório Wanderley de Azevedo. Lilian hoje tem 74 anos e segue em frente com projetos underground esporádicos, e Leno morreu na sexta-feira, 8 de dezembro, aos 73 anos, encerrando mais um pedacinho da ingênua utopia jovem-guardista e pisando o pé no acelerador da fase terrível de despedidas de artistas da geração 1960 que vive a música popular brasileira, a exemplo de Gal Costa, em 9 de novembro, e de Erasmo Carlos, em 22 de novembro.
Leno e Lilian, o espetacular álbum de 1972 que se inicia pela música “Deus É Quem Sabe“, do então quase totalmente anônimo Raul Seixas, é um desses tesouros ocultos da cultura pop que uma tonelada de preconceitos soterrou por baixo de uma montanha compacta formada por obras-primas formidáveis, mas também por muita obviedade, previsibilidade, repetição e conformismo. Nesse tempo, o baiano Raul, ex-cantor de iê-iê-iê da banda Raulzito e Os Panteras (de repercussão modesta e mais restrita ao Nordeste), era diretor artístico dos cantores mais populares da gravadora CBS, a mesma de Roberto Carlos, Wanderléa, Jerry Adriani, Leno e Lilian, Renato e Seus Blue Caps e outros ídolos do iê-iê-iê em busca de prumo na nova década, após a implosão do movimento de música roqueira e romântica a partir do desembarque do “rei da juventude” nascido no Espírito Santo. Sob direção artístíca do próprio Leno, a volta da dupla açucarada que fizera sucesso efêmero entre 1966 e 1967 era fundada no rock’n’roll, como em “Deus É Quem Sabe”, e na soul music, como na preciosidade “O Que Fazer em São Paulo na Primavera“, assinada pelo gaúcho Luis Vagner (com o jornalista paulista Tom Gomes), dentro do intrincado processo de invenção do samba-rock.
Canções de amor como “Esqueça e Perdoa” (do “negro gato” Getúlio Côrtes) mostravam que ainda persistia, de modo mais discreto, o romantismo doce da fase de “Pobre Menina” (1966, versão para “Hang On Sloopy”, da banda norte-americana The McCoys), “Devolva-Me” (1966, de Lilian com Renato Barros, dos Blue Caps, também parceiro constante de Leno, morto em 2020), “Eu Não Sabia Que Você Existia” (Renato e Tony, 1966), “Não Acredito” (1967, versão de “I’m a Believer”, de Neil Diamond, lançada pelo grupo The Monkees em 1966) e “Coisinha Estúpida” (1967, tradução de Leno para “Somethin’ Stupid”, hit pop de Frank Sinatra no mesmo ano, em duo com a filha de voz aveludada Nancy Sinatra). Entre afastamentos e aproximações, o espírito geral era de transcender o iê-iê-iê e o bailinho mela-cueca, rumo a uma identidade para lá de infantojuvenil.
Quem dava o ar de sua graça e as cartas nesse sentido era mesmo Raul Seixas, que além de “Deus É Quem Sabe” assinava o bailinho bêbado “Um Drink, ou Dois” (fazendo os ex-namoradinhos do Brasil dizer “não vá dizer que eu bebi demais/ se por acaso eu me exceder”) e “Objeto Voador“, na verdade a primeira encarnação de “S.O.S.” (1974), uma das várias poções místicas pop-rock que fizeram a glória pop de Raul. “Ô, amigo do disco voador/ me leve com você/ pra onde você for/ ô, amigo, mas não me deixe por aqui/ enquanto eu sei que tem tanta estrela por aí”, cantavam Leno e Lilian.
