O professor e crítico cultural José Teixeira Coelho Netto, morto na sexta-feira, 3

Morreu na sexta-feira, 3, em São Paulo, aos 78 anos, o ex-curador coordenador do Masp entre 2006 e 2014 e professor da Universidade de São Paulo, José Teixeira Coelho Netto. Ele sofria de mielodisplasia, doença semelhante à leucemia.

Liberal clássico, intelectual de perfil conservador, Teixeira Coelho foi autor de 44 livros em 50 anos, a maioria de crítica cultural, e se dedicava, desde os anos 1980 (quando lançou, pela famosa coleção Primeiros Passos da Editora Brasiliense, o livro O que é ação cultural) a ampliar o debate em torno dos princípios norteadores desse campo. Escreveu A Cultura e seu Contrário (Iluminuras), muito elogiado. Como professor, ensinou boa parte das lideranças culturais hoje em evidência pelo País. Em 2012, quando lançou a segunda edição do Dicionário Crítico de Política Cultural (Iluminuras), no qual analisou os principais conceitos, termos e o desenvolvimento histórico das políticas de cultura em diferentes níveis, ele me concedeu a seguinte entrevista – tivemos notáveis divergências quando ele foi curador do Masp durante a gestão do arquiteto malufista Júlio Neves:

O Dicionário Crítico de Política Cultural foi pioneiro ao analisar a questão da política cultural como uma disciplina específica, permeada por outras, como a sociologia e a psicanálise. Quando o sr. o escreveu, já intuía que haveria uma maciça profissionalização dos sistemas de política cultural no Brasil?

A primeira versão do Dicionário surgiu uma década depois da das primeiras leis de incentivo à cultura, que permitiam prever um desenvolvimento acelerado da dinâmica cultural, como aconteceu. Mas, grandes instituições culturais já existiam há bom tempo. Para ficar apenas em São Paulo, a Bienal é de 1951; o Centro Cultural São Paulo, de 1982; o novo Masp já existia na Paulista desde o final dos anos 60. Tudo isso significava um campo já definido a demandar profissionais especializados de cuja formação a universidade no entanto não se ocupava, distraída como estava na atuação tradicional de formar o artista e o professor, além do pesquisador, sem se interessar pela mediação entre a cultura e seu receptor. O cenário estava mais do que pronto para a nova linha representada pelos estudos de política e  ação cultural.

Para se atingir o postulado ético fundamental em política cultural deve-se “contornar o grande obstáculo que é o dirigismo sufocante”, diz seu dicionário. Também diz que “a ética do lucro não é incompatível com a ética da cultura”. Em tempos de democracia, o que é dirigismo, em sua opinião? E quais são os limites do “lucro compatível”?

O lema da ação cultural contemporânea é a criação das condições para que as pessoas inventem seus próprios fins culturais e fiquem assim livres da sujeição aos fins culturais do Estado, das Igrejas,  dos partidos e dos demais grupos de pressão social. Isso dito, democracia, no Brasil, tem sido, infelizmente, um conceito e uma prática relativos. E no Brasil o Estado sempre teve papel mais forte, centralizador e paternalista do que justificaria o parco retorno que oferece à sociedade. (E mesmo um Estado do bem-estar social, como o sueco, não necessita dirigir a cultura… É por ser um real estado do bem-estar social que não dirige a cultura…) Nesse cenário, dirigir a cultura é uma tentação que parece frequentemente irresistível. Sobretudo quando quase nada mais pode ser controlado pelo Estado: nem a economia, nem a segurança, nem a educação, nem as fronteiras… Resta a cultura, como última frente de batalha ideológica possível…

E o lucro em cultura, ou a ideia do mercado em cultura, noção demonizada no país na última década, tem sido intrínseco à dinâmica cultural. Cultura e mercado, assim como cultura e lucro, não são ideias antitéticas. O produtor cultural lucra com o que faz. Só um primarismo conceitual lamentável pode defender a ideia de um “sacerdócio da cultura” ou a noção de que a cultura se faz de graça e não pode ser lucrativa porque representaria algum alto valor coletivo. Os limites a esse lucro são os mesmos aceitáveis em qualquer outro campo, nem menos e não mais.

