Áurea Martins, não-sambista por pirraça

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Áurea Martins - foto Sergio Caddah
Áurea Martins - foto Sergio Caddah

Senhora das Folhas é o primeiro álbum devotado à ancestralidade africana na carreira musical da cantora carioca Áurea Martins, atualmente com 81 anos. Nascida em Campo Grande, na zona oeste do Rio de Janeiro, Áurea se afeiçoou mais aos modos do samba-canção e da bossa nova quando trabalhava como crooner na zona sul carioca, em casas noturnas como Number One, 706, Mistura Fina e Drink (na qual dividiu ofício com Djavan, então recém-chegado de Alagoas). Temporã em relação a seus contemporâneos da chamada MPB, ganhou visibilidade primeiro em 1969, ao vencer o programa televisivo de novos talentos musicais A Grande Chance, do apresentador Flávio Cavalcanti, com Maysa Bibi Ferreira no corpo de jurados.

O primeiro LP, O Amor em Paz (1972), privilegiou a bossa de Baden PowellTom JobimMarcos Valle Edu Lobo, foi produzido por Rildo Hora antes de ele se consagrar como produtor de samba e contou com arranjos e piano de Luiz Eça, o inventor, dez anos antes, da bossa à moda do Tamba TrioO Amor em Paz permaneceu filho único por três décadas, até que Áurea pudesse ver seu nome assinado outra vez na capa de um álbum, em 2003, quando lançou um primeiro CD independente. Nesse longo intervalo, ela seguiu se apresentando como crooner na noite (ao lado de colegas como Djavan, AlcioneEmílio Santiago Carlos Dafé), o que, para seu orgulho, sempre garantiu-lhe a sobrevivência. “Nunca me faltou saúde nem trabalho”, afirma.

Especialista nesse ofício, Hermínio Bello de Carvalho jogou luz sobre a cantora em 2008, ao produzir o álbum Até Sangrar, pela gravadora carioca Biscoito Fino, a mesma que lança agora Senhora das Folhas, com patrocínio da Natura Musical. Como diz Áurea, ela estaria cantando até hoje em bares se não fosse a intervenção de Hermínio, o mesmo que revelou Clementina de Jesus para o mercado do samba aos 62 anos, em 1963. Áurea se aproximava dos 60 quando Hermínio orientou um disco de samba-bossa-canção dividido sem hierarquias entre autores como Ary BarrosoLupicinio Rodrigues, Tom Jobim, João DonatoCarlos LyraChico BuarqueHerbert Vianna Paula Toller

“Saí fora da linha de samba por pirraça”, ela define as dificuldades para se firmar na música como artista preta sem atender a determinados pré-requisitos. Seus paradigmas para insistir e resistir foram Alaíde Costa Johnny Alf, artífices de um gênero que não floresceu como a bossa da zona sul e que poderia se chamar bossa negra, como propôs Elza Soares em 1960. Além desses, mirou-se ainda nas precursoras mestiças  da bossa Dolores Duran Elizeth Cardoso, essa última apelidada por Joyce Moreno, não sem alguma ironia, de “Faxineira das Canções” (em 1976).

A luta renhida por desacatar dogmas e estereótipos talvez explique em parte a demora de Áurea em abraçar os ritos da ancestralidade africana e os muitos anos de hiato fonográfico, o que ela admite sem se eximir de responsabilidades: “Eu tive um pouco de culpa, porque me acomodei. Não quis brincar. Deixei rolar”. Devotado a homenagear rezadeiras, curandeiras e benzedeiras, Senhora das Folhas foi idealizado e dirigido pela produtora Renata Grecco e produzido pelo violonista e violoncelista Lui Coimbra. Evoca em Áurea sua ancestralidade africana, mas não se limita a ela. Como escreve Renata Grecco no encarte do álbum, o repertório reflete o amor musical que “corre em segredo pelos veios da terra, no ventre das folhas” e “pela cultura e manifestações tradicionais do Brasil, nossa exuberante mistura de credos afro-indígena-católico-ibérica-orixá-pajé”.

