Rua Guaicurus se afasta da urgência própria do gênero documentário para contar uma história menos através de ação e acúmulo de informações e personagens e mais pelos detalhes e pela observação cuidadosa e aprofundada de poucas protagonistas selecionadas em seus afazeres de rotina. O cenário é um dos maiores complexos de prostituição do Brasil, em atividade desde a década de 1950 do centro de Belo Horizonte (MG), distribuído em prédios antigos onde funcionam cerca de 25 hotéis dedicados à atividade sexual exercida por cerca de 3.000 trabalhadoras.

Para mergulhar no imaginário cru e delicado da rua Guaicurus, o diretor mineiro João Borges utiliza recursos híbridos, acrescentando atores e situações encenadas ao material propriamente documental. Elizabeth Miguel, por exemplo, foi garota de programa na região entre 2014 e 2017 e aparece dramatizando situações vividas, relatadas por outras ou imaginadas. “Conseguir a autorização das profissionais do sexo e clientes para usar suas imagens foi um dos maiores desafios para a realização do filme”, explica Borges no material de divulgação, justificando a opção de borrar limites entre documentário e ficção.

A trabalhadora iniciante que toma aulas de saúde sexual com Elizabeth e chora ao fazer os primeiros programas é interpretada com sensibilidade pela atriz Ariadina Paulino. “Seu corpo é seu patrimônio. Você tem que estar saudável. Se ficar doente, você não trabalha”, Elizabeth a aconselha. Os consolos, ensina, devem ser usados nos homens na busca de maiores pagamentos e sessões mais rápidas: “Tem que ter malícia, para fazer eles gozarem rápido e ficarem satisfeitos”. A habitual apropriação machista do imaginário da prostituição se dissipa à medida que as protagonistas tomam rédeas das próprias histórias e identidades.

Nas conversas captadas, surgem histórias graves sobre a vida em situação de rua, homens agressores, clientes que praticam roleta russa na trabalhadora durante o programa, a corda bamba entre gozar e simular orgasmos. A cabeleireira Amélia surge para colocar tranças na prostituta novata e contar sobre o trabalho no puteiro, a atual namorada, a relação com as filhas e o ex-marido violento. “Amo minhas filhas, mas odeio a ideia de ser mãe. Você deixa de viver sua vida para viver a de outra pessoa, é muito ruim”, afirma, no fio invisível entre a ficção e a bruta vida real.

Iniciado em parceria com a Associação das Prostitutas de Minas Gerais (Aprosmig), Rua Guaicurus procura olhares menos preconceituosos do universo que aborda, mostrando suas protagonistas como trabalhadoras autônomas e não como objetos sexuais, deusas do sexo ou estereótipos afins. Não por acaso, as mulheres retratadas num cotidiano de trabalho barato e desvalorizado são negras ou mestiças, e algo parecido acontece também com os clientes, entre os quais a possibilidade de distinção entre atores e não-atores é especialmente difusa. O trabalho nunca para, e enquanto isso, na parede de um dos hotéis, repousa a máxima do Profeta Gentileza: “Gentileza gera gentileza”. Parece ser essa também a base das relações entre o diretor, suas (não-)atrizes e seus (não-)atores.

"Rua Guaicurus", de João Borges

Rua Guaicurus. De João Borges. Brasil, 2019, 75 min.

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