Em 1997, quando da primeira edição do livro, vivia-se uma euforia econômica com uma moeda forte, com a ativação da renúncia fiscal. Mas era tudo ainda muito incipiente. Hoje, temos agências específicas de estímulo, como a Ancine, temos a Biblioteca Nacional se fortalecendo na gestão do livro, temos secretarias nacionais de diversidade e economia criativa. Ao fazer essa nova edição, foi necessária uma revisão muito aprofundada? E quais foram os conceitos que o sr. considera que ficaram ultrapassados e os novos que ganharam peso?

Todo dicionário muda conforme a época. Para um dicionário da língua, palavras novas surgem sempre e  outras morrem. Para um dicionário conceitual como este, a situação é análoga. Noções como as de sistema de produção cultural ou ação cultural permanecem válidas. Depois de seu lançamento, alguns conceitos tornaram-se muito mais presentes, como o de diversidade cultural e de sociedade civil na cultura e tiveram de ser reforçados. A diferença mais relevante entre a primeira edição e a atual é o contraste agora nítido entre cultura e arte. Durante muito tempo vigorou a ideia antropológica de que arte é cultura. Hoje se vê nitidamente que a arte cumpre, na sociedade contemporânea,  um papel radicalmente oposto ao da cultura, embora num sistema de complementaridade.

Volta e meia, se diz que o jornalismo do segmento dito “jornalismo cultural” está em decadência, que já experimentou um auge e hoje vive declínio. Ao mesmo tempo, tem-se que as formas de divulgação e debate cultural ampliaram-se com as redes sociais, e mesmo a disseminação da cultura, na era da internet (com o MP3, a digitalização). O sr. compartilha dessa ideia, de que o jornalismo cultural não evoluiu, que não há mais crítica literária e teatral? Isso é um sintoma de uma época ou assistimos a uma mutação definitiva?

Quando se traz esse tema à discussão é bom indicar se o cenário é o brasileiro ou o mundial —  porque, se o jornalismo cultural definhou no Brasil, sua decadência no exterior é menos sensível. O Brasil não tem, ou não tem mais mais, veículos como  New YorkerNew York Review of BooksBabelia ou Art Forum. A crítica que se lia  no Suplemento Literário do Estado de S.Paulo não tem mais espaço nos diários e com isso os grandes críticos se retraem ou são sistematicamente afastados dos meios de comunicação, com raras exceções. Essa é  uma tragédia do mercado cultural. É sem dúvida sintoma de uma época – esta época do mais baixo nível de educação e de educação cultural na história do país, sempre o último ou penúltimo nas sondagens internacionais de interpretação de texto. E pode ser indício de uma mudança definitiva: o século dos explicadores, aqueles a quem se chamava de intelectuais, foi o século XX.

O sr. elogia a visão da política cultural de Estado do ex-ministro Gilberto Gil. Ele próprio considera que um de seus gols foi ter conseguido dar projeção à ação cultural brasileira no mundo globalizado, além de ter emprestado simbolismo ao cargo. Como vê o desafio posto a partir da saída de Gil, naturalmente carismático, e a estratégia que se desenha a partir de agora no Brasil?

Não me lembro de ter apoiado tanto assim a gestão de Gilberto Gil, embora reconheça que ele por sorte foi para um lado enquanto o controle cultural e ideológico do governo ao qual pertenceu queria ir para outro, bem oposto. A estratégia atual do governo, internamente, está indefinida.  De fato, a sociedade civil passou os anos da gestão Juca Ferreira lutando contra as tentativas do ministério de limitar o alcance do incentivo fiscal sem oferecer em troca nada de fato transparente e aceitável. Esses atritos parecem agora reduzidos – pelo menos enquanto o país mantiver um mínimo de equilíbrio econômico. Mas, o fato é que um pais enorme como o Brasil não pode ter uma gestão cultural centralizada em Brasília. As cidades, que é onde está a cultura, devem ser fortalecidas – e no entanto vêm a reboque… E em termos de atuação internacional, o Brasil ainda é muito tímido, nada à altura do papel protagonista que diz querer exercer…

O sr. detecta, no Dicionário, uma permanente “tentativa de reabilitação do mau gosto”, e diz que a desqualificação do mau gosto tem sido considerada, em certos círculos teóricos, como forma de opressão cultural sobre as camadas populares. Vê isso como uma tendência que conspira contra a dialética artística?

