POESIA CONTRA A ESTUPIDEZ
Por Ademir Assunção
Tijuana, cidade mexicana, na fronteira com os Estados Unidos da América: um gigantesco muro de aço a separa de San Diego, no lado norte-americano (qualquer semelhança com o antigo muro de Berlim é mera coincidência?). De um lado, a opulência do maior império do planeta. Do outro, um aglomerado de quase 2 milhões de habitantes, marcado pela desigualdade social e econômica dos grandes centros urbanos capitalistas. Ali o paradoxo tem a concretude do muro: o parque industrial de grandes empresas transnacionais fatura milhões de dólares utilizando-se da mão de obra baratíssima da cidade, que vive sob a tensão do pesado narcotráfico, dos constantes assassinatos provocados por conflitos entre máfias, e da corrupção política. Calcula-se que 40% da população mora em barracos muito parecidos com os das favelas brasileiras. Nas ruas há milhares de pedintes, viciados em heroína, prostitutas, sem-teto, em parte imigrantes de vários países da América Latina que tentam atravessar a fronteira e são barrados pelos policiais norte-americanos.
É deste lugar de contrastes que vem uma das vigorosas vozes da poesia mexicana contemporânea, o poeta Heriberto Yépez.
Atualmente professor da Universidad Autónoma de Baja California, Yépez chamou a atenção já com seu primeiro livro: Por una Poética antes del Paleolítico y después de la Propaganda (Grupo Editorial Anortecer), lançado em 2000, aos 26 anos de idade. Nas décadas seguintes, firmou-se também como tradutor, escritor e ensaísta.
Os poemas e o manifesto homônimo radicalizam, em alguns sentidos, pressupostos e procedimentos das últimas vanguardas latino-americanas, inclusive brasileiras, ao mesmo tempo que recuperam “poéticas” ancestrais dos povos originários, buscando a força, a vitalidade e a magia da oralidade. Em vez de fechar, o poeta mexicano abre um leque de referências que vai de Gertrude Stein a Artaud, de Khlebnikov à Bukowski, de Heidegger à Borges, de Chuang Tse às poéticas das etnias kumiais, killiwas, cochimies, pai-pai. Não à toa tornou-se um dos tradutores mexicanos do norte-americano Jerome Rothenberg, que há mais de cinquenta anos realiza um colossal inventário das “etnopoéticas” de todo o planeta, ampliando o repertório da chamada poesia “culta”, centrado em alguns países da Europa, do Oriente (especialmente China e Japão) e dos Estados Unidos.
Com versos secos, cortes bruscos, fusões narrativas e inesperadas soluções de continuidade (que às vezes lembram os poemas cinematográficos de Oswald de Andrade, porém com sabor mais contemporâneo), Yépez constrói polaroides da sufocante realidade dos deserdados, numa profusão de imagens duras, tematizadas por prostitutas, traficantes e viciados em heroína, índios sem-terra e sem deuses, bêbados, vagando pelas ruas, aleijados pedindo moedas aos turistas, imigrantes barrados na fronteira, desempregados, loucos e desesperados. Em seu primeiro livro, incorporava também uma série de fotografias de objetos poéticos que espalhou pela cidade de Tijuana em placas de acrílico, verdadeiros ready-mades ao contrário, subtraídos dos salões da poesia e levados para as ruas, com um sentido de interferência verbal na realidade miserável.
No manifesto Por una Poética antes del Paleolítico y Después de la Propaganda o poeta estabelece as linhas subterrâneas que norteiam sua prática poética. Com uma contundência feroz, propõe derrubar definitivamente a ideia de “literatura” e conclama os poetas a assimilarem a magia, a inquietação, a vivacidade da vertigem oral praticada pelos antigos, capaz de elevar a consciência e mergulhar em novas formas de conhecimento. Quer que a linguagem recupere a energia corporal (como a dança) e ocupe os espaços públicos, como em suas origens, quando era entoada em praças ou em volta de fogueiras, no meio das selvas. “A origem da linguagem está depositada nas palavras, mas também na carne do cervo e nos cogumelos alucinógenos”, escreve.
