Uma outra leitura sobre o naturalismo brasileiro

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Aluísio Azevedo (1857-1913)
Aluísio Azevedo (1857-1913)

Para um leitor não exatamente familiarizado com os temas dos movimentos literários do final do século 19 e do início do século 20, o livro O Naturalismo e o Naturalismo no Brasil – Questões de Forma, Classe, Raça e Gênero no Romance Brasileiro do Século 19, do jornalista e crítico literário paulista Haroldo Ceravolo Sereza, desperta atenção e inquietação amplas, menos até pelo significado histórico das muitas questões levantadas do que pelas perturbadoras semelhanças com o Brasil que temos hoje, 13 décadas mais tarde. O autor sabe disse, e não à toa estuda os procedimentos de autores como o francês Émile Zola, o português Abel Botelho e, no Brasil, o maranhense Aluísio Azevedo, o cearense Adolfo Caminha, os mineiros Júlio Ribeiro e Horácio de Carvalho, entre outros, sob óticas expostas no subtítulo, de raça e gênero, em voga hoje no que se classifica, pejorativamente, como identitarismo. Mais que isso, o autor recoloca no eixo a questão de classe (e consequentemente o marxismo), que a crítica tradicional de ontem e de hoje prefere ignorar (senão rechaçar silenciosamente). O velho, manjado e atroz horror aos pobres seria, talvez, uma motivação oculta atrás da reprovação “estética” ao naturalismo.

Sereza conclui que, se a versão brasileira do gênero assimilou e repetiu formas e conteúdos dos equivalentes internacionais, a crítica que se vem fazendo ao movimento desde sua época até a atualidade costuma cometer os mesmos “pecados” que critica. “O discurso literário padrão no Brasil, que vê as obras naturalistas escritas no país como reprodução crítica de um modelo internacional, paradoxalmente, não é, por sua vez, original. Ele repete, a seu modo, uma visão de literatura que participa das restrições à obra de escritores naturalistas em vários países, inclusive na França”, escreve. Expõe, além disso, o viés reacionário que não raro essa crítica vinda de dentro do status quo reflete, procurando mostrar, por exemplo, “o quanto a apreciação estética do romance de Aluísio Azevedo foi, por vezes, condicionada por leituras extremamente conservadoras, religiosas e moralistas”.

Segundo lista e organiza o texto, o catálogo naturalista foi alvo preferencial de adjetivos do tipo “imoral”, “inconveniente”, “deslavado”, “impudico”, “pernicioso”, “detestável”, “imundíssimo”, “inaceitável”, “ofensivo à moral”, “torpe”, “pornográfico”, “imoral”… Embora a quase totalidade desses adjetivos esteja em desuso (ou deslocada, subrepticiamente, para a crítica à música pop), eles subsistem como residuais ou como alavancas para o senso comum de que o naturalismo brasileiro seria uma corrente literária menor, mera cópia etc. Acompanhar essa argumentação ajuda a decifrar elementos ocultos por trás da aceitação bovina do bolsonarismo de hoje por parcela majoritária da população (e não apenas por aqueles adeptos capazes de usar com gosto cada um dos antiquados adjetivos).

“Há bons motivos para que o leitor dos romances naturalistas sinta profunda empatia com essas obras: afinal, elas responderiam, desta forma, na literatura, a uma aspiração profundamente reprimida depois de 1848 (a igualdade) e continuariam revelando contradições que a burguesia precisa esconder ou, pelo menos, controlar”, conclui o autor, numa proposição que não deixa de explicar a má vontade crítica contra o naturalismo. Num capítulo dedicado a cotejar O Mulato, de Aluísio Azevedo, e Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, ambos lançados em 1881, e a esmiuçar as críticas de Machado a O Primo Basílio (1878) do realista português Eça de Queirós, Sereza elucida tensões, semelhanças e diferenças entre o realismo e o patinho feio naturalista. Faz entender que por vezes a crítica favorável a obras ditas realistas e desfavorável às naturalistas pode ser, de fato, o que acomoda uns como representantes do realismo, outros do naturalismo. É como se o naturalismo fosse a versão “imoral’, “detestável”, “inaceitável”, “pornográfica” etc. do realismo ou da literatura aceitável à mesa de jantar.

