Peça “Tudo” questiona a identidade de todos

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Vladimir Brichta e Júlia Lemmertz, na peça "Tudo"
Vladimir Brichta e Júlia Lemmertz, na peça "Tudo" - Foto: Flavia Canavarro

O dramaturgo argentino Rafael Spregelburd foi convidado para escrever uma peça para o festival Digging Deep and Getting Dirty, que celebrava os 20 anos da queda do Muro de Berlim, em 2009. Todo (ou Tudo, em português) emergiu dessa provocação encomendada de se falar sobre a derrocada de antigas ideologias e do conflito de identidades. A solução de Spregelburd foi escrever um texto que versava sobre a inquietude de um futuro incerto para um mundo se dissolvendo, incluindo todos os medos e desejos sociais e coletivos. Ou seja, falar “de absolutamente tudo”. Transposta para um Brasil às vésperas de decidir seu futuro político, a peça Tudo transmite a ideia de que a sociedade precisa se olhar no espelho para enfrentar questões semelhantes.

Em cartaz no teatro do Sesc Bom Retiro, a montagem Tudo, sob direção de Guilherme Weber, é composta de três atos, não interligadas entre si, mas cujas histórias são compostas pela mesma estrutura. Elas partem da perda de um valor, emerge-se uma crise e, ao final, tudo retorna ao normal. Uma voz em off, uma espécie de narrador assumido por um dos atores, ajuda a dar contexto à encenação. Essa voz é vista pela plateia, mas não faz parte do mundo dos personagens.

Outra característica dessa comédia dramática é que cada ato de Tudo gira em torno de questões formuladoras: “por que todo Estado vira burocracia?”, “por que toda arte vira negócio?” e “por que toda religião vira superstição?”. Embora diversas, elas põem em xeque o capitalismo e as ideologias. Na concepção original de Spregelburd e mantida por Weber, essas histórias seriam fábulas morais. Mas se Esopo se valeu de personagens animais que viviam situações conflitivas ou desafiadoras para oferecer explicações e ensinamentos coletivos que serviriam de lição à humanidade, não espere a entrega de uma moral bem formulada em Tudo. Cada espectador deve-se desafiar a pensar o que faria numa situação semelhante.

O primeiro ato envolve o tema da burocracia, em que quatro burocratas questionam valores impostos. Os funcionários interpretados por Julia Lemmertz, Dani Barros, Vladimir Brichta, Márcio Vito e Claudio Mendes se valem até de mímicas para mostrar como a vida em uma repartição pública é premida por uma rotina sem fim, monótona. Isso até que um deles comete um delito e todos se tornam cúmplices desse gesto, mesmo sabendo que estão indo contra o que seria certo. 

No segundo, um artista plástico convidado para uma ceia de Natal de amigos põe em discussão qual o valor monetário de um trabalho intelectual. Com um enredo um pouco mais complexo, coloca-se no centro do palco personagens que ocultam passados desabonadores, que vão desde um pedófilo a um artista conceitual que queima livros de filosofia por ressentimento. Tudo isso só se torna claro porque a voz narradora explica o que está se passando em cena.

A última história, que fecha o terceiro ato, é altamente dramática, e impede, por uma questão de bom senso, o riso do espectador. Um escritor de livros infantis e sua mulher lidam com o pavor dela de que o filho recém-nascido possa ser atingido por uma maldição. Novamente, a descrença nos valores terrenos e espirituais se coloca em discussão.

O teatro de ideias invocado por Spregelburd continua mesmo depois do fim da peça, quando nas três situações o que se vê é que a vida pode prosseguir, porque é assim que tem sido ao longo dos tempos. Cabe, ensina Tudo, refletir se as fraturas que acostumamos ocultar poderão continuar como estão.

Peça "Tudo", em cartaz no Sesc Bom Retiro
Peça “Tudo”, em cartaz no Sesc Bom Retiro – Foto: Flavia Canavarro
Tudo. Direção de Guilherme Weber. No Sesc Bom Retiro, quintas-feiras, sextas e sábados, às 20 horas, e domingo, às 18, até 9 de outubro. Ingressos a 50 reais.
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