Nas traduções deste conjunto de poemas e de fragmentos do manifesto, procurei manter-me fiel ao texto e ao contexto originais, porém, tomando algumas liberdades de inserção de termos, gírias e ambientes urbanos familiares ao leitor brasileiro.
Para não aborrecer o leitor com excessivas notas de rodapé, lancei mão de informações esclarecedoras somente quando estritamente necessárias.
Um total de dez poemas traduzidos e 36 fragmentos do manifesto compõem a plaquete Antes do Paleolítico Depois da Propaganda, recém-lançada pela Galileu Edições (Londrina/PR), com primeira edição reduzidíssima de apenas 30 exemplares. Interessados podem entrar em contato diretamente com o editor pelo email: galileuedicoes@gmail.com
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A PORTA DE MADEIRA DO SUICÍDIO
Vendi um só quadro em vida.
Há poucos dias um de meus retratos
foi vendido por oitenta milhões de dólares.
Não sei quantas batatas poderia comprar
com essa grana, quantos aluguéis de
espeluncas poderia pagar com essa grana.
Ignoro a dimensão humana dos dólares.
Me dói a cabeça de pensar em tudo isso.
As máfias internacionais do dinheiro
me falsificam no mercado negro.
Meus compradores póstumos trancam
meus quadros nos cofres de um banco em Tóquio.
Nessa cela escura eles também arranham
a porta de madeira do suicídio.
Extraviaram minha salvação e a trocaram
por uma senha obscena nos leilões.
Quem dá mais, dou-lhe uma, dou-lhe duas
chega de choques e cheques.
Imagino que a usura ainda seja
o princípio propulsor da marcha das coisas.
Não sei como chegar a Tóquio
não sei aonde estão meus restos.
Sou um espírito errante na envelhecida
vacuidade da Europa.
Me dói a cabeça e há três dias
devorei minhas orelhas.
Em alguma parte do mundo
sou transportado a um novo manicômio
onde sou exposto
ante os mesmos carniceiros que me
suicidaram
(como disse um camarada de tormento
nos autos do inquérito)
me levam novamente
ao manicômio de paredes brancas
silêncio compulsório
guardas
alarmes e câmaras
que escrutinam as implicações
econômicas do olhar.
Recrutam críticos de arte para explicar
minha consciência e elevar meu preço.
Me levam novamente
ao manicômio de paredes brancas
entre medidas de segurança
desnecessárias
pois realmente não saberia como
escapar daquilo que me fizeram.
LA PUERTA DE MADERA DEL SUICIDIO
Vendi un solo cuadro en mi vida.
Hace unos dias uno de mis retratos
se vendió en ochenta millones de dólares.
No sé cuantas papas se pueden comprar
con esa cifra, cuantas rentas de cuartos
trémulos se puedan pagar con esa cifra.
Ignoro la dimensión humana de los dólares.
Me duele la cabeza de pensar en todo esto.
Me falsifican en el mercado negro
las bandas internacionales del dinero.
Mis compradores póstumos guardan
mis cuadros en bóvedas de un banco en Tokio.
En esa vigilancia oscura ellos tambiém razonan
la puerta de madera del suicidio.
Transpapelaron mi salvación y la trocaron
por una seña obscena en las subastas.
Quién da más a la una, as las dos
basta de batas y subastas.
Imagino que sigue siendo la usura
el principio impulsor de la marcha de las cosas.
No sé cómo llegar a Tokio
no sé dónde están mi restos.
Soy un espiritu errante en la envejecida
vacuidad de Europa.
Me duele la cabeza y hace tres dias terminé
de devorar mis orejas.
