A inegável importância de “Bandeira de aço” é mais uma vez reverenciada, desta vez no musical homônimo ao disco, lançado por Papete em 1978, pela gravadora Discos Marcus Pereira, fruto dos trabalhos do pesquisador que lhe emprestou o nome. O musical está em cartaz até hoje (30), no Teatro Arthur Azevedo, com sessões às 19h30 e retirada de ingressos gratuitos na bilheteria do teatro (Rua do Sol, Centro), a partir das 16h.
O musical dá conta de remontar a história do álbum sem se desligar de abordagens ao contexto em que o mesmo foi realizado (os anos de chumbo da ditadura militar brasileira, a que o título faz referência explícita e foi alvo de censura, driblada pela inteligência de Cesar Teixeira), a importância dos experimentos da turma do Laboratório de Expressões Artísticas (fundado seis anos antes do lançamento do álbum, por, entre outros, Cesar Teixeira, Josias Sobrinho e Sérgio Habibe – três dos quatro compositores gravados por Papete; o quarto é o carioca Ronaldo Mota), trazendo pela primeira vez, elementos da cultura popular do Maranhão para a música popular urbana produzida por aqui, e colocando no centro das atenções o produtor e pesquisador Marcus Pereira e o compositor Chico Saldanha, que tangenciou o processo – foi ele o responsável por apresentar a Papete as músicas registradas no “Bandeira de aço”.
A trama do musical abrange também o auto do bumba meu boi e não abre mão de abordar a situação de milhões de pais Franciscos e mães Catirinas que passam fome ou têm algum nível de insegurança alimentar sob o regime neofascista tropical. A língua do boi desejada pela gestante é metáfora para a consciência de classe: a tão falada “polarização” é eufemismo para a guerra de uma elite que quer manter seus privilégios contra a classe trabalhadora que quer ter direitos e dignidade.
O processo de gravação do álbum foi cercado de polêmicas, que perduraram por muito tempo, algumas talvez ainda até hoje. Papete gravou letras erradas, alterou arranjos originais, além do não-pagamento de direitos autorais aos “compositores do Maranhão” (expressão grafada na capa do elepê, sob o nome do intérprete). Além disso, a história da concepção de alguns dos clássicos de seu repertório, mais ou menos conhecidas do público. “Boi da lua”, “Flor do mal” e a faixa-título, de Cesar Teixeira, respectivamente, os bois que uma tia fazia com papelão e pintava com anil de lavar roupa e colocava para secar na janela, onde eles balançavam ao sabor do vento; inspirada no universo de Charles Baudelaire, composta ao longo de três anos que Cesar passou adoentado; e a censura que tentou mudar o nome da canção para um insosso “Bandeja de aço”.
“Eulália”, de Sérgio Habibe, é fruto de uma experiência pessoal, quando o departamento de som do Laborarte vivia por aí pesquisando os ritmos da cultura popular do Maranhão. Um dia, em plena Madre Deus, ele viu uma mulher chamando o marido, ela com uma criança no colo e outra na barriga, e ele se recusando a ficar em casa e decidindo-se a acompanhar a manifestação: “esse boi me leva”, dizia. “De Cajari pra capital”, de Josias Sobrinho, é a vinda do menino para a São Luís que o adotou e por quem foi adotado, onde se tornou, tal qual os demais, um dos maiores compositores do Brasil. As críticas ao regime implantado com o golpe de 1964 estão lá, mais ou menos sutis, com destaques para os recados diretos da faixa-título (“mamãe, eu tô com uma vontade louca de ver o dia sair pela boca”) e de “Eulália” (“hoje mesmo eu não fico pra dormir nesse país”/ “que não amanhece nem acorda com meu boi”).
Dança, música e texto contam a história do disco e seu entorno, sem esquecer de outras homenagens anteriores: por exemplo a do Festival BR-135, quando “Bandeira de aço” completava 35 anos, em 2013, que reuniu artistas da nova geração a Papete e os compositores que ele gravou em 1978 no palco do Teatro Arthur Azevedo – a exceção sentida era Ronaldo Mota, que mora no Rio de Janeiro; como àquela ocasião, novamente ele não pode estar em São Luís para ver o musical e aparece em vídeo agradecendo o convite da produção, antes do início da sessão.
A coreografia e as interpretações do espetáculo idealizado por Guilherme Junior e dirigido por Nicolle Machado dão conta do recado, com 26 artistas no palco, entre elenco e banda, com direção musical de Roberto Chinês. No rastro de “João do Vale, o gênio improvável”, “Bandeira de aço” é outro musical que prova que os espetáculos do gênero, made in Maranhão, estão com a bola toda. É comovente a homenagem a Marcus Pereira, cuja gravadora em pouco mais de uma década de existência lançou mais de 100 discos, de Cartola aos também maranhenses Chico Maranhão e Irene Portela, entre muitos outros, alguns registrados apenas por ele. O publicitário viria a se suicidar, acossado por dívidas.