A arte de Môa do Katendê se revela quatro anos depois de seu assassinato

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Mestre Môa do Katendê

Na madrugada do dia 8 de outubro de 2018, poucas horas após o encerramento do primeiro turno das eleições brasileiras, o baiano Romualdo Rosário da Costa, mais conhecido como Mestre Môa do Katendê, foi assassinado num bar em Salvador, com 13 facadas, pelo barbeiro e militante bolsonarista Pedro Sérgio Ferreira de Santana, após defender voto no candidato presidencial Fernando Haddad, do PT, no segundo turno, que aconteceria três semanas mais tarde. Patrimônio cultural da Bahia e do Brasil, Mestre Môa se tornou o primeiro artista brasileiro assassinado pela onda de ódio que então saía definitivamente da casca do ovo do neofascismo tropical, para não mais desaparecer até os dias atuais, às vésperas da eleição que opõe o vitorioso da eleição passada a Luiz Inácio Lula da Silva.

Agora, a arte faz seu mais belo papel, transformando vida e obra de Mestre Môa em filme e álbum musical, ambos chamados Raiz Afro Mãe (no caso do filme, Môa – Raiz Afro Mãe). O documentário terá pré-estreia no próximo dia 18, e o álbum musical chega às plataformas digitais antes, em 7 de outubro, exatos quatro anos após o dia eleitoral que terminou com o assassinato de um artista que foi tratado na cobertura midiática policial apenas como capoeirista, provavelmente por desconhecer (ou não) outros vários papéis exercidos por Môa em seus 63 anos de vida, na arte musical e nos ritos afro-religiosos do candomblé. À época, o jornalista Ricardo Boechat (que morreria quatro meses depois, num acidente de helicóptero) afirmou, na BandNews FM, que não via agressividade na campanha eleitoral e classificou o assassinato como “uma bobagem, minha gente”. Muita gente morreu no Brasil desde então, de susto, de bala ou vírus.

O futuro que então já se podia antever veio a mostrar que não se tratava de bobagem, o que agora o filme e o álbum sobre Môa do Katendê corroboram em forma de arte. O documentário musical, produzido pela Kana Filmes, é dirigido pelo também músico e publicitário Gustavo McNair, que no início de 2018 gravara uma primeira entrevista com Môa, para um material audiovisual que poderia acompanhar o lançamento do primeiro álbum a ser assinado pelo compositor e percussionista como autor e intérprete. O mestre aparece cantando quatro temas de candomblé, ao som de dois atabaques tocados por ele próprio. Ironicamente, Môa – Raiz Afro Mãe é apresentado como realização do Ministério do Turismo e da Secretaria Especial de Cultura do mesmo governo que instilou ódio e morte no país todos os dias desde a morte de Môa.

No calor da hora do assassinato, já havia sido produzido um primeiro documentário independente, Mestre Môa do Katendê – A Primeira Vítima, dirigido por Carlos Pronzato, produzido pelo Conselho Gestor da Salvaguarda da Capoeira na Bahia e pela Associação Brasileira de Capoeira Angola e disponível na íntegra no YouTube. Mais focada nos aspectos culturais da existência de Môa, a obra de McNair começa pelas vielas periféricas do bairro de Engenho Velho de Brotas, em Salvador, “onde tudo começou”, nas palavras de Nadinho, irmão de Môa e alfaiate do bloco de afoxé Badauê, fundado pelo mestre e nacionalizado a partir de quando Caetano Veloso gravou, em forma de rápida vinheta, em 1979, um tema homônimo assinado por Môa do Katendê: “Misteriosamente/ o Badauê surgiu/ sua expressão cultural/ o povo aplaudiu”.