O tema era caro ao roqueiro iê-iê-iê nascido em Natal, capital do Rio Grande do Norte: Leno começou a despontar para o sucesso autoral assinando “S.O.S.” (com Getúlio Côrtes) e “O Disco Voador“, ambos rocks de bailinho lançados por Erasmo Carlos em seu segundo LP, Você Me Acende, em 1966. Confirmando a máxima do químico francês Lavoisier, de que na natureza nada se cria, tudo se transforma, a trama pop envolvendo em triângulo Leno, Erasmo e Raul fez “S.O.S” se transformar em “O Disco Voador”, em “Objeto Voador”, novamente em “S.O.S.”.
Obedecendo a traço distintivo do nascimento do rock nacional desde Celly Campello e Sergio Murillo, ainda nos anos 1950, Leno e Lilian atiraram-se à pratica de elaborar versões em português de hits e obscuridades do rock mundial, desde os luminosos e comerciais álbuns Leno e Lilian (1966) e Não Acredito (1967). Ali, a dupla havia se esbaldado com traduções nada literais para hits pop-roqueiros dos Herman’s Hermits, dos Small Faces, da dupla Peter & Gordon e até do maestro e pianista francês de jazz Michel Legrand (“Sua Lembrança”, sobre a cinematográfica “Les Parapluies de Cherbourg”), mas também de obscuridades de Wayne Fontana & The Mindbenders, The Kinetics, The Cyrkle, Gary Lee & The Playboys, Christopher e até de John Lennon e Paul McCartney fora dos Beatles (“O Sol Se Põe no Horizonte” é versão do rock-balada “I’ll Be on My Way”, rock-balada gravado apenas por Billy J. Kramer & The Dakotas, em 1964).
No retorno em 1972, a dupla voltou a recorrer às versões, gravando por exemplo a deliciosa-pegajosa “Dias Iguais“, uma adaptação de “Day After Day” (1971), da banda alemã Badfinger, ou a balada “A Menina e Eu”, decalcada de “Jody and the Kid” (1968), do ídolo country norte-americano Kris Kristofferson. O insucesso comercial do Leno e Lilian de 1972 culminou com um quarto e derradeiro volume, Leno e Lilian (1973), a bordo de adaptações de (não-)sucessos capturados dos acervos da multinacional CBS de países como Estados Unidos, França, Itália, Argentina e Costa Rica, mais apenas três tentativas originais, duas compostos por Lilian (o rock “Eu Te Dispensei” e o bailinho “Aquele Tempo”) e uma por Leno (a balada chorosa “Não Me Deixe Sozinho Esta Noite”). Sempre desencontrada dali em diante, a dupla chegou a se reunir numa Virada Cultural, em 2015, e consta que por essa época seria gravado um quinto álbum e/ou primeiro DVD, jamais publicado(s) até a morte de Leno.
No período 1968-1971, entre as duas vidas da dupla, Leno rodou por descaminhos, lançando compactos e dois LPs ultra-românticos, Leno (1968) e o debutante A Festa dos Seus 15 Anos (1969), com os quais de modo geral a CBS insistia na fórmula esgotada da jovem guarda, entre versões e baladas açucaradas. Inaugurada por Leno na conversão de “Hang On Sloopy” em “Pobre Menina” (“pobre menina, não tem ninguém/ tão pobrezinha ela mora em um barracão/ e todo mundo quer magoar seu coração”, “vive mal vestida em seu bairro a vagar/ em toda sua vida só tem feito chorar”), a temática de luta de classes foi prorrogada com gênero invertido no primeiro e provavelmente único hip pop da história solo de Leno, “A Pobreza” (1968), assinado por Renato Barros, carioca suburbano do bairro de Piedade: “Eu tenho uma paixão que é proibida/ só porque sou pobre demais/ a garota que eu adoro/ por quem tanto choro/ não pode me ver/ nunca soube o que é tristeza/ vive na riqueza/ sem poder viver/ nosso amor é tão bonito/ mas seus pais não querem nossa união/ pensam que pobreza é lixo/ e que rapaz pobre não tem coração”.