Pois bem, Sereza liga a lanterna para iluminar o que incomodava (ou incomoda) tanto na mestiçagem naturalista, produzida à luz de acontecimentos como o desfecho da Guerra do Paraguai, a chamada abolição, a proclamação da República em termos militares e positivistas, o despejo dos ex-escravizados rumo à miséria. E aí entram os temas que eram tabus na época e que ainda hoje atiçam os mesmos cães conservadores para cima de quem pretende que a história siga para diante e não para trás. No caminho, encontra a mobilidade social da época (alegorizada pelo cortiço do livro homônimo publicado em 1890 por Aluísio Azevedo), a adaptação do racismo à nova ordem fundada numa mestiçagem mal assimilada (em O Mulato e O Coruja, publicado pelo mesmo Aluísio em 1890), a condição feminina aviltada (na figura da Bertoleza de O Cortiço), a repressão sexual e o asco às sexualidades dissidentes (em O MulatoO Cortiço ou A Carne, publicado em 1888 por Júlio Ribeiro), o capitalismo emergente e a “reforma trabalhista” (a condição de Bertoleza, de suposta “ex-escrava” do amante português João Romão), daqui a pouco o higienismo, a eugenia, a Revolta da Vacina, a pandemia…

“Parece-nos que é justamente a possibilidade de dar a conhecer o que está por trás dessa lenda capitalista que fez, e ainda faz, de O Cortiço um romance popular. Ao mostrar como nele ‘apagam-se, assim, os traços do passado, eliminando da história os assassinatos, as traições, a perversidade utilizada para alcançar o poder’, além de permitir que os que enriquecem apaguem as relações de ‘mestiçagem originial’ – e, no caso de O Cortiço, essa mestiçagem é menos racial, porque Romão e Bertoleza não têm filhos, do que cultural e econômica -, o romance de Aluísio revela como a elite brasileira constituiu-se, por meio de falsificações e violências, ‘branca, honesta, religiosa e com bons costumes; além, é claro, de culturalmente preparada para assumir o comando'”, escreve o autor, citando trechos do texto “Da Senzala ao Cortiço”, de Regina Dalcastagné, e indiretamente apontando as origens das sub-avaliações do naturalismo.

O autor redimensiona a importância de Bertoleza (ou seja, da mulher negra) n’O Cortiço, que para ele é de protagonismo e uma particularidade brasileira: “O papel de Bertoleza no romance, porém, não deve ser negligenciado: ele é central na estrutura da obra mesmo quando não está presente, quando sua presença é apenas aludida, porque é sua sociedade com Romão no início da história e seu suicídio ao final que dão o caráter dramático ao enredo e que permitem que as cenas do correr do livro ganhem a tão celebrada unidade, a ponto de muitos terem identificado no cortiço a principal personagem do romance. O destino de Bertoleza também permitiu ao autor inserir o livro no debate político mais importante do seu tempo: que futuro a República reservava aos ex-escravizados, que haviam acabado de ser libertos no fechar as cortinas do período imperial?”.

Outro ponto de contato com o presente que emerge de O Naturalismo e o Naturalismo no Brasil é o avanço das sexualidades (dissidentes ou não) em meio à repressão conservadora, hoje como 130 anos atrás. “O naturalismo é, na literatura, o movimento que vai dizer com grande paixão que somos reprimidos sexualmente e que vai intensificar os discursos sobre o sexo, mas que acaba também por colaborar na construção e na difusão de novas sexualidades”, escreve o autor. Ainda sobre Bertoleza, ele conclui: “Num país que estava tão preocupado com questões raciais, Aluísio construiu uma heroína negra, que aceita as regras do jogo e se dá mal”.

No percurso analítico, além da paixão (sempre crítica) de Haroldo Ceravolo Sereza pelo naturalismo, ergue-se aos poucos outra tese fundamental, que contesta o rebaixamento do movimento, seja em termos absolutos, seja na comparação entre os naturalismos internacional e brasileiro. Rejeitando a compreensão do naturalismo como gênero literário “menor” e do naturalismo brasileiro como inferior aos de outros países, Sereza traz à tona preconceitos ainda hoje muito latentes, inclusive aquele que define o Brasil como retaguarda intelectual ou mera cópia de outras matrizes (como querem muitos, entre intelectuais e acadêmicos, elite econômica, bolsonaristas e outros regressistas). Em diversas passagens, o autor aponta, com bravura, onde o naturalismo brasileiro esteve sincronizado ou até mesmo na vanguarda em relação a correlatos franceses, russos, alemães, italianos etc. A abordagem da luta de classes e da luta racial, exemplares em O Cortiço, são algumas dessas passagens nada passageiras.

"O Naturalismo e o Naturalismo no Brasil" (2022), de Haroldo Ceravolo Sereza

O Naturalismo e o Naturalismo no Brasil – Questões de Forma, Classe, Raça e Gênero no Romance Brasileiro do Século 19. De Haroldo Ceravolo Sereza. Alameda, 288 pág., R$ 78.

 

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