A história é remontada come depoimentos de personagens como Alberto Pitta, artista plástico e fundador do Cortejo Afro, e Vovô do Ilê, presidente do bloco afro Ilê Aiyê, fundado por ele em 1974. Por intermédio deles, Raiz Afro Bahia ensina que Môa compôs “Badauê” para o Ilê em 1977 e em seguida se despediu do histórico bloco, para constituir o Badauê propriamente dito como representante do Engenho Velho entre os afoxés de Salvador. O performer Negrizu, apresentado como o “moço lindo do Badauê” que Caetano cantou em “Beleza Pura” (1979), aparece como elemento de transição entre uma Bahia negra mais influenciada pelo funk e pela cultura black power dos 1960 e 1970 e a reafricanização liderada pelos afoxés e blocos de índios. O Badauê desfilaria pela primeira vez em 1979, em homenagem aos 30 anos do veterano afoxé Filhos de Gandhi, festejado em canção homônima de Gilberto Gil que o autor e Jorge Ben imortalizaram em 1975, numa épica versão improvisada de 13 minutos de duração. Alberto Pitta conta que o Badauê causou indignação nos Filhos de Gandhi, que perderam o título do carnaval de 1979 justamente para o bloco iniciante.

É contundente o momento em que surge na tela um discípulo especial do mestre, o maestro negro baiano Letieres Leite, que morreria aos 61 anos, em outubro de 2021, de covid-19, vítima portanto do casamento entre o ódio e o vírus. Muita gente preta, mestiça e indígena morreu no Brasil desde o assassinato de Môa do Katendê e a louca cavalgada (anti)sanitária do coronavírus. “O Engenho Velho de Brotas é um dos poucos bairros na história brasileira onde se consegue ter várias nações de candomblé num mesmo bairro, isso é raríssimo”, explica Letieres. “Ele ia no meu show do nada, quando eu via ele estava ali na plateia. Eu parava para dizer: ‘Moa está ali, vocês sabem quem é ele? Vocês precisam saber quem é ele’. A nova geração já não sabia.” O maestro define o mestre como um modernizador dos blocos de ijexá, ou seja, do candomblé transportado dos terreiros para as ruas.

O documentário lembra também a dupla Jorge Alfredo & Chico Evangelista, que levou Môa e o Badauê para dançar “Rasta Pé” no festival MPB 80, da Rede Globo, e Moraes Moreira, que citou o Badauê em “Eu Sou o Carnaval” (1979) e elevou o imaginário dos afoxés para cima do trio elétrico, ajudando assim a criar o movimento de massa que a partir do final dos anos 1980 se transformaria na axé music. Morto de infarto no início do pânico pandêmico, em abril de 2020, Moraes é mais um artista que não resistiu aos anos terríveis sacramentados nas urnas de 2018.

Márcia Short - foto Alan dos Anjos
Márcia Short grava depoimento para o filme – foto Alan dos Anjos

Entre depoimentos de pioneiros das manifestações afrobaianas, mestres de capoeira e músicos, aparecem alguns dos artistas que gravaram no disco póstumo Raiz Afro Mãe, como Lazzo Matumbi, Márcia Short (ex-vocalista da Banda Mel), Fabiana CozzaUbiratan MarquesÍcaro Sá Russo Passapusso (trio de integrantes do grupo BaianaSystem), Chico César e Luedji Luna, além do ás do berimbau Dinho Nascimento.

O álbum

Raiz Afro Mãe, o álbum, parte de uma idéia original desenvolvida por Mestre Môa do Katendê em 2017, de gravar suas próprias composições em companhia de uma galeria diversa de artistas da música brasileira. O resultado póstumo, com produção musical de Rodrigo Ramos e produção artística da poeta paulistana de slam Kamari, tem por vetores naturais, de onde irradia tudo, o ijexá e o afoxé, os berimbaus e atabaques tocados pelo mestre e os registros de voz que ele deixou para nortear as 14 faixas do disco. A modernidade da produção e os universos musicais plurais dos convidados promove um trabalho de grande exuberância musical.