Esse veio de crônica social, comum na jovem guarda entre autores como Renato Barros, Leno, Erasmo e Getúlio Côrtes, disseminou-se por queixumes e zoeiras em rock-balada como “O Feio” (1964), de Renato e Getúlio para Roberto Carlos; “Menina Feia” (1967), composta e gravada por Renato; “A Irmã do Meu Melhor Amigo” (1967), de Leno, gravada pelos Blue Caps; e “Se Estou Feliz, Por Que Estou Chorando?”, parceria de Leno e Raulzito também gravada pelo grupo de Renato. A série desembocaria em “Como se Fosse Meu Irmão” (1974), o compacto de estreia de Lilian em carreira solo, ainda apostando, pelas rebarbas, no romance iê-iê-iê entre Gileno e Silvia Lilian (sempre negado por ambos) e, anos adiante, no melodrama sedutor e autopiedoso “Sou Rebelde (Soy Rebelde)” (1978), versão do futuro mago Paulo Coelho para grudar a imagem angelical da estrela que tentava se firmar sozinha: “Eu sou rebelde porque o mundo quis assim/ porque nunca me trataram com amor/ e as pessoas se fecharam para mim”. A suposta ingenuidade continha por dentro a malícia, expressa nos trajes sensuais da ex-pobre menina e em versos como “eu queria dar/ tudo que há em mim/ tudo em troca de uma amizade”.
A primeira encarnação solo de Leno se desenvolveu entre romantismos pueris e versões erráticas de canções popularizadas por cantores e grupos diversos como Arthur Alexander, Dean Martin, Peggy Lee (“Fever“, vaudeville também conhecido pelas vozes de Elvis Presley, em 1960, e Madonna, em 1992), Bill Haley & His Comets, Skeeter Davis, Smokey Robinson & The Miracles (o hino soul “My Girl”, de 1964, virou “Você” pela pena de Leno). A verve compositora agiu em prol de atos iê-iê-iê e Leno assinou canções para Ed Wilson, Renato e Seus Blue Caps, Jerry Adriani, Antonio Marcos, Wanderley Cardoso e Márcio Greyck, sem maiores consequências. A CBS ainda ensaiou formular uma nova dupla fofa de menina-e-menino, unindo-o a Wanderléa em “Chegou, Sorriu, Gostei” (1969), versão para “You Came, You Saw, You Conquered”, de Phil Spector para o trio feminino The Ronettes. A investida-relâmpago não prosperou.
O momento alto de Leno entre 1968 e 1971 não chegou a acontecer publicamente. Na entrada dos anos 1970, ele gravou o álbum Vida e Obra de Johnny McCartney, num enclave pós-separação dos Beatles e pós-advento de Tommy (1969), a ópera-rock de The Who, mas pré-Ziggy Stardust (1972), a revolução andrógina de David Bowie. A ópera-rock cabocla de Leno tinha co-produção e várias composições de Raulzito, pouco mais de um ano antes da eclosão do astro Raul Seixas, o roqueiro brasileiro mais incendiário dos anos 1970. Em parceria com Leno, Raulzito assinava “Sentado no Arco-Íris” (antecipando o som dos Mutantes quando já se encaminhavam para o rock progressivo e para a saída de Rita Lee), “Johnny McCartney”, “Bis”, “Convite para Angela” e “Sr. Imposto de Renda”. Essa última carregava mais ou menos o espírito da anárquica e contemporânea Sociedade da Grã-Ordem Kavernista, formada por Raulzito com Sérgio Sampaio, Miriam Batucada e Edy Star em seu crepúsculo como produtor da CBS.