Ela própria uma rebeldes meio às muitas religiões, Áurea se revela devota da Igreja Messiânica, de origem japonesa. “Hoje sou messiânica, o que não me obriga a nada, só quando estou a fim”, explica. “A religião é minha ligação com o universo, por que tem que obrigar? Gosto da igreja porque tenho amigos ali, mas não sou fanática, não.” Leia abaixo sua entrevista a FAROFAFÁ e mais sobre o potente Senhora das Folhas aqui.

Pedro Alexandre Sanches: Senhora das Folhas é um disco religioso?

Áurea Martins: Encaro esse disco como um presente de mim para meus ancestrais. Não sou de religião afro, sou messiânica. Mas tenho meus ancestrais, que são fortes na parte religiosa. E aí foi um encontro.

PAS: Os orixás são citados poucas vezes, mas eles estão nessas músicas, não?

"Quase 50" (2021), de Áurea Martins e João Senise
“Quase 50” (2021)

AM: Inclusive a minha voz está diferente. É uma voz ancestral. Acabei de fazer um disco também com [o arranjadorGilson Peranzzetta [Quase 50, de 2021, dividido com o cantor João Senise, quase 50 anos mais jovem que ela], de bossa nova e jazz. Ali minha voz é outra coisa. Neste novo eu me vejo como se fosse uma matriarca baiana. E nem conheço, nem sei como é a Bahia. Então me senti como se fosse uma dessas mulheres dessa matriz. Tomou conta.

PAS: De onde surgiu a ideia de fazer um trabalho inteiro para as rezadeiras, curandeiras e benzedeiras?

AM: A ideia surgiu da Renata Grecco, e foi um adiantado da Natura. Apresentaram esse projeto e a Natura escolheu.

PAS: E você achou que tinha a ver com você?

AM: No princípio eu me assustei, sabia? Ainda mais que eu estava vindo de um disco de bossa nova e jazz. Mas será que sou isso? Aí comecei a me envolver com a música, com as canções, e comecei a descobrir outra Áurea, uma Áurea que existia e eu não sabia.

PAS: Ele é muito diferente dos outros discos que você fez até hoje.

AM: Bastante diferente, estou sentindo isso. Eu adoro os outros, mas esse tem uma conotação diferente.

PAS: Entre os compositores há gente jovem, como Projota Flaira Ferro. Como chegou a essa configuração?

AM: Isso também foi dado pela Renata Grecco. Foram ela e Lui Coimbra, que foi o produtor musical, que me apresentaram. Engraçado, na hora eu achei que não ia saber cantar “A Rezadeira” [composta por Projota], porque é muito difícil, muito complicada, sinuosa. E foi [o cantor e compositor de sambaMoyseis Marques que arrasou, né?

PAS: Você ficou só com o refrão.

AM: Fiquei com o refrão.

PAS: E a letra incrível da música da Flaira?

AM: Ela até ligou para mim, aquela música é uma reflexão sobre o que você tem que curar em você.

PAS: Por que até certo momento você gravou tão poucos discos? Tinha a ver com o fato de você ser mulher, preta, não cantar samba sendo preta?

AM: É, o protótipo da cantora negra é cantar samba. É legal, eu adoro samba, mas a minha referência era Alaíde Costa. Ela é a mais refinada – não é que o samba não seja refinado, mas eu me inspirava na escolha de repertório da Alaíde Costa e de outra pessoa, Johnny Alf. O próprio Tom Jobim fala isso, ele ia assistir ao Johnny Alf. Alaíde e Johnny eram pessoas negras e músicos, Alaíde também toca. E eu saí fora da linha de samba por pirraça. Eu ia ser mais uma sambista? Tem Elza Soares, Eliana Pittman, são duas tremendas intérpretes de tudo, haja vista Elza no fim da vida.