Edgar - fotos Filipe Machado
Edgar rima com o dedo na ferida em “Véia Coló”: “Corre, corre, minha gente, que temos a morte inteira pela frente” – foto Filipe Machado

O hip-hop se revela o coadjuvante preferencial da música afrobaiana de Môa, desde que o rapper Edgar toca o dedo na ferida aberta com o verso “corre, corre, minha gente, que temos a morte inteira pela frente”, no transe de candomblé e nas rimas trava-língua originais de “Véia Coló”, dividida também com as rimas bravas de BNegão (“só foi parado desse lado na base da covardia”). O afoxé-rap-candomblé sambeado “Afoxé Badauê” promove encontro de gerações e de regiões do hip-hop, com o pioneiro brasiliense GOG e o paulistano Emicida, enquanto Mestre Môa festeja: “Eu vou descer toda a ladeira de Nanã Burukê/ para contemplar o afoxé Badauê”. Rincon Sapiência participa da vibrante “Juventino” e passa reto recado antifascista: “Barreiras pra pular/ (…) somos fortes, raiz, baobá/ (…) saravá, natureza, no peso do axé a leveza/ (…) eu sei que quando se aceita se ajeita/ (…) a ordem de chegada, respeita”.

Já lançada em single, a mestiça “Embaixada Africana” conta com o reforço emotivo de Criolo, que em 2021 perdeu a irmã Cleane Gomes, de 39 anos, para o(s) vírus: “Se não quiserem tocar no rádio não precisa/ a voz do povo é a voz da sabedoria/ é o afoxé a primeira manifestação negra/ no carnaval da Bahia“. O grupo seleto da poesia periférica contemporânea se completa com a poeta de Slam Kimani, na potente “Exu Elegbara”, dividida ainda com Mateus Aleluia Filho, herdeiro da afro-religiosidade baiana d’Os Tincoãs.

Luedji Luna
Luedji Luna canta a “raiz afro mãe” de “Festa de Magia”

A salada de ritmos musicais soa sempre vivaz e produtiva, compondo um tributo mais à vida que à morte, apesar de tudo. Lazzo Matumbi Márcia Short somam o lado mais negro da cultura industrial do axé ao afoxé, em “Salvador Brilha”. A Paraíba visita a Bahia em “Filhos de Gandhi” (a de Môa, não a de Gil), com Chico César na liderança. Jasse Mahi, filha de Môa, solta a voz no sambafoxé “Pai Burukô”. A black-MPB da baiana feroz Luedji Luna ilumina “Festa de Magia“, uma apoteose de altivez, também já lançada em single.

Russo Passapusso - foto Alan dos Anjos
Russo Passapusso, da BaianaSystem, grava a exuberante “Olho do Guloso” – foto Alan dos Anjos

A festa ritual encontra outro ápice no transe de agogô, atabaque e xequeré de “Quem Tem Fé Vai a Pé”, na voz quente de Fabiana Cozza. A celebração a Môa do Katendê vira homenagem também a Letieres Leite, autor da concepção de “Ararecolê”. E o disco que chegou tarde (mas nunca tarde demais) termina em modo maior, quando o afropop pós-tudo do BaianaSystem harmoniza a guitarra baiana à la Moraes Moreira com o afoxé de Môa do Katendê e do Badauê na genial “Olho do Guloso”, uma das últimas composições de Môa. “Tô pulando armadilha na rasteira/ se eu falar que meu coração não ‘aguenta’ Mestre Môa me alimenta”, canta a letra rappeada, refletindo de leve o clima ruim que gestou o assassinato do fundador do Badauê.

“Eu dedico tudo que aprendi ao candomblé”, afirma Mestre Môa no documentário, deixando evidente o rio caudaloso que passa por baixo dos ódios e dos crimes de ódio do neofascismo. Letieres completa essa informação, enfático na descrição do assassinato do mestre: “Môa morreu em combate”. Raiz Afro Mãe provoca saudades daquilo que existiu subterraneamente ou nem sequer chegou a existir para uma imensidão de brasileiros. Se a vida de Môa do Katendê valeu realmente a pena, é urgente que rendamos honras aos que tombaram em combate, nas caixas de som e nas urnas.

"Raiz Afro Mãe - Môa do Katendê" (2022)

Raiz Afro Mãe. De Mestre Môa do Katendê e vários artistas, Mandril Audio. Dia 7 de outubro nas plataformas digitais.

"Môa - Raiz Afro Mãe" (2022), de Gustavo McNair

Moa-se – Raiz Afro MãeFilme de Gustavo McNair. Pré-estreia no dia 18 de outubro, às 20h30, no Petra Belas Artes, em São Paulo.

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