A letra do carro-chefe, o rock’n’roll “Johnny McCartney”, projetava um futuro para Leno, ou talvez para Raulzito, a bordo de um levante que, a partir da Inglaterra, projetava a androginia do glam rock – ou, em português, do lamê: “Ainda hei de ser famoso um dia/ meu nome nos jornais você vai ler/ vou ganhar mais um milhão, comprar o meu carrão, cantando na TV/ vai pagar pra me ver no cinema/ do que me fez irá se arrepender/ daqui pra frente sou galã lhe ofuscando com meu terno de lamê/ Johnny McCartney vou ser/ gente famosa eu vou ver de perto/ na casa do Roberto eu vou jantar/ quando eu saio à rua gente me pedindo pra um retrato autografar/ e os letreiros sempre luminosos/ para o meu show anunciar/ compre seu ingresso logo, logo, porque hoje o Johnny vai cantar”. Johnny McCartney tombou frente à censura interna, porque a gravadora CBS percebeu a obra como anticomercial, e à externa, pela censura militar a faixas como “Pobre do Rei”, “Sr. Imposto de Renda” e “Não Há Lei em Grilo City“. Alguém duvida que Grilo City ficava no Planalto Central do Brasil?
“Pobre do Rei”, composta pelos irmãos Marcos Valle e Paulo Sérgio Valle, artesãos da bossa nova e da soul music loira carioca, pressionava suavemente a carótida do general-ditador Emílio Garrastazu Médici: “Pobre do rei/ fazendo lei/ passa seu tempo real/ não faz por mal/ vive a pensar/ mas não consegue acertar/ pobre do rei/ lê os jornais/ pendem que faça e ele faz/ (…) já leu todos os livros do mundo/ discutiu com seu ministério/ e o mistério estava na vida, a vida lá fora/ fora dali/ ela só olhar na janela/ ver a gente amando na grama/ e as crianças pelo jardim/ correndo pra mãe, pro pai, pro país”.
Sabotado pela CBS e picotado pela Censura, Johnny McCartney não resistiu a não ser como um compacto duplo editado em 1971, com a capa simbolista que Leno recuperaria em 1995, quando enfim lançasse o álbum na íntegra, por esforço individual, pelo selo autofundado Natal Records. À epoca só despontaram, para o anonimato, “Lady Baby” (de Raulzito com Carlos Augusto), “Convite para Angela” (uma versão pré-histórica de “Sapato 36“, que Raul assinaria sozinho e lançaria em 1977), “Johnny McCartney” e “Peguei uma Apollo” (escrita pelo muito jovem Arnaldo Brandão, futuro integrante de grupos de rock, MPB, soul e pop como A Bolha, A Outra Banda da Terra, Brylho e Hanoi-Hanoi).
A tocante balada “Pobre do Rei” foi reformada como objetivo de driblar a Censura e voltou camuflada em batina católica (e profana) como “Jesus Meu Rei” (“Jesus meu rei/ fazendo lei/ passa seu tempo real/ sabe Jesus/ tudo mudou/ e ele tem que mudar”), lançada em formato soul pelo autor Marcos Valle, ainda em 1971. No bojo de Johnny McCartney e de Sessão das 10 (o álbum-anarquia lançado na miúda pela Sociedade da Grã-Ordem Kavernista, também em 1971), Raul Seixas saltou de produtor da CBS para roqueiro concorrente em festival da canção e Leno rompeu com a CBS. Ambos foram parar na Polydor/Phonogram/Philips, onde Leno lançou “Jesus Meu Rei” num compacto, em vão, antes de voltar para a CBS, para a dupla com Lilian e para nova tentativa frustrada de reconciliação com o sucesso pop juvenil.
Franzino, nordestino e mestiço, Leno talvez não tivesse vocação para superstar (no sentido nazi-ariano do termo), mas destinou “Superestrela” (1974) ao LP que tentava lançar o baiano Edy Star como ídolo andrógino bowieano (mais um insucesso no sentido ariano do negócio) – tratava-se, na verdade, da mesma “Johnny McCartney”, trocando o refrão “Johnny McCartney vou ser” por “superestrela eu vou ser”. Superestrela Leno não foi nunca mais, mas a partir do segundo fim da dupla com Lilian seguiu produzindo música perifericamente, inclusive compondo e produzindo discos para os grupos potiguares Impacto Cinco (que tirou “Sentado no Arco-Íris” do baú) e Flor de Cactus. A certa altura, retornou à cidade natal de Natal, onde morou até o final.
