O Espectador e A Tropa, duas peças em cartaz no Rio de Janeiro, prestam um grande serviço ao momento político atual. Elas conscientizam por meio do riso, do humor e da fina ironia contida nos dois textos. A primeira tem como pano de fundo um julgamento feito de forma interativa com a plateia, na qual um dos espectadores inadvertidamente se torna o próprio réu nesse quase “tribunal de exceção”. E a segunda mostra o acerto de contas familiar entre um pai doente, mais especificamente um militar reformado, com seus quatro filhos homens no hospital. É como se o teatro pudesse explicar a barafunda Brasil.
Estrelada por atores globais, as montagens O Espectador e A Tropa acabam por explicitar como funciona a atual polarização no País, onde uma parte do eleitorado vive sob uma dimensão particular, senão irracional, e a outra não consegue sequer entender o que está acontecendo no campo adversário – quem é alvo tem dificuldades de compreender qualquer coisa. O teatro brasileiro, historicamente, ocupou um espaço decisivo nos enfrentamentos dentro e fora da política. A partir dos anos 1950, Augusto Boal e o Teatro de Arena de São Paulo, Oduvaldo Vianna Filho, o Vianinha, e o Centro Popular de Cultura (CPC) da UNE, e José Celso Martinez Corrêa com o Oficina deram uma guinada à esquerda para as produções cênicas no Brasil. As duas peças em cartaz no Rio não adotam a mesma estratégia, a do enfrentamento, mas os méritos delas são outros.
Primeira peça presencial depois da pandemia no Teatro Poeira, O Espectador reúne no palco Marieta Severo, Andrea Beltrão, Renata Sorrah e Ana Baird. O quarteto está leve no palco, pactuando com o público um diálogo tête-à-tête antes mesmo do início do espetáculo. No dia em que FAROFAFÁ assistiu à peça, foi preciso enfrentar meia hora parado num congestionamento a menos de mil metros do Teatro Poeira. Andrea Beltrão ironizou: “Mais uma blitz… no dia de peça… suspeito, não?” Ela e Marieta Severo arquitetaram e mantêm o espaço cultural, composto de duas salas, em um sobrado do bairro de Botafogo, na zona sul do Rio. Inaugurado em 2005, ele completou 15 anos durante a pandemia, o que o impediu de fazer as devidas comemorações. A casa se manteve com o patrocínio da Petrobras de 2007 até abril de 2019. As redes sociais bolsonaristas comemoraram “o fim da mamata”, enquanto as atrizes lamentaram o “retrocesso na relação do governo federal com as forças vivas da arte, da cultura e da educação”.
“Senhoras e senhores, há um criminoso entre nós”, inicia o texto original de O Espectador Condenado à Morte, do romeno Matèi Visniec. Encenada pela primeira vez em 1992, a peça ganhou uma adaptação a partir do trabalho de Marcio Abreu e de Enrique Diaz, que assinam a dramaturgia e a direção. As quatro atrizes assumem os papéis de juiz, defensor, procurador, escrivão e algumas das testemunhas, como a bilheteira, o espectador e o diretor. A quase totalidade são personagens homens, e Andrea, Marieta, Renata e Ana fazem questão de ocuparem esse lugar. O sinal é claro: a sociedade machista, misógina e acusadora está sendo julgada também. Embora o criminoso seja alguém da plateia, o tribunal armado em O Espectador sugere questões que nos remetem a até que ponto não somos nós mesmos que promovemos esse estado de coisas.
Visniec criou um texto mordaz, irônico e sutil. Os pequenos jogos de poder (pense no Congresso e no Judiciário brasileiro) são encenados à revelia de não estar havendo ali um julgamento como se deve. A cultura do cancelamento é forjada a partir de um sem-número de suposições, acusações levianas e desinformações que perpassam as pequenas cenas no palco de O Espectador. A plateia vai sendo levada, muito pelo humor, à situação que se torna, progressivamente, um caminho sem volta. A originalidade do texto do romeno se mantém nessa montagem, que faz referências ao Teatro do Absurdo de Samuel Beckett a Franz Kafka, que estabeleceu a culpabilidade moderna e também que nos ensinou como falsos processos são capazes de estabelecer a validação dessa culpa. O quarteto, contudo, não investe em uma suposta conscientização das massas, mas usa da paródia do teatro para nos alertar sobre os riscos que corremos com esses comportamentos nos tribunais fantoches da vida.