En alguna parte del mundo
soy transportado a un nuevo manicomio
donde soy expuesto
ante los mismos miembros que me
suicidaron
(como dijo un camarada de tormento
en las acatas levantadas)
me transportan de nuevo
al manicomio de paredes blancas
obligado silencio
guardias
alarmas y cámaras
que escrutan las implicaciones
económicas de la mirada.
Han elaborado expertos para explicar
mi consciencia, elevar mi precio.
Me transportan de nuevo
al manicomio de paredes blancas
entre medidas de seguridad
innecesarias
pues realmente no sabria cómo
escapar de lo que me han hecho.
VIOLENTAM UMA GAROTA
com uma vassoura
e a deixam sem roupa e sem pele
para untar-se com o creme ponds
que acabara de comprar no
supermercado do Estado
arrombada
em um beco que já viu de tudo
menos isso
uma mulher pelada
ou melhor
esfolada
violentada até pelos olhos
com as unhas arrebentadas
como janelas de um trailler
capotado na freeway
o beco já viu de tudo
menos isso
o que resta de uma mulher
com os lábios negros
todavia pensando
aonde terá caído
o batom
que há pouco
comprara
no Barateiro
VIOLAN A UNA MUCHACHA
con un escoba
y la dejan sin ropa e sin cutis
para untarse la crema ponds
que acaba de comprar en el
supermercado del Estado
arrumbada
en un callejón que ha visto todo
menos eso
una mujer encuerada
o mejor dicho
despellejada
violada hasta por los ojos
con las uñas estrelladas
como ventanillas de trailer
volteado en el freeway
el callejón ha visto todo
menos esto
lo que queda de una mujer
con los labios negros
todavia pensando
dónde habrá quedado
el lápiz labial
que hace rato
compró
en Issstetiendas
ATÉ ENTÃO
etnógrafos
mestiços
pensavam que
os índios kumiai
eram pragmáticos
antimetafísicos
e não tinham lugar
em suas vidas
para divindades
ou conceitos
“abstratos”
pois nunca
haviam dito palavra
de suas crenças
até que os brancos
anunciaram seus planos
de instalar
uma repetidora
de televisão
no Pico Tecate
chamado Kuchamá
pelos índios kumiai
só então o Kuseiai
(xamã que em si
sintoniza os deuses)
explicou que aquela colina
era sagrada
e para convencer
os empresários
revelou-lhes a estrutura
do mundo,
a paz
entre os índios e o uso
correto do toloache
deixou-os subir no Pico
em uma expedição
que terminou
por convencer os senhores
a instalar a repetidora
de televisão
em uma colina vizinha
mais alta,
que afortunadamente
não tinha nada de sagrado
e para corresponder
a atenção do sábio
meses depois prepararam uma visita
às novas instalações
e explicaram
o que nunca antes
disseram a um índio
o mundo das ondas,
o sucesso de audiência e o manejo adequado
das câmaras
e como também aquela colina passaria
a ser um lugar
restrito
o kumiai
pensou
que depois de tudo
os brancos
não eram tão maus
pois ainda que não tivessem
deuses
tinham antenas
às quais veneram
mais do que os índios
veneram seus deuses
HASTA ENTONCES
etnógrafos
mestizos
pensaban que
los indios kumiai
eran prácticos
antimetafísicos
e no tenían lugar
en sua vida
para las deidades
o los conceptos
“abstractos”
pues nunca
habian dicho palabra
de sus creencias
hasta que los blancos
anunciaron sus planes
para colocar
una repetidora
de televisión
el el Pico Tecate
llamado Kuchamá
por los indios kumiai
sólo entonces el Kuseiai
(chamán en el que se
sintonizan los dioses)
explicó que ese cerro
era sagrado
y para convencer
a los empresarios
les reveló la estructura
del mundo,
la paz
entre los indios y el uso
correcto del toloache
los dejó subir al Pico
en una expedición
que terminó
por convencer a los señores
