Talento de Cristian Budu emoldura o minifúndio da música de câmara

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O pianista paulista Cristian Budu, co-curador e músico do Festival Sesc de Música de Câmara

Começou nesta quinta-feira, 9, e vai até o dia 26 deste mês a quarta edição do Festival Sesc de Música de Câmara, uma maratona com 34 concertos e 8 ações formativas circulando pelas cidades de Guarulhos, Jundiaí, Sorocaba, Mogi das Cruzes, Ribeirão Preto e também na capital paulista, na qual tem como base o Sesc Consolação (cujo teatro é bastante adequado para apresentações do gênero, assim como aquela unidade do Sesc já conta com um centro de música para ações educativas).

Com realização bienal pelo Sesc São Paulo desde 2014, o Festival Sesc de Música de Câmara tem curadoria de Claudia Toni e do prodígio do piano Cristian Budu. Entre as atrações, estão o quinteto de sopros dinamarquês Carion; o ensemble de cordas Ilumina Music; o quarteto de violões Maogani; o conjunto Sampaensemble; o Quarteto Carlos Gomes; a orquestra de câmara São Paulo Chamber Soloists com Gabriele Leite e Cristian Budu como solistas; Baderna Moderna, conjunto de câmara que faz um programa especial para crianças e famílias; e um espetáculo que reúne Osusp, o Coro dos Meninos Cantores de Hamburgo, o coletivo vocal Jeholu e solistas sob a regência de Luiz de Godoy.

Nome mais cintilante da nova geração do piano brasileiro, Cristian Budu, de apenas 34 anos, se consolida como um articulador da nova e fervilhante cena da música erudita no País por uma série de motivos além do talento incontestável. Acessível e tranquilo, Budu é a antiestrela por excelência, inimigo natural do pedantismo, e não se furta a mostrar a naturalidade da inserção do músico em uma sociedade diversa e popular – nascido do ABC paulista, de Diadema, ele é fã dos Racionais MC’s, adora futebol (sonhou ser jogador) e, a despeito das portas abertas para um futuro brilhante na Europa, enfiou-se ainda mais na essência do Brasil para trabalhar. Vive atuamente em Belo Horizonte, Minas Gerais, com a mulher, Ayla, e a filha, Laura, e, em Ouro Preto, desenvolve um núcleo de piano na Escola Saramenha Artes e Ofícios.

“Eu fiquei extremamente feliz com o convite da Claudia Toni, criadora e curadora do festival Sesc, para fazer junto com ela a curadoria dessa quarta edição”, contou Budu em entrevista ao FAROFAFÁ. “É um trabalho que eu já tinha feito antes, no próprio Sesc, em uma série de concertos, e também com o projeto Pianosofia, que eu idealizei e dirigi artisticamente, e não deixa de ser também um trabalho de curadoria. Eu tinha uma certa experiência, mas a amplitude desse festival traz novos desafios, novas perspectivas e, principalmente, estando ao lado da Claudia, eu aprendo muito”.

FAROFAFÁ – Vejo que há um esforço de oxigenação no seu programa. Há grupos como o Maogani, o Baderna Moderna, o Sampaensemble, cameristas brasileiros jovens e vibrantes no festival. A música erudita está conseguindo renovar seu público em nossos confusos dias ou está ainda mais difícil hoje?

Cristian Budu – Ao meu ver, a música clássica hoje, e não só hoje, de um bom tempo para cá, vem enfrentando uma crise, que muitas vezes é vista como uma crise financeira. Mas, para mim, é mais profunda, mais estrutural que isso. É uma crise de distanciamento da linguagem, e isso envolve todo o espectro do ecossistema em que ela se encaixa, e inclui a maneira como ela é incorporada e vista na própria sociedade, como é percebida. Essa crise, muitas vezes, afasta o público, e não representa nem a própria cadeia em que musicistas aprendem e são formados e entram no mercado de trabalho. Eu vejo forças opostas nisso, porque tem muita gente que no fundo quer enrijecer ainda mais preconceitos e afastamentos da música clássica – para que ela tenha maior alcance, de diversas formas -, assim como existem artistas, e também curadores, apresentadores, pessoas que trabalham no meio, e eu quero acreditar que estou indo nesse caminho também, que encaram a música clássica como algo a ser pertencido às pessoas, ao público, à sociedade. E, com certeza, na música de câmara, a gente encontra representação de grupos, cabeças, pessoas que olham nesse sentido, de maneira criativa, contemporânea. A fim de que a linguagem seja sempre comunicativa, toque as pessoas, o que é sempre a intenção da música.

FAROFAFÁ – Você é do ABC paulista, de onde é mais comum virem bandas de metal e metalúrgicos. Disse que já sonhou ser jogador de futebol. Foi revelado pelo Prelúdio, um “contest” de TV. Já esteve até no programa do Danilo Gentili, um humorista popular. Essa peregrinação em busca de um contato amplo com o público é parte de sua personalidade ou você acredita que existe mesmo uma missão em levar a boa música para públicos mais amplos?

CB – Eu diria que ambas as alternativas estão corretas: gosto muito de conhecer novos lugares, culturas diferentes. E acredito que a mágica está um pouco aí, em a gente ver maneiras diferentes de pensar e viver, mas que ao mesmo tempo comunicam ideias e se complementam e que, de alguma maneira, são consortes. E aí que está o trabalho de se aprofundar na linguagem, a maestria vem não de saber fazer muito bem, mas achar segredos que são universais dentro de uma específica linguagem. A erudição de fato é essa. É por isso que eu não uso o termo música erudita porque a erudição pode estar em qualquer linguagem, em qualquer cultura. Mas ao mesmo tempo eu encaro, sim, como minha missão levar a música para as pessoas onde quer que estejam, quem quer que sejam. Justamente porque é algo que nos humaniza, nos conecta. A ideia de que a música clássica foi feita para poucos, a ideia de valorizar pela escassez, é um dos principais pontos que geram a crise que a gente vive.