PAS: Ela cantou o que bem quis…

AM: Eliana é uma tremenda intérprete. Outro dia falei isso para ela, ela disse: “Você presta atenção em mim?”. Claro que presto. A gente tem que olhar muito adiante.

PAS: Alaíde e Johnny são a bossa negra, digamos, assim como você.

AM: Moacir Santos também.

PAS: Essa foi uma vertente que não teve a oportunidade de se desenvolver como merecia?

AM: No meu caso foi por eu ser crooner, cantora da noite. Existia um preconceito muito grande, inclusive com Emílio SantiagoDjavan foi crooner também, comigo, tenho uma foto aqui, ficávamos os dois na porta da boate.

PAS: Você cantou em lugares históricos como Drink, Number One. Como foi sua experiência neles?

AM: A primeira experiência foi num dancing. A gente cantava e as garotas ganhavam dinheiro dançando com os clientes. Ali eu vi passar Agostinho dos SantosAracy de AlmeidaCauby Peixoto. Eles iam fazer show, e eu era crooner. Para mim foi uma escola. Na noite eu cantei com os maiores músicos do Brasil. Engoli muita fumaça de cigarro, e nunca fumei um cigarro. Às vezes a boate era do tamanho da minha sala, e o pessoal fumando. Estou viva porque nunca bebi, não conheço bebida, e nunca fumei.

PAS: Quem era seu público, nos dancings e nas boates? Quem ouvia você cantar?

AM: Olha, nas boates até Tony BennettSarah Vaughan e Stevie Wonder foram. Burt Bacharach, eu cantei com ele. E nos dancings era um público mais velho, mais conservador, que ia para namorar as garotas.

PAS: Nas boates era a turma da bossa nova? Você chegou a ir para o Beco das Garrafas?

AM: O Beco das Garrafas eu não peguei porque morava no subúrbio. Você tinha que pegar trem de madrugada.

PAS: Mas era só por esse motivo? Existia também um preconceito contra a bossa nova cantada por negros ou por quem não fosse da zona sul, não?

AM: Sim. Eu forcei uma barra, aprendi e cantava. Um dia chegou um músico negro norte-americano e disse: “É a primeira vez que estou vendo uma preta cantar bossa nova”. E a coisa mais fácil que existe é cantar bossa nova. É fluente. Acho mais difícil cantar samba.

PAS: Você consegue explicar por sua origem familiar por que tinha mais afinidade com a bossa?

AM: A minha família é muito misturada, tem tudo. Tem negro, índio, português e espanhol. Eu sou das mais pretas. Minha família tem gente que tem sarda, é uma coisa muito estranha. A parte da África ficou com a Áurea, graças a Deus. Sou muito África. Mas levei para a zona sul a cultura do samba. Trabalhei numa casa chamada 706, e levei para lá o partido alto, tem disco com isso gravado.

PAS: Que disco é esse?

"Uma Noite no 706" (1977)

AM: Uma Noite no 706 [Áurea busca o vinil datado de 1977 para mostrar; a capa não tem créditos de intérpretes e expõe em letras grandes a frase “a música alegre, dançante e bem brasileira da mais famosa casa noturna do Rio gravada ao vivo e aqui apresentada sem faixas ou interrupções”; o lado A é atribuído a Eduardo e Seu Conjunto e o B, a Fernando e Seu Conjunto, com o nome de Áurea constando como intérprete de alhumas faixas, como “Vai Levando”, de Chico Buarque e Caetano Veloso, “Te Segura”, de Nei Lopes Wilson Moreira, e “Recordação de um Batuqueiro”, de Xangô da Mangueira, entre outras]. Foi gravado ao vivo. Nessa casa eu conheci Djavan e Emílio Santiago.

PAS: E é um disco de partido alto?

AM: Não é só de partido alto, mas eu cantava partido alto aí. Como eu cantava bem partido alto, captaram. Já é um prenúncio da ancestralidade, né?

PAS: O que chegou primeiro para você, o samba-canção ou a bossa nova?