de instalar su repetidora
de televisión
en un cerro aledaño
más alto,
que afortunadamente
no tenia nada de sagrado
y para corresponder
a las atenciones del sabio
meses después prepararon un tour
por sus nuevas instalaciones
y le explicaron
lo que nunca antes
habían dicho a un indio
el mundo de las ondas,
la competencia por el rating y el manejo adecuado
de las cámaras
y cómo también ese cerro iba
a ser un lugar
restringido
el kumiai
pensó
que después de todo
los blancos
no eran tan malos
pues aunque no tenían
dioces
tenían antenas
a las que veneran
más de lo que los indios
veneram a sus dioces
CAL
Cal sobre os sepulcros do cemitério municipal, sobre os escritórios
e as cartas
cal sobre os não-nascidos
mas não sobre os mortos
nada para os mortos nada
cal sobre os requerimentos e as primaveras
sem tormentas,
cal sobre as passagens de trem e os poemas,
cal sobre a décima estação e sobre a central de eletricidade,
água, gás, telefone,
cal sobre os templos mórmons
e sobre os refúgios antinucleares da Califórnia,
sobre a papelada para obter asilo,
cal sobre as calcinhas nas estantes,
cal sobre as fotografias nas ruas de Tijuana,
cal sobre os corpos,
cal sobre vaginas, principalmente
recém-nascidos
recebidos com uma pá de
cal sobre a cara,
cal encima dos vivos,
cal sobre o dia,
não orvalho, hurras, abraços,
arroz ou adeuses
cal sobre as bochechas da noiva,
sobre a erva e as lavanderias
o comércio e as nuvens perdidas
(acima o vazio esvazia
todas as palavras),
cal sobre a milícia e a embaixada,
cal sobre os quartos de hotel
e sobre a nuca da mulata detida
e violentada pelos cinco seguranças
da fábrica,
cal sobre as pétalas do tempo
cai a cal de súbito e as madrugadas
são inseticidas que murcham
aquilo que abraçam
abrem-se as colinas e os edifícios
que as encobrem
deixam ver o céu
cal
caindo
cal
caindo
cal
CAL
Cal sobre los sepulcros del panteón municipal, las oficinas
y las cartas,
cal sobre los nonatos,
pero no sobre los muertos
nada para los muertos nada
cal sobre las solicitudes y las primaveras
sin ventisca,
cal sobre los boletos de tren e los poemas,
cal sobre la décima estación e la central de electricidad,
agua, gas, teléfono,
cal sobre los templos mormones
y los refugios antinucleares de California,
sobre los requisitos para obtener asilo,
cal sobre la lenceria en los estantes,
sobre los retratos en las calles de Tijuana,
cal sobre los cuerpos,
cal sobre vaginas, especificamente
recién nacidos
recibidos con una palada de
cal sobre la cara,
cal encima de los vivos,
cal sobre el dia,
no rocío, albricias, abrazos,
arroz o adioses
cal sobre la mejillas de la novia,
sobre la yerba e las limpiadurias,
el comercio y las nubes perdidas
(arriba la deriva derriba
todas las palabras),
cal sobre la milicia y la embajada,
cal sobre los cuartos de hotel
y el cuello de la mulata arrestada
y violada por los cinco guardias
de la fábrica,
cal sobre los pétalos del tiempo,
cae la cal de golpe y las madrugadas
son insecticidas que marchitan
lo que abrazan
se abren los cerros y los edificios
que los cubren
dejan ver el cielo
cal
cayendo
cal
cayendo
cal
JOÃO DA SILVA, JOÃO NINGUÉM, JOÃO TODOS
a José Vicente Anaya
Vidente e vivente
em uma caverna escarpada
nas praias de Tijuana
banhando-se às cinco da manhã
na gelidez apriorística da água
o mar
uma semente esparramada
a amada parreira e sua semente
vinho que destrói a Ilusão
da cidade e do intelecto
a vida cotidiana
é um chichete gasto
comer uma torta rançosa
com a barba crescida até