FAROFAFÁ – No ano passado, perdemos Nelson Freire, que foi um mestre para você. Você acredita que o surgimento de um pianista de tamanho rigor e consistência quanto Nelson é um trabalho que se realiza no campo da aplicação ou ele foi um fenômeno natural desses irrepetíveis?

CB – Acho que tem aquela famosa frase: 90% transpiração, 10% inspiração. Claro que nesse caso a gente não pode confundir, o Nelson foi extremamente doado à música, mas o fenômeno que ele foi, e a voz que ele deixou para sempre, são únicos, e os grandes artistas são justamente esses que estão livres de comparação. O Nelson inspirou todo mundo que ele conseguiu alcançar pela música, e eu sou um dos grandes fãs dele, e tive a sorte de conviver com ele na última década. E a maior honraria que tive na vida foi quando, na última entrevista dele, ter dedicado um tempo falando sobre mim, sobre meu trabalho como pianista, e essa recomendação dele eu não tenho palavras para agradecer. Muitas pessoas usam muito aqui no Brasil falar no “próximo Nelson Freire”, eu francamente digo que não existe substituição a Nelson Freire, não existe um próximo Nelson. E justamente o que Nelson nos ensina é que, na maneira como ele enxergava a música, cada pessoa tem a sua voz, e isso é um tesouro que somente essa pessoa transmite, tesouros infinitos que estão lá guardados com a música.

FAROFAFÁ – Desde Guiomar Novaes, e mesmo antes dela, se coloca ao instrumentista clássico brasileiro o dilema: para que insistir no Brasil? Não seria melhor mudar logo para a Europa? Você já viveu esse dilema?

CB – Com certeza, isso é uma questão que afeta todo mundo. E tem a ver um pouquinho com o fato de que a gente tem um campo bastante enrijecido para a música clássica, embora haja grandes instituições, com bastante poder e possiblidades, assim como iniciativas que penam demais para conseguir espaço e artistas que renunciam à carreira por não verem perspectivas. É um lugar muito complicado. Mas aqui a gente também tem espaço para criar o novo e chegar nas pessoas. Às vezes há preconceito contra a música clássica, mas também há abertura para ouvir e conhecer o que ela pode trazer de riqueza. Já vivi esse dilema, com certeza. Olhando para o Brasil colonial, que a gente ainda é, muitas vezes… Tive a chance de viver na Europa, e embora tenha uma base lá, agora mesmo vou para lá, em agosto, para a França, mas não vou abandonar mais o Brasil.  Vou estabelecer minha base em Minas Gerais, onde já vivo com Ayla, minha companheira, e a Laura, nossa filhinha. Eu vejo um movimento, que existe há séculos, de valorização da nossa própria terra, e a tentativa sempre de alcançar a independência, mais movimentos culturais, musicais. Como o festival Artes Vertentes, em Tiradentes, outro em Ouro Preto, que estou coordenando. São tradições musicais diversas que dialogam com a riqueza da nossa terra. Há grandes polos na Europa, sempre tenho a oportunidade de tocar lá, tenho reconhecimento, mas para mim, se a gente não abraça a possibilidade de criar algo aqui, genuíno e incorporado, entendendo as diversas linguagens que a gente tem, não tem como ir para a frente. Senão, será sempre a opção de estar aqui e sofrer demais. Isso tem que mudar.

FAROFAFÁ – Essa é a quarta edição do Festival Sesc de Música de Câmara. O que se pode fazer para que ele alcance uma longevidade respeitável e se insira definitivamente no calendário da música nacional?

CB – Eu acredito que a trajetória que o festival já tem, com todo o reconhecimento do trabalho, já mostra que ele está indo nessa direção. Ainda mais valorizando a música de câmara, que é uma das coisas que a gente tem de valorizar no Brasil. Se comparar com as orquestras, a música de câmara seria um minifúndio entre latifúndios. No Brasil, todos os projetos são muito vulneráveis, mas é bom ter os minifúndios, essas “propriedades” menores, conseguir engajamento, ideias atrativas, isso tudo é muito valorizado na música de câmara. É superimportante, são raríssimos os festivais. E trazendo cada vez mais grupos que valorizam a diversidade, grupos feitos para todas as ideias, para cabeças pensantes, criativas, que incentivam novos textos, esses diálogos são muito importantes. O Sesc valoriza isso com o festival.

FAROFAFÁ – Budu, pelo que pesquisei, significa “eu vou”. Isso pode ser interpretado como um sinal da sua personalidade? A pulsão de ir sempre adiante? Ou sua ideia é mais sedimentar algum território específico, enraizando-se?

CB – É interessante o significado (do sobrenome), não? “Eu vou” poderia significar o tornar-se, o vir a ser. Não só de ato de ir. Em minha personalidade, essa noção da busca de transformação é inerente. É por isso que eu toco, para achar esse significado dentro de mim, transformador. Ao mesmo tempo, assim como aprendi a valorizar a transformação, também aprendi a valorizar, estando em Minas Gerais, aquilo que sedimenta, que se constroi, o mineral. Aquilo que fica. São forças que parecem opostas, mas que se complementam. Com a (experiência) vida, agora em meus 34 anos, estou aprendendo cada vez mais isso.

4ª EDIÇÃO DO FESTIVAL SESC DE MÚSICA DE CÂMARA
Hoje, 20 horas, no Sesc Consolação (Rua Doutor Vila Nova, 245), apresentação do grupo de sopros Carion (Dinamarca)
Preços: 40 reais (20 reais meia)
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