Não é improvável imaginar que essa adaptação atinja um público avesso ao teatro político. Muitos podem estar ali presentes apenas para ver dona Nenê ou Marilda, personagens da série global A Grande Família interpretadas por Marieta Severo e Andrea Beltrão. Ou a icônica vilã Nazaré Tedesco, de Senhora do Destino, imortalizada por Renata Sorrah. É saboroso saber que esse público se depare com uma peça capaz de propor mais questões do que respostas, inclusive sobre os seus próprios comportamentos.
Já a comédia dramática A Tropa entrou em cartaz em 2015, e a cada ano que se passa o texto de Gustavo Pinheiro se torna mais emblemático do momento atual. Nesta nova temporada, no Teatro PetraGold, no Leblon, o ator Otavio Augusto faz as vezes de um moribundo coronel que recebe a visita de seus quatro filhos. O ator global já participou de mais de 90 peças, 70 filmes (incluindo Central do Brasil, em 1998) e 100 trabalhos em televisão, incluindo as novelas Tieta (1989) e Vamp (1991). Com seis décadas de teatro, ele participou de O Rei da Vela (1967), do Teatro Oficina, e a montagem original de A Ópera do Malandro (1978), de Chico Buarque.
Internado em um hospital, Otavio Augusto vive o papel do pai que se vê preso a um reencontro carregado de mágoas e lembranças do passado. O ex-militar teria contas a prestar com a sociedade, por sua participação na ditadura civil-militar no Brasil, mas sua tacanhez – de espírito e de vida – mostra o quão difícil é ser julgado até mesmo pelos próprios filhos. Pense em Zero Um a Zero Quatro, e talvez a peça A Tropa ganhe um outro sentido nos dias atuais. Confinados no quarto hospitalar, os personagens vão se revelando, um a um, o que abre espaço para que o espectador enxergue como pensa e opera o lado conservador da sociedade. Não há limites, tolerância, empatia ou compaixão entre eles, mas se sobressaem o ódio, o compadrio e a alienação para com o outro.
Humberto (Alexandre Menezes) interpreta um dentista militar também aposentado que cuida do pai, e vive com ele. Artur (Alexandre Galindo) é um executivo de uma empreiteira investida por corrupção. Ernesto (André Rosa) é um jornalista que quer mesmo ser cineasta. Já João Batista (Daniel Marano), o caçula, é usuário de drogas. O pai demonstra afeto para com os filhos, mas jamais se permite descer do pedestal da hierarquia e da autoridade em que se colocou. As mentiras parecem fazer parte da tradição familiar. Já os filhos são resultado desse tipo de (des)educação que receberam. Reminiscências da mãe surgem, sempre como lembranças ternas, mas incapazes de fazerem frente ao ímpeto autoritário do pai.
A Tropa já viajou por oito cidades brasileiras e arrebanhou mais de 10 mil espectadores. A trama perpassa a história do Brasil das últimas cinco décadas, e calhou de ganhar uma nova temporada às vésperas de uma eleição em que um ex-militar e seus quatro filhos homens fazem de tudo para se manter no poder. Viúvo, o personagem de Otavio Augusto demonstra certo carisma, o que faz o público se simpatizar, até a página dois, com o coronel ranzinza. E é nisso que reside a força da montagem: a peça tem a força de dialogar com um público que o teatro político jamais alcançou ou alcançará. Nesses momentos de ódios exacerbados, tentar compreender o outro pode ser o primeiro caminho para buscar algum tipo de distensão. Ainda que estejamos todos só esperando chegar 1º de janeiro. A pergunta é se A Tropa vai se recolher à sua insignificância e O Espectador terá, finalmente, sua inocência reconhecida.
O Espectador. No Teatro Poeira (Rua São João Batista, 104, Botafogo), de quinta-feira a sábado, às 21 horas, e domingo, às 19 horas. Ingressos no Sympla a partir de 50 reais. Até 2 de outubro.
A Tropa. No Teatro PetraGold (Rua Conde de Bernadote, 26, Leblon), sextas-feiras, às 20h30. Ingressos no Sympla a partir de 35 reais. Até 26 de agosto.