a raiz das árvores
escutar os deuses
enquanto a bunduda garçonete
da hospedaria molambenta
sintoniza o radio detonado
dizer uma verdade direta
na cara de quem mente
este é João da Silva
um poeta renomado de acordo
com o princípio do anonimato
poeta das ruas e dos esconderijos
dos dizeres e do toureio dos carros
uma semente
que germina
o mundo de Cima
o mundo de Baixo
uma semente
João da Silva
um nome e um sobrenome
tão comuns
como João Ninguém
João Todos
poderia chamar-se Milarepa
Rumi ou Lao Tse
escrever sem floreios nas
revistas
prefere as almas
às notas de rodapé
sábio que assim explica
a literatura mexicana
o Macrocosmos está Acima
o Microcosmos está Abaixo
nós estamos no Centro
João da Silva
sobrenome tão vulgar
que parece o pseudônimo
de alguém que pretende esconder
sua identidade
chamar-se
João como Todos
Da Silva como o resto
algo assim
como nada somente nada
João da Silva
pleonasmo
de sua amável identidade
João
é o Cosmos
lavando carros
no centro de Tijuana
um flanelinha
que é um dos dez mil poetas
que existem no universo
em suas dez mil sucursais
adjuntas
lavando carros
como os moleques de rua
canelas perebentas, cheira-colas
recebendo insultos e infames
moedas contra os para-brisas,
vendedores de chicletes, flanelinhas, viciados
João da Silva
que se pensaria
que não existe
e sua história
é um heterônimo
daqueles que editaram
seus poemas
nuvens de palavras
que volteiam
ao vento repleto
de anúncios
quem o conhece
espalha suas anedotas
iluminações súbitas
nas ruas centrais
colônias periféricas
da cidade dos para-brisas
que rugem
assim que avistam um flanelinha
fecham o cerco, tinem
as algemas e as grades
limpam os vidros dos carros
enfileirados no semáforo
lavando-os com um trapo
uma lata d’água
uma escova de cabo plástico
limpando a mente
da cidade quando se detém
o poeta debruçado
30 segundos para deixar o vidro
impecável
30 segundos
o que dura um poema
o que dura uma limpadinha
de João da Silva no para-brisa
na mente
na linguagem
no vidro límpido
o que dura um milênio
ainda sobra
em apenas 30 segundos
para limpar o para-brisa
para dizer
o Macrocosmos está Acima
o Microcosmos está Abaixo
João da Silva
no
Centro
de
Tijuana
lavando
carros
JUAN MARTÍNEZ, JUAN NADIE, JUAN TODOS
a José Vicente Anaya
Vate y vato
en una cueva escarpada
en playas de Tijuana
bañándose a las cinco de la mañana
en la heladez apriorística del agua
el mar
una semilla desparramada
la amada parra e su semilla
vino que destruye la Ilusión
de la ciudad y el intelecto
la vida cotidiana
es un chicle muy mascado
comer una torta rancia
con la barba crecida hasta
las raíces de los árbores
escuchar a los dioses
mientras la caderona mesera
de la fonda chamagosa
sintoniza la radio averiada
decir una verdad directa
en la cara del que miente
eso es Juan Martínez
un poeta renombrado de acuerdo
al principio de anonimato
poeta de las calles e los escondites
de los decires y del toreo de los autos
una semilla
que desperdiga
el mundo de Arriba
el mundo de Abajo
una semilla
Juan Martínez
un nombre y apellido
tan comunes
como Juan Nadie
Juan Todos
podría lamarse Milarepa
Rumi o Lao Tse
escribir sin hacer leyenda en las
revistas
prefiere las almas
a las notas de pie de página
sabio que si explica que és
la literatura mexicana
el Macrocosmos está Arriba
el Microcosmos está Abajo
nosostros estamos en el Centro
Juan Martínez
apelativo tan vulgar
que parecería el pseudónimo
de alguien que quiere escamotear
su identidad
llamarse
Juan como Todos
