O canto de despedida de Airto e Flora

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Flora Purim em show de despedida no Sesc Belenzinho, em janeiro de 2022 - fotos Junior Pacheco
Airto Moreira em show de despedida no Sesc Belenzinho, em janeiro de 2022 - fotos Junior Pacheco
Airto Moreira (secundado pelo porto-riquenho Frank Colón) numa das apresentações de despedida no Sesc Belenzinho – fotos Junior Pacheco

“Nos encontramos em um outro mundo. Em uma outra dimensão.” Flora Purim se despediu assim da plateia paulistana que ocupava as poltronas não esvaziadas pela covid do Sesc Belenzinho, no final de semana passada, e quem estava lá sabia: os dois shows da dupla foram previamente anunciados como a despedida dos palcos da cantora e de seu parceiro e marido, Airto Moreira. A cantora carioca completa 80 anos no dia 6 de março; o percussionista catarinense criado no Paraná fez 80 em 5 de agosto e tem problemas de locomoção. Radicados nos Estados Unidos a partir de 1967, Flora e Airto voltaram ao Brasil, discretamente, há três anos. A discrição da despedida, agora, tampouco faz jus a tudo que o casal praticou musicalmente em 52 anos de exílio, quando tocaram e/ou cantaram com Miles DavisWayne ShorterChick Corea, Stan GetzDizzy Gillespie e mais um extenso rol de lendas do jazz.

Seria a despedida dolorosa de uma dupla de músicos que em sua terra natal ficou restrita ao público apreciador de jazz, mas era muito mais do que isso. Em 2022, Flora completa 80 anos ao lado de gente como Paul McCartneyGilberto GilCaetano VelosoMilton Nascimento e Paulinho da Viola. No ano passado, tornaram-se octogenários, com Airto, artistas como Yoko OnoJoan BaezRoberto Carlos, Nana CaymmiBob Dylan Erasmo Carlos, . Antes, já haviam adentrado o recinto dos 80 Hermeto PascoalGeraldo VandréTom ZéMartinho da VilaJorge Ben Jor (talvez, porque a data de nascimento é controversa) – e Elza Soares, que nos abandonou em 20 de janeiro. Em poucos anos se somarão a eles Chico BuarqueEdu Lobo, Marcos ValleMaria BethâniaGal Costa, Mick JaggerKeith Richards, Rita Lee, WanderléaOdair José, Stevie Wonder, para citar apenas alguns que compõem a dianteira de uma geração fabulosa de artistas da música, a maioria deles ainda ativa e atuante nos palcos, ao menos até o início da pandemia, em 2020.

O gesto transparente e desprendido de Flora e Airto diz muito sobre eles, mas diz algo também sobre aquela geração baby boom como um todo: o ritual de despedidas já começou (na verdade, desde as mortes prematuras de John Lennon, em 1980, e de Elis Regina, em 1982, se não desde sempre). Pode durar ainda duas décadas ou mais, mas é bom aproveitá-los enquanto continuam conosco. É justo aproveitar, em especial, a presença daqueles que não frequentam os holofotes em condição de igualdade com os astros de ponta, mas compõem um alicerce sem o qual não haveria nada nem ninguém. Por isso mesmo é tão emocionante ver e ouvir Airto e Flora no palco, uma vez mais.

"Vol. 1" (1964), do Sambalanço TrioNo caso deles, não se trata só do brilho que lustrou suas trajetórias na cena vanguardista do jazz (e no flower power da geração hippie, que eles viveram em flor). Antes de migrar e fazer história no chamado jazz fusion, nos anos 1970, Airto e Flora foram importantes também no nascimento da chamada MPB, a dos festivais da canção dos anos 1967, embora pouco se costume lembrar a respeito. Ele, nascido em Itaiópolis (SC), criado em Ponta Grossa (PR) e transformado em adulto perambulando por Curitiba (PR), Santos (SP) e São Paulo, começou a ganhar notoriedade como baterista do Sambalanço Trio, completado por Cesar Camargo Mariano (nascido em 1943, futuro maestro de Wilson Simonal e Elis Regina), no piano, e Humberto Clayber, no contrabaixo.

