Centrado no imaginário das rezadeiras, curandeiras e benzedeiras espalhadas pelo Brasil, Senhora das Folhas se comunica especialmente com a religiosidade africana, mas vai além disso. Se em 1976 a sambista Clara Nunes apregoava o Canto das Três Raças, hoje a não-sambista Áurea Martins desenvolve a mesma ideia num outro sentido, de um canto de (e para) todas as religiosidades, ancorado na matriz africana, mas mais amplo que ela.
Assim, por exemplo, a maravilhosa canção “Araruna” é uma composição da cearense Marlui Miranda e de Nahiri Asuniri, indígena da etnia Asuniri, interpretada no idioma dos Parakanã do Pará, ao lado do cantor André Gabeh (o primeiro participante negro e gay do Big Brother Brasil, em 2002). “Araruna” vem entremeada com o texto “Vô Madeira”, da poeta de origem Macuxi Julie Dorrico, sobre um “vô” “encantado” que “podia ser eterno, mas fez a travessia jovem” e “por vezes trocava de pele pra ver como andava o mundo/ às vezes vinha-se gente, outras de mangueira, algumas vezes perdida, de jaguatirica”. “O dinheiro é o veneno da alma”, conclui o vô-Áurea-Macuxi, antes de começar o canto para a arara-azul de “Araruna”. O “Ponto das Caboclas” da carioca Camila Costa vai em direção parecida, ofertando-se a Iracema, Jurema, Iara, Jussara, Jupira e Jandira.
A linda “Prece do Ó” reverencia o sincretismo brasileiro na figura do Santo Antônio do Categeró, africano que foi escravizado e levado à Itália, onde se tornou monge. O cantador violeiro mineiro Dércio Marques notou que a métrica da prece se encaixava na canção “Ausência”, do grupo galego Berrogüetto, e fez-se assim a mistura sincrética de africanidade, canção caipira brasileira, catolicismo e folk europeu. Outro fragmento sincrético acontece no clássico “Banho de Manjericão” (1979), dos cariocas João Nogueira e Paulo César Pinheiro, lançado ao sucesso na voz da mineira Clara Nunes. Depois de elencar uma série variada de mandingas, a letra acena ao cristianismo, talvez numa tentativa dos autores de harmonizar a desigualdade entre negros e brancos traduzida para a religião: “É com Vovó Mafria que tem simpatia pra corpo fechado/ é com Pai Benedito que benze os aflitos com um toque de mão/ e Pai Antônio cura desengano/ e tem a reza de São Cipriano/ e tem as ervas que abrem os caminhos pro cristão”. O candomblé e a umbanda não são explícitos no álbum, mas os orixás africanos marcam presença em “Sem Folhas Não Tem Orixás” (que cita Ossain e Ossainhê) e “Folha Miúda” (Oyá), por exemplo.
Idealizado e dirigido pela produtora Renata Grecco e produzido pelo violonista e violoncelista Lui Coimbra, Senhora das Folhas parece inspirado no mergulho multibrasileiro que Maria Bethânia vem fazendo na mesma Biscoito Fino que lança o álbum de Áurea, por exemplo pelos poemas enxertados nas canções e pela forte diversidade cultural, musical e humana. O repertório até contempla o formato de chamado e coro do partido alto, em “Na Paz de Deus” (assinada por Arlindo Cruz e Sombrinha e gravada em 1986 pela sambista torta maranhense Alcione), mas não se atém tampouco em amarras de gênero musical.
Esse prisma reflete a diversidade geográfica e geracional de Senhora das Folhas, nos enxertos de incelenças entoadas pelas Cantadeiras do Souza (nomeadas apenas Raimunda, Djanira, Aracy, Marli, Marlene e Ercy) e em músicas da paraibana Socorro Lira (“O Ramo”), dos baianos Roque Ferreira (“Folha Miúda” e “Menino do Samburá”) e Gerônimo (“Salve as Folhas”, mesclada com a tradicional “Sem Folhas Não Tem Orixás”) e até um tema de origem medieval (“Senhora Santana”). A amplidão do arco permite a presença de compositores jovens em duas das mais belas faixas do álbum, “A Rezadeira” (2011), do rapper paulistano Projota, e “Me Curar de Mim” (2015), da pernambucana Flaira Ferro.
Originalmente um rap, “A Rezadeira” pertence à tradição de canções como “Tiro de Misericórdia” (1977), de João Bosco e Aldir Blanc, e “O Meu Guri” (1981), de Chico Buarque, que pranteiam jovens marginalizados mortos cedo demais, pelas garras da violência e da desigualdade social. O narrador-observador descreve o momento em que uma mãe encontra o filho assassinado no asfalto, “quando eu vi sua mãe te dando a luz pela segunda vez”. Os versos intrincados em hip-hop são entoados pelo sambista mineiro-carioca Moyseis Marques, em jogo de engenhoso sincretismo musical, e Áurea se encarrega da bela melodia do refrão, que volta circular como um mantra, “deixa o menino jogar que é sexta-feira/ pra proteger é que existe a rezadeira”. A presença e a identidade femininas se erguem altivas, nessa e em outras canções de Senhora das Folhas, um disco feminino do início ao fim.
Embora Áurea Martins siga navegada pelo mar (como compuseram Paulinho da Viola e Hermínio Bello de Carvalho em “Timoneiro”, de 1996) e pelos produtores musicais (desta vez também uma produtora), sua fala se ergue aos 81 anos impregnada pelos versos potentes de autocompreensão de Flaira Ferro em “Me Curar de Mim“, uma canção não-religiosa (ateia, agnóstica etc.) que elege o próprio eu como deus (ou melhor, deusa): “Para me encher do que importa/ preciso me esvaziar/ minhas feras encarar/ me reconhecer hipócrita/ sou má, sou mentirosa/ vaidosa e invejosa/ sou mesquinha, grão de areia/ boba e preconceituosa/ sou carente, amostrada/ dou sorrisos, sou corrupta/ malandra, fofoqueira/ moralista, interesseira/ e dói, dói, dói me expor assim/ dói, dói, dói despir-me assim/ mas se eu não tiver coragem/ pra enfrentar os meus defeitos/ de que forma, de que jeito/ eu vou me curar de mim?”. Mais que um álbum num tempo sem álbuns, Senhora das Folhas é uma síntese flamejante.
Senhora das Flores. De Áurea Martins. Biscoito Fino/Natura Musical.
Leia aqui entrevista com Áurea Martins.