Martínez como el resto
algo así
como nada nada así nomás
Juan Martínez
pleonasmo
de la mismidad amable
Juan
es el Cosmos
lavando coches
en el centro de Tijuana
un lavacoches
que es uno de los diez mil poetas
que tiene el universo
en sus diez mil sucursales
adjuntas
lavando coches
como los niños callejeros
canillitas arruinados, chemos
recibiendo insultos y monedas
abyectas contra el parabrisas,
chicleros, limpiavidrios, adictos
Juan Martínez
que inclinaría a pensar
que no existe
y su historia
es un heterónimo
de quienes editaron
sus poemas
una talega de palabras
que revientan
en el viento retacado
de anuncios
quienes lo conocen
desperdigan sus anécdotas
iluminaciones súbitas
en las calles céntricas
colonias periféricas
de la ciudad de los parabrisas
que rechinan
en cuanto ven a un lavacoches
inician las redadas, abren
las esposas y la cárcel
limpian los vidrios de los carros
enfilados por el semáforo
limpiándolos con un trapo
um bote de agua
un cepillo de mango plástico
limpiando la mente
de la ciudad cuando se detiene
el poeta trepado
30 segundos para dejar impecable
el vidrio
30 segundos
lo que dura un poema
lo que dura en limpiar
Juan Martínez el parabrisas
la mente
el lenguaje
el vidrio límpido
lo que dura un milenio
sale sobrando
sólo 30 segundos
para limpiar el parabrisas
para decir
el Macrocosmos está Arriba
el Microcosmos está Abajo
Juan Martínez
en
el
Centro
de
Tijuana
lavando
autos
POR UMA POÉTICA ANTES DO PALEOLÍTICO E DEPOIS DA PROPAGANDA
FRAGMENTOS
∇ A noção de “Literatura” caducou por completo. “Literatura” (letras, escritura) é um campo tão reduzido (mas nesse charco chafurda o Cânone Ocidental) que tem alienado a linguagem humana e a criação, separando-nos da maioria das formas primordiais do Dizer: a oralidade, a pictografia, todas as gamas de linguagem sem palavras e do dizer corpORAL (performance, dança, teatro essencial, ritual), etcétera. (1)
∇ A noção de “Literatura” deve ser abolida e em seu lugar deve ser retomado o conceito do “Dizer”. Estudar e acelerar o devir do Dizer. (Deixemos o estudo e o contagio da Literatura para as Universidades e Institutos de Cultura Paraestatais). Adentrar em todas as formas do Dizer, desde a poesia rupestre até a holografia, desde a etnopoética até a cibercultura. (2)
∇ A origem da linguagem está depositada nas palavras, mas também na carne do cervo e nos cogumelos alucinógenos. (3)
∇ Transtornemo-nos uns aos outros. (11)
∇ Quando se escuta falar que já passou o tempo dos revolucionários, se faz mais necessária a resistência contra a morte da linguagem. (23)
∇ Se se escutar atentamente a expressão “já passou o tempo dos rebeldes”, se notará que seu som é idêntico ao do afiar metálico do facão do açougueiro aterrorizante. (24)
∇ A batida cardíaca humana é uma das modulações originárias do grande ritmo universal, como os mantras. A batida cardíaca animal é o mantra primordial. (27)
∇ As noções “formalistas” de métrica, rima e tropo devem ser definitivamente substituídas pelas de fôlego, batida cardíaca e percepção. (28)
∇ Todas as obras são fragmentos de uma grande partitura universal, de um processo ritmado do qual todos os seres são momentos e entonações. A boa obra poética é aquela que se insere, captura e anota uma parte dessa partitura. (30)
∇ Amor e Humor — Orgasmo e Sarcasmo são os únicos deuses em cujos altares vale a pena oferecer e dar-se em sacrifício. (44)