AM: O samba-canção. Eu amo Jamelão. Fiz um show de Jamelão há pouco tempo, com Ana Costa. Em 1969 participei de um programa chamado A Grande Chance, com Flávio Cavalcanti, mas comecei antes, lá no subúrbio, com os meus tios, pelo samba, pelo partido alto. Frequentava um clube de jazz. Sou muito atenta, fico ligada a tudo.

PAS: Seu primeiro disco [O Amor em Paz, de 1972] era de bossa nova, com arranjos de Luiz Eça. Depois você passou 30 anos sem conseguir se expressar num álbum assinado com seu nome. Por quê?

"Áurea Martins" (2003)
“Áurea Martins” (2003)

AM: O outro foi Áurea Martins [de 2003], bancado pela [escritora, ambientalista e eventual compositoraDalva Lazzaroni, com arranjos de João de Aquino. Eu tive um pouco de culpa, porque me acomodei. Não quis brincar. Deixei rolar. Até que Hermínio Bello de Carvalho me tirou do limbo.

PAS: Foi esse o impulso para você voltar a gravar?

AM: Foi o Hermínio.

PAS: Aí você se animou, porque não parou mais.

AM: Pois é, fiz mais seis CDs. No ano passado saiu um disco com João Senise, com arranjos de Gilson Peranzzetta. E estava fazendo um disco com Cristóvão Bastos. Depois de Senhora das Flores, quando passar, vou acabar ele. Tem muita coisa gravada já. Eu tive pneumonia, fiquei muito mal, há dois anos. Ele fica triste, mas uma hora a gente acaba, tudo na hora certa.

PAS: Qual é o seu lugar na música popular brasileira?

AM: O meu lugar é um lugar de intérprete. É como se eu fosse uma operária, como diz a Joyce numa canção gravada pela Elizeth Cardoso, “Faxineira das Canções” [1986]. Ponho minha voz a serviço da música popular brasileira, desde que ela tenha qualidade.

PAS: Elizeth é uma referência sua, que também era sua fã…

AM: Ela era minha madrinha musical. Maysa também me amadrinhou, no programa A Grande Chance. E a Zezé Gonzaga, as três. Maysa era júri da Grande Chance. Eu soube, depois de ter tirado primeiro lugar, que ela brigou por minha causa. E ela me vestia. Levei um bilhete e entreguei na mão do Jayme Monjardim [filho de Maysa], agradecendo ele pela mãe, que cuidou de mim. Ficou com o olho cheio d’água. Para eu chegar a Senhora das Folhas, fui indo, até que encontrei essa Áurea que está aí agora.

PAS: Você gravou “Janelas Abertas” [de Tom Jobim e Vinicius de Moraes] por influência direta da versão de Elizeth?

AM: Da Elizeth, do disco Canção do Amor Demais [1958]. Gravei para o filme Áurea [curta-metragem filmado em 2009 por Zeca Ferreira, reproduzido acima].

"Olhando o Céu, Viu uma Estrela" (2019), de Áurea Martins e Gonzaga Leal
“Olhando o Céu, Viu uma Estrela” (2019)

PAS: E o álbum com repertório da Dalva de Oliveira [Olhando o Céu, Viu uma Estrela, 2019, dividido com Gonzaga Leal], é a influência do samba-canção?

AM: Isso. Eu sempre fui uma cantora de samba-canção. De repente me descobri cantando samba. De repente me descobri cantando baião. Aí perguntei: o que eu sou afinal? Eu sou uma cantora.

PAS: Quando você cantou baião?

AM: Muito tempo, nos bailes. Cantei muito forró, ninguém imagina (ri), né?

PAS: E a bossa nova, como entrou na sua vida?

AM: A bossa nova foi nas boates da zona sul.

PAS: Você ouviu o Canção do Amor Demais da Elizeth quando saiu?

AM: Sim, eu adorava.

