“Um Inimigo do Povo” desnuda a falácia da democracia

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Cena de "Um Inimigo do Povo", peça de Henrik Ibsen
Cena de "Um Inimigo do Povo", peça de Henrik Ibsen - Foto Ronaldo Gutierrez

Um Inimigo do Povo, peça de Henrik Ibsen, se reveste de uma atualidade cortante para tempos que maltratam a democracia. Ou a falaciosa sociedade democrática, porque basta ver o Brasil de Bolsonaro para entender que a aparente normalidade institucional está longe de representar o melhor do interesse de todos. O texto clássico, escrito em 1882 pelo dramaturgo norueguês, não poupa o que se convencionou através dos tempos a considerar como o melhor dos regimes políticos. A lição que se tem, a quem lê o texto ou vê uma montagem, é que muitas vezes a maioria está a serviço de e são manipulados por uma meia dúzia de poderosos.

No Teatro Aliança Francesa, em São Paulo, estreou a montagem Um Inimigo do Povo, sob direção de José Fernando Peixoto de Azevedo. Com grande elenco, a peça de Ibsen leva em cena a trágica história do doutor Thomas Stockmann, um médico responsável por fiscalizar a qualidade da água de um balneário municipal. Interpretado por Rogério Brito, o médico descobre que o balneário está contaminado pelo esgoto de imóveis próximos e é uma ameaça à saúde pública. Assim que confirma sua desconfiança, corre para o jornal A Voz do Povo para informar a população da pequena cidade. Os editores logo se entusiasmam com a possibilidade de publicar a bombástica notícia.

Mas Stockmann terá de enfrentar seu irmão, o prefeito (Sérgio Mastropasqua) que entra em cena para uma reviravolta na história. Ele não só se opõe à divulgação da notícia, como alerta o médico e os jornalistas de que a cidade seria prejudicada, já que haveria perda de empregos com o fim do turismo no balneário. Stockmann está decidido a levar até o fim a sua denúncia e convoca uma assembleia popular para alertar a todos, quando subitamente vê que a opinião pública pode ser facilmente manipulada por poderosos. Ele é declarado como “um inimigo do povo”, já que a verdade pouco importa. Conceitos que deveriam ser caros a uma democracia, como liberdade de expressão e liberdade de pensamento, interesse público, são esvaziados de sentido quando uma “massa amorfa” consente seus líderes a agirem como querem. A “um inimigo do povo”, só restará a companhia de sua mulher, a senhora Stockmann (Clara Carvalho), e sua filha Petra (Lilian Regina).

A encenação se vale do recurso de um grande telão móvel que projeta cenas filmadas em cima do palco e também no camarim. Com alto poder de distração, o dispositivo vem ao socorro do espectador para destacar algumas expressões com mais detalhes, assim como criar um clima de tensão nas captações feitas nos bastidores – uma remissão à política tramada de forma obscura, nunca aos olhos da população.

Os ares de terror são reforçados, quando se descobre que o encenador informa ter usado como referência o filme A Noite dos Mortos Vivos (1968), de George A. Romero. A obra também traz um protagonista negro que luta pela sobrevivência, enquanto um grupo de habitantes brancos da Pensilvânia se transforma em monstros carnívoros e sanguinários por conta de uma epidemia.

Não é difícil, nem equivocado, comparar o destino de uma população (brasileira) que se deixa levar por políticos (Bolsonaro) que tornam a manipulação da opinião pública como forma de governo e colocam em risco toda uma população (pandemia) sob o pretexto do bem comum (economia x saúde), nem que para isso seja preciso criar a mentirosa figura de “um inimigo do povo” (?). É preciso desenhar?

Um Inimigo do Povo. Direção de José Fernando Peixoto de Azevedo. No Teatro Aliança Francesa, de quinta a sábado, às 20 horas; e aos domingos, às 18 horas, até 1º de maio. Ingressos a 40 reais.

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