∇ A arte “intermedia” denota imediatamente sua analogia com as formas “artísticas” primitivas. A “nova” arte que se faz hoje nas telas dos computadores foi feita também nas paredes das cavernas. Não se deve negar nenhum meio, nem há intromissão da tecnologia nas artes, porque as artes sempre requereram novos meios. Sem dúvida, as “novas” técnicas nos aproximam cada vez mais dos meios e técnicas originais da poesia. (48)
∇ Alguma vez a escrita também foi um meio estranho para o dizer profundo. (49)
∇ A tradição é idêntica a sua transformação; não há rupturas na tradição, não há continuidade da tradição, a transformação é permanente/impermanente. Os únicos atributos seguros da tradição são que ela é irreal e desconhecida. A única tradição existente é a incessante transfiguração das tradições. (60)
∇ A dança, a poesia, a memória, tudo nos foi ensinado pelas criaturas não humanas. Os primeiros xamãs da linguagem são os animais selvagens. (75)
∇ Em suas origens (Grécia, China, etc.) a poesia ocupava os espaços públicos das cidades (epigramas = inscrições). Tão importante quanto o regresso à oralidade, é a migração da poesia das páginas dos livros para os letreiros de rua, os muros, os grafites. Nos grafites de Tijuana há mais poesia viva do que nos livros de Harold Bloom. (85)
∇ Na realidade, toda realidade é imaginária. Todo o imaginário é real. O ser humano se caracteriza pelo uso especializado da imaginação. A poética depende do cultivo e do alargamento da imaginação. (91)
∇ O poema deve ser manejado como um organismo, não como uma máquina. (93)
∇ Só valem a pena as transformações radicais, as renovações pessoais; a morte da poesia também se manifesta nos maneirismos e nas jogadas publicitárias das falsas vanguardas. (136)
∇ O processo contrário ao aprofundamento do Dizer é chamado, na mídia e na política, de “Globalização” (Monocultura mundial, mono-aculturação). (149)
∇ Antes de possuir concepções, as palavras possuem vibrações. (153)
∇ A consciência terrestre sobre o Grande Processo Cósmico será prontamente interrompida pelo cogumelo nuclear. O cogumelo nuclear deve ser substituído pelo cogumelo alucinógeno. (158)
∇ A força feminina é o princípio criador do universo; sem uma retomada e uma recriação das diversas filosofias do princípio feminino, não há futuro para a poesia. Nem para o mundo. O futuro é uterino. (164)
∇ Que faz o poeta no mundo?: faz o mundo. (175)
NOTAS AOS POEMAS
- “A Porta de Madeira do Suicídio”: o poema é escrito na persona do pintor holandês Vincent Van Gogh.
- “Violentam uma garota”: Issstetiendas, no original, refere-se a um supermercado estatal, com preços populares. Preferi adaptá-lo para o Brasil, fazendo referência ao supermercado Barateiro.
- “Até então”: Toloache (derivada da planta homônima) é uma beberagem mágica, alucinógena, utilizada em rituais por xamãs de algumas etnias mexicanas. Extremamente perigosa, uma dose excessiva pode levar à morte por parada respiratória.
- “João da Silva, João Ninguém, João Todos”: em um primeiro momento pensei em “transpor” o cenário do poema para as ruas do Rio de Janeiro, em função do abrasileiramento do nome Juan Martínez, e das semelhanças de tratamento que recebem os desvalidos tanto na cidade brasileira quanto na mexicana. Por fim, decidi abrasileirar apenas o nome do personagem, sem prejuízo, acredito, de mantê-lo no contexto de Tijuana. João me pareceu mais adequado que Zé: ainda que Zé Ninguém caísse como uma luva, João Todos me pareceu mais sonoro, além de João Ninguém ecoar o protagonista da clássica canção de Noel Rosa.