O trio esteve na inauguração do mitológico João Sebastião Bar, em São Paulo, e deixou marca na cena da bossa nova instrumental – o samba-jazz, ou sambalanço – em três LPs, Sambalanço Trio Vol. 1 (1964), Sambalanço Trio (1965), no qual Airto debutou como compositor, num “Improviso Negro“, e Reencontro com Sambalanço Trio (1965), além de secundar o bailarino, coreógrafo, ator e eventual cantor novaiorquino Lennie Dale em Lennie Dale e o Sambalanço Trio (1965).

Enquanto Airto ajudava a definir parâmetros para o samba-jazz, também na bateria dos álbuns homônimos do Sambrasa Trio (1965, com Hermeto Pascoal no piano e na flauta) e do Octeto de Cesar Camargo Mariano (1966), Flora estreava como cantora no LP Flora É M.P.M. (1964) – antes de se chamar MPB, a música popular brasileira testou o nome MPM, música popular moderna. Ali, a menina de 22 anos se desdobrava em cantar temas de bossa ensolarada do musical Pobre Menina Rica (1964), de Carlos Lyra Vinicius de Moraes, e da bossa de protesto (futura MPB) de Edu Lobo, então ainda Eduardo Lobo. Flora chegou a concorrer nos festivais das TVs Excelsior e Record de 1966, sem chegar às finais.

Airto e Flora, que se encontraram e aproximaram para ouvir juntos um disco de Miles Davis, tinham tudo para seguir caminhos diferentes no ano de 1967, quando ela decidiu migrar para os Estados Unidos com o objetivo de conhecer seus ídolos, todos filiados ao jazz – Miles Davis, Thelonious Monk e outros. Airto estava então iluminado como percussionista pelo brilho do paraibano ascendente Geraldo Vandré, primeiro no LP 5 Anos de Canção (1966, compondo o Trio Novo com Theo de Barros e Heraldo do Monte), em seguida na explosão dos festivais da canção, em “Porta-Estandarte” (vencedora do festival da TV Excelsior de 1966, nas vozes de Airto e da efêmera Tuca), “Disparada” (interpretada por Jair Rodrigues) e “Ponteio” (de Edu Lobo, com ele e Marília Medalha, de 1944).

Com o Trio Novo em “Disparada”, Airto usou como instrumento de percussão a célebre queixada de burro que ajudou a dar vitória à canção de Vandré e Theo no Festival da Record de 1966, empatada com “A Banda” de Chico Buarque(e Nara Leão). No ano seguinte, para “Ponteio”, o Trio Novo virou Quarteto Novo, com Airto na percussão, Heraldo na viola, Theo no contrabaixo e, agora, Hermeto Pascoal na flauta. Segundo o pesquisador Zuza Homem de Mello no livro A Era dos Festivais – Uma Parábola (2003), Airto teria orquestrada a segunda colocada do festival da Record de 1967, “Domingo no Parque”, de Gilberto Gil, mas desistiu diante da menção aos Beatles. A vitória ficou nas mãos de Edu Lobo – e do Quarteto Novo, que no mesmo 1967 lançou o histórico e solitário LP Quarteto Novo. Ali, Airto é autor da lírica “Misturada” (registrada inicialmente como uma parceria com Vandré, mas composta apenas por Airto), obra-prenúncio das fusões musicais que o percussionista promoveria na década seguinte.

Acontece que em 1967 Airto estava apaixonado por Flora, e decidiu ir buscá-la nos Estados Unidos – com ajuda monetária de Chico Buarque, segundo ele conta. Não funcionou: quem ficou foi ele. Em 1969, Airto já aparecia tocando percussão em Summertime From the Hot Afternoon, do saxofonista Paul DesmondSuper Nova, do saxofonista Wayne ShorterMoondeams, do também migrante Walter Wanderley; e Merry Ole Sun How Insensitive, do pianista Duke Pearson. No brasilianista How Insensitive, Pearson deixava transbordar a voz quente de Flora pela primeira vez num disco norte-americano, em “Tears“, versão em inglês de “Razão de