Leno insistiu no rock mais envenenado ao longo dos anos 1970, em compactos desperdiçados (novamente) pela CBS e no álbum Meu Nome É Gileno (1976), em que testava voltar ao nome de batismo e estabelecer flertes de adulto com a tradição nordestina do maranhense Catulo da Paixão Cearense (“Luar do Sertão“, original de 1914) e com a MPB maldita-experimental do paulista Walter Franco (“Me Deixe Mudo“, de 1972). Em Meu Nome É Gileno, “Não Existe Lei em Grilo City” veio à tona com cinco anos de atraso, com a mesma letra, mas batizada apenas “Grilo City”, aparentemente para não atiçar mais uma vez a fera censora.
Para um EP de quatro faixas em 1978, ainda como Gileno, ganhou de Roberto e Erasmo um blues-rock sexy-agressivo chamado “Feitiço“, com mais cara de Erasmo que de Roberto: “Quero que teu beijo não tenha mais fim/ pra fazer tremer meu corpo inteiro/ por isso me ofereça sua boca toda/ sua boca aberta e molhada/ cheia de mistérios/ com as pregas doces, grandes e fartas/ boca escancara/ vermelha e carnuda/ bem descarada”. Nada aconteceu, Erasmo regravou-a sete anos depois sob o título “Boca Descarada” (no mesmo LP em que lançou o bailinho “Coração Adolescente“, de Leno, com menção a Nietzsche), novamente nada aconteceu. O compacto tinha ainda um rock amargo de protesto, “Arribação“, que tentava amadurecer a poética do compositor: “Pela janela vejo o azul do crepúsculo/ e as saudades vão crescendo demais/ que vou fazer sem os meus companheiros/ com quem passava sábados inteiros/ maldizendo os governos/ os barões e os medos?”.
A dose se repetiu mais afiada na bela letra de “Esquinas Nacionais” (1980), apresentada pela cearense Amelinha (e no ano seguinte no LP Encontros no Tempos, de Leno): “Os milhares de guerrilheiros mentais/ que sofreram ou piraram nessas décadas fatais/ transformaram-se em faíscas iluminando a vereda/ nas longas noites do tempo nas esquinas nacionais/ os milhares de guerrilheiros vocais/ que na mansidão do canto nas calçadas e quintais/ bloquearam o avanço trágico das forças da reação/ vocalizaram pra sempre bem dentro em meu coração/ (…) os milhares de guerrilheiros poetas/ censurados e queimados em Fahrenheit 101/ por todas cartas da Flávia, por nada que foi em vão/ pra sempre trarão na mente memórias da escuridão”.
O lado autoral, por vezes rebelde, encontrou concorrência na perenidade da jovem guarda, aquela mesma que nos anos 1960 muitos classificaram como moda passageira. O maior rival de um Leno pós-iê-iê-iê foi o próprio iê-iê-iê, em especial nas datas redondas que ensejavam festejos de aniversários das primeiras dentições do rock brasileiro. Coração Adolescente (1990), Brasil Jovem Guarda (1992), projetos coletivos em tributo aos anos de juventude (30 Anos de Jovem Guarda, em 1995, e Jovem Guarda pra Sempre, em 2005) e CDs ao vivo giraram em torno da mesma lâmpada, sempre com maior efeito comercial, ou ao menos mercadológico, que quaisquer outras tentativas criadoras. Pelas brechas, Leno introduziu pequenas transgressões, como “Debaixo do Sol”, perdida entre as regravações de Coração Adolescente: “Há uma tempestade se formando no horizonte/ e a chuva quando chega molha todo mundo/ não quer saber se é rei ou vagabundo/ político, soldado, reverendo ou ladrão/ é empregado, é patrão/ (…) brega, comunista, vanguardista ou ateu/ palestino ou judeu/ nordestino ou sulista/ liberal ou babaca racista/ o final é igual”.