PAS: Tinha o João Gilberto ali, você chegou a conviver com ele?

AM: É, tinha o violão dele. Eu nunca vi o João Gilberto. Ah, vi, sim, sabe como? Saí de uma casa noturna e fui no Chico’s Bar, onde Johnny Alf estava tocando piano, e João Gilberto estava ouvindo. Foi assim. Era ele.

PAS: Com Johnny você conviveu bastante?

AM: Convivi, Johnny morou na minha casa.

PAS: E Elizeth, como você conheceu pessoalmente?

AM: Foi no salão de cabeleireiros. Dali para cá a gente ficou amigas. Ela me levou na casa dela para tomar lanche, eu era magra, tinha 47 quilos, bem nova, hoje em dia tenho esse corpo [ri]. Elizeth, mesmo doente, saía de casa para me ouvir. Poxa, eu, uma cantora da noite, ela dava até canja comigo. Outra que quando chegou no Rio foi me ver foi Zélia Duncan. A gente é amiga há muito tempo.

PAS: É verdade que você estudou canto gregoriano?

AM: Foi, eu cantei, na igreja, porque mamãe era católica, e eu ia para lá. Estudava latim [canta um trecho], lembro até hoje.

PAS: Então sua família era católica?

AM: Era.

PAS: Isso afastou você da matriz africana?

AM: É, não tinha nada da África, tinha coisa católica. Mas meu pai detestava padre [gargalha]. Eu não posso falar. Mamãe era uma beata da igreja, se eu não fosse à missa não ia ao cinema. Olha que ditadura. Sabe o que eu fazia? Pulava janela, dizia: não, eu vou ao cinema, o quê? Sempre fui revolucionária com esse negócio.

PAS: Então você não era muito a fim de ir na missa?

AM: Não. Detestava. Fingia que desmaiava. Até hoje não consigo.

PAS: Você não gosta de nenhuma religião?

AM: Hoje sou messiânica, o que não me obriga a nada, só quando estou a fim. A religião é minha ligação com o universo, por que tem que obrigar? Gosto da igreja porque tenho amigos ali, mas não sou fanática, não.

PAS: Então Senhora das Folhas está fazendo você se encontrar com a religiosidade africana?

AM: É, isso aí é uma coisa que chamou, uma coisa misteriosa. Faltava isso.

PAS: E tem canto indígena também no álbum…

AM: Aquilo é muito lindo, né? Uma amiga minha estava aqui, ela chorou tanto. Eles são os donos da terra. Quando falo aquele texto, eu vejo o que acontece ali, e falo aquele texto pensando na Fernanda Montenegro, até imito um pouquinho ela. É minha inspiração, ela e Bibi Ferreira… Bibi Ferreira foi júri para mim, tenho a maior honra. Eu tinha 27 anos e cantava Dolores Duran.

PAS: Dolores foi das poucas compositoras mulheres nos anos 1950. Você nunca se arriscou a compor?

AM: Não, nunca, nem aprendi instrumento nenhum. Cheguei a sentar num piano porque fui casada com um regente, e em casa tinha dois pianos. Cheguei a sentar no piano, mas queria sair tocando Oscar Peterson. Comecei a ficar ansiosa. É difícil.

PAS: Por falar em Oscar Peterson, qual foi e é a importância do jazz para você?

AM: As grandes damas do jazz estão presentes, até neste disco ancestral.

PAS: A letra de “Banho de Manjericão” [faixa que encerra o novo álbum, de João NogueiraPaulo César Prinheiro, lançada originalmente em 1979, por Clara Nunes] fala um monte de mandingas, mas diz que as ervas “abrem caminho pro cristão”. Senhora das Folhas une religiosidades africanas, indígenas e europeias.

AM: O Brasil é um pouco assim, né? A minha família também. Meu pai era policial portuário de Campos, morreu com 47 anos. Minha mãe era de Friburgo, dona de casa.

PAS: Como uma mulher preta conseguiu, nos anos 1960, ir por um caminho que não era o mais comum?