O Brasil sempre foi pouco receptivo à cultura e recentemente tornou-se claro por aqui um vetor anti-intelectual. O discurso demagógico contra as “elites” impera e há um esforço claro de manter-se o statu quo cultural: a direita sempre foi contra a ampliação do estado cultural e a esquerda não faz outra coisa. A meta da ação cultural, pelo contrário,  é abrir as portas para que todos (ou quem quiser: nada é obrigatório, nem mesmo em cultura) façam parte da elite  – ou do melhor em cultura e arte, porque isso existe…  E nunca acomodar-se à lei do menor esforço cultural.

Gostaria de saber sua opinião sobre 3 fenômenos populares consagrados como de mau gosto em três épocas diferentes:
1) O êxito massivo atual do cantor Michel Teló;
2) O reality show;
3) A telenovela;

Há pouco a falar sobre isso, não?  Os três fenômenos são inquestionavelmente o território do mau gosto, do kitsch, do repertório restrito (essa é a lei básica da informação: quanto menor o repertório, maior a audiência). E também o campo da pura e simples baixaria e canalhice. Remember Nelson Rodrigues e seu horror ao canalha. Nelson perdeu a batalha. Quanto à telenovela, é duro vê-la defendida em parte da universidade  como o grande meio cultural de socialização do país. Triste país.

Os termos Patronato Cultural e Mecenato ocupam quatro páginas do Dicionário. Gostaria de perguntar-lhe se esses dois termos, hoje em dia, no Brasil, não enfrentam uma certa obsolescência, dado que “camuflam” uma ação do Estado via leis de incentivo – e, também, face ao deterioração de seu uso em instituições históricas, como a Coleção Nemirovsky, a Fundação Bienal e o próprio Museu de Arte de SP (que pediu R$ 10 milhões ao sistema de captação da Lei Rouanet, teve R$ 8 milhões aprovados e captou apenas R$ 2,3 milhões em 2011, segundo o Diário Oficial da União do dia 9 de maio de 2012)?

Todos os estados civilizados têm algum tipo de incentivo à cultura, direto ou indireto. O problema no Brasil é que o verdadeiro mecenato não se implantou ainda no grau que as primeiras leis de incentivo deixavam ou queriam prever. A sociedade civil brasileira é ainda tão indiferente à sorte da cultura quanto o Estado e a iniciativa privada. A situação perfeita ou “perfeita” prevista ou desejada por Marcel Duchamp ou por ele defendida provocativamente  – a da indiferença visual e estética, mais amplamente, a da indiferença cultural segundo a qual qualquer coisa vale qualquer outra coisa— materializou-se no Brasil. Essa é a grande tragédia cultural brasileira. A cultura simplesmente não ocupa o centro da realidade social aqui. Nesse aspecto, o Brasil é bem marxista…

Não podia deixar de perguntar-lhe sobre sua própria atividade atual, curador do Masp. Em sua definição de MUSEU, o sr. diz que uma evolução da ideia de museu foi a incorporação do objetivo de “criar as condições para que a obra de arte entre no circuito imaginário da cultura”. Acredita que o Masp está conseguindo dar cabo dessa acepção nos últimos anos? As mostras do Masp estão realmente criando esse impacto?

O impacto de uma instituição como o museu é sempre demorado e gradual, dependendo de muita insistência.  Qualquer tropeço pode ser fatal.  E como em vários outros campos, aquilo que já é conhecido tem impacto maior. Ou parece ter. Uma exposição sobre Roma antiga é mais “impactante” do que outra com arte contemporânea. Se há algo de animador no processo é o fato de que nos últimos anos os museus, e o MASP incluído, têm feito um esforço adicional, tendo por resultado um aumento sensível de seus públicos, não só no MASP mas no MASP também. É um publico muito aquém do que seria possível num país como este, o que reflete bem o estado de subdesenvolvimento cultural e educacional crônico do país. Contudo, não é mais desprezível nem como fenômeno cultural, nem como fato econômico – algo que no entanto os governos todos ainda largamente ignoram. E novas normas limitam mais ainda os incentivos às artes visuais, comparadas às outras artes. Preocupante.

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