“Debaixo do Sol” foi modificado e expandido com tons ecológicos no último álbum de canções inéditas de Leo, sugestivamente batizado de Idade Mídia (2006): “Quanto tempo falta para se aprender com a estupidez humana?/ quando a natureza se rebela não perdoa/ e o clima, quando muda, muda todo mundo/ não quer saber se é rei ou vagabundo/ é o pobre, é o político, é o crente, é o pastor/ é o ateu, é o ator/ nesse velho universo/ é calouro, é cantor de sucesso/ (…) militar ou civil/ estão queimando a floresta/ sem querer estragar sua festa/ chama a MPB pra ver/ (…) é o lixo, é o luxo/ debaixo do sol/ vaidade não e nada”. Num álbum ineditamente engajado, o autor se espraiou em franca artilharia contra mídia (“Campeão de Audiência”), internet (“Lixo Eletrônico”), amores e paixões (“Depois da Tempestade”), “Ciências e Religiões”… O protesto apriorístico “contra tudo isso que está aí” triunfou, e Leno morreu vociferando indistintamente contra bolsonaristas e contra petistas.
De todo modo, no escasso material original que gravou dos anos 1980 em diante, Leno exerceu liberdade irrestrita anti-iê-iê-iê, compondo rocks adultos, musicando Fernando Pessoa, citando “um filme de Chaplin ou Truffaut/ livros de Drummond ou de Rousseau/ o mais belo poema de amor” (na triste e bela “Imagens“, lançada pelos Golden Boys em 1986), gravando contemporâneos como Sá & Guarabyra e conterrâneos nordestinos como Geraldo Azevedo, citando João Gilberto (“a vida é uma canção pra se cantar/ ninguém faz mais um hô-bá-lá-lá, hô-bá-lá-lá, uma canção”, diz “Cruzeiro do Sul“, da dupla carioca-baiana Sá & Guarabyra, que ele gravou em 1981).
Nos últimos anos de vida, livre do jugo das gravadoras, tirou das gavetas do ineditismo interpretações que fez de Luiz Gonzaga, Chuck Berry, Beatles e Rolling Stones. Um exemplo: em 1979, morando em Los Angeles, regravou “Ruby Tuesday” (1967), de Mick Jagger e Keith Richards, que ficaria inédita até o ano passado, quando resgatou-a de uma fita cassete e publicou nas plataformas digitais por conta própria, com apoio da distribuidora digital Tratore. Sobretudo, Leno dedicou-se no final a valorizar a parceria com Raul Seixas, em apresentações ao vivo e no CD Canções com Raulzito (2010), seu último álbum de estúdio, que incluiu as parcerias inéditas “Uma Pedra no Seu Caminho” e “Quatro Paredes“, além de versões de autor para canções que a dupla compôs para Renato e Seus Blue Caps (“Se Sou Feliz, Por Que Estou Chorando?“, 1970) e Wanderley Cardoso (“O Mundo Dá Muitas Voltas“, 1971).
No ano passado, Leno jogou na rede um registro até então desconhecido, de 1970, no qual ele e Raul (à época integrante de sua banda) cantam em público o rock então recém-lançado “Instant Karma”, do início da história solo de John Lennon. Leno jamais conseguiu transformar em locomotiva artística a formidável produção em parceria com um Raulzito à beira do estrelato, fosse em termos de sucesso comercial ou de prestígio entre setores mais arrogantes da, digamos, intelectualidade pop brasileira.
Os jovens Raul e Gileno, juntos para cantar “Instant Karma”, de John Lennon, em 1970; Leno morreu em 8 de dezembro de 2022, exatos 42 anos depois do assassinato de Lennon
Ouvindo e adorando o álbum da dupla de 1972.
Badfinger não é da Alemanha.