Preso com outros 5 mil presumíveis adversários do governo militar, o cantor sabe que vai morrer. Seus captores usam fardas e uma pretensa autoridade militar e separam os presos em grupos de 200 para torturar e depois executar a pauladas ou com rajadas de metralhadoras – rajadas que cortam corpos ao meio, naquilo que os prisioneiros chamam de “serras de Hitler“. Enquanto espera sua hora, o artista escreve seu último poema, que vai passando aos colegas para esconderem em alguma dobra das roupas ou nas meias.
Como me sai mal o canto!
Quando tenho que cantar o espanto!
Espanto como o que vivo
Como o que morro, espanto
De ver-me entre tantos e tantos
momentos de infinito
em que o silêncio e o grito
são as metas desse canto
O país estava em convulsão, e o general Augusto Pinochet comandava o sangrento golpe que mataria cerca de 40 mil pessoas no Chile. O cantor era Víctor Jara. No dia 16 de setembro de 1973, habitantes da comunidade encontraram seis cadáveres metralhados. Um deles reconheceu, apesar do estado dos corpos torturados e dilacerados, um rosto familiar. “É Víctor Jara!”, declarou.
O último poema de Víctor Jara, preservado pelos amigos, só chegou à sua viúva, a bailarina britânica Joan Alison Jara, muito tempo depois, e foi o esforço heroico do texto que batizou o livro que ela lançaria em 1983, Víctor: an unfinished song, que foi editado no Brasil pela primeira vez pela Editora Record em 1998. Agora, acrescido do posfácio de atualização de Joan Jara, com uma nova revisão e textos e fotos inéditos, Víctor: uma canção inacabada ganha uma nova reedição no Brasil pela editora Expressão Popular.
O momento não podia ser mais propício. Em outubro de 2020, a ditatorial Constituição de Pinochet foi enterrada em um plebiscito no Chile, com cerca de 80% dos votos, o que jogou no devido lugar o golpe militar. O Brasil, cujo governo flerta com o regime assassino pinochetista, ao mesmo tempo em que diz condenar ditaduras sanguinárias, sonha em repetir aqui o mesmo em relação aos adversários políticos – não foi apenas uma vez em que se falou em golpe militar nos últimos três anos.
O livro de Joan Jara tem diversos elementos de legitimação da sua narrativa (além da comoção que um tipo de covardia assim causa). Ela conta a história de seus amores, Víctor e o balé, das filhas e dos anseios de um País, com um duplo olhar distanciado e carinhoso: é estrangeira no Chile e é mulher no coração da resistência. Quando ela conheceu o poeta e cantor, ele era ainda um estudante e ela era uma “mulher velha”, como dizia (tinha apenas 30 anos,) recém-trocada pelo marido por uma bailarina de bicicleta e levemente amargurada. O garoto queria saber algo sobre o Teatro Nô japonês e ficou fascinado pela mestra.
Filho de lavradores de Lonquén, a 80 km de Santiago (mas milhares de km distanciada cultural e socialmente desta capital), Víctor tinha sido seminarista após a morte da mãe, mas foi uma breve experiência rejeitada pelo rapaz. Entrou então para o Exército, ingressando na Escola de Infantaria de São Bernardo. Ali, adaptou-se rapidamente, tendo sua “conduta militar” sendo considerada excelente pelo regimento. Ao sair, em 1954, viu um anúncio no jornal procurando um cantor para um coral que iria interpretar a Carmina Burana. Foi aceito como tenor, o que acabou lhe granjeando acesso ao Teatro Municipal.
A partir de então, entre cantores, pintores, escultores, cenógrafos, cresceu a consciência de Víctor Jara (que vivia de favor em casas de amigos e comia na rua) sobre sua condição de cidadão chileno, de responsável pelo esboço de um futuro melhor para seus concidadãos, e sua arte passou a refletir essas conclusões. Em 1956, foi aceito na Escola de Teatro da Universidade do Chile, a única instituição de então nas artes cênicas do País. Ali, integrou-se ao movimento estudantil justamente no momento em que Salvador Allende montava uma ampla aliança de esquerda no País.
Agora diretor de teatro, professor, ativista, membro do Partido Comunista chileno, a lenda de Jara se espalhava. Conhece e se torna amigo de Violeta Parra, outra lenda da canção chilena. Como um artista identificado com o folk, compôs músicas nas quais pespegaram o rótulo de “canções de protesto”, mas a produção chilena de Jara e seus contemporâneos ativistas tinha um fundo mais nativista, com obras que exaltavam camponesas (Abre tu ventana) e a questão dos conflitos agrários (Preguntas por Puerto Montt), por exemplo.
Após a morte de Víctor, Joan só conseguiu sair do Chile sob a escolta da embaixada britânica, por causa da dupla nacionalidade, e dedicou os 10 anos seguintes de sua vida a fazer conferências denunciando as violações aos direitos humanos por Pinochet (a Justiça chegou a condenar o espólio do general a devolver US$ 21 milhões que ele “acumulou” em contas no Exterior durante seu jugo assassino).
No ano que vem, completam-se 50 anos do golpe no Chile. A obra de Jara e sua lição de resistência e delicadeza norteiam um vasto universo de poetas, cantores e artistas de todos os quadrantes. Quando esteve no Chile em 2013, o norte-americano Bruce Springsteen escolheu a canção Manifiesto, de Víctor Jara, para prestar-lhe um tributo. Sua canção inacabada tornou-se a completa denúncia da barbárie do autoritarismo.