AM: Eu sempre fui revolucionária, sempre leio muito. Nunca fui boa nas funções de dona de casa, não. Mas tive que brigar muito, viu? A primeira atitude que tive foi horrível. Cheguei de noite da boate, estava trabalhando, minha mãe pegou um cabo de vassoura para me dar, falei: se tu vier, tu também vai apanhar. Ela ficou assustada, isso não é jeito de falar com mãe, né? Falei: eu tenho que seguir minha cabeça. Depois ela ficou feliz com o que fiz, porque com a minha profissão cuidei minha mãe até o fim. E ela me pediu perdão, disse que se eu não tivesse seguido minhas intuições estaria como meu irmão, que tem um talento incrível e está lá em Campo Grande parado, cheio de complexo.

PAS: Então voce sobreviveu da profissão de cantora o tempo todo?

AM: O tempo todo. Nunca me faltou saúde nem trabalho.

PAS: Hoje em dia as meninas pretas cantam o que quiserem, inclusive as meninas trans. Você vê progresso nosso nesse sentido?

AM: Estou vendo um progresso, sim. Antigamente não se ouviam vozes trans. Estamos evoluindo, apesar das pessoas preconceituosos.

PAS: Sua presença maior nos últimos anos também tem a ver com isso?

AM: Tem. A pessoa preta não pode recuar, tem que continuar, tem que ser resistência. Eu ia parar com 50 anos. Quando senti o peso do preconceito, falei: agora não vou parar, não.

PAS: Como sentiu esse peso?

AM: Por exemplo, para lugares onde cantoras brancas iam eu nunca era chamada. Mas Alaíde Costa era uma referência para mim, e não tem pessoa mais clássica que ela cantando e em termos de refinamento. E ela conseguiu, conseguiu fazer o mundo dela. É difícil, complicado. Muita gente da bossa nova que torceu para mim agora está assim, ó. Mas deixa eu com a Senhora das Folhas que eu estou bem. Esse disco é um diploma, um troféu. Já dei depoimento para o Museu da Imagem e do Som.

PAS: Hermínio Bello de Carvalho revelou tardiamente a Clementina de Jesus, que cantava samba. Qual foi a importância dele para você?

AM: Ele ia nos bares na Lapa, ou então numa casa noturna, e eu estava cantando. E ele ficava me olhando, achava que eu parecia cantora de blues, pelo timbre. Até que um dia ele disse: “Vou fazer um disco com você”. E fez Até Sangrar [2008].

"De Ponta Cabeça" (2010)
“De Ponta Cabeça” (2010)

PAS: O disco só com músicas dele [De Ponta Cabeça, 2010] foi uma retribuição?

AM: Foi.

PAS: Além da Alaíde, Elizeth e Dolores também eram cantoras negras, ou no mínimo mestiças. A referência delas também inspirou você a ir além do samba?

AM: Eram. Aqui no Brasil preto é só quando é assim, como eu. Não. O mulato não se assume. Esse lance étnico aqui no Brasil é muito confuso.

PAS: E ficou sempre escondido, só agora o Brasil começa a discutir. Você gosta de falar sobre isso, sobre racismo?

PAS: Eu gosto. Não é só sobre racismo, é sobre qualquer tipo de preconceito. Qualquer tipo de preconceito é horrível, terrível. Tenho uma amiga que é deficiente visual, é minha melhor amiga. Saímos juntas, uma preta e uma cega. Ela é cantora, uma tremenda cantora, frequentou a noite. É atriz também.

PAS: Como é o nome dela?

AM: Virgínia Menezes.

PAS: Você já fez discos exatamente como queria que fossem, sem intervenção de produtores?

AM: Olha, eu adoro me deixar levar, me deixar produzir. Acho que os produtores fazem exatamente o que estou pensando. O primeiro [O Amor em Paz] foi da minha cabeça.

Leia crítica de Senhora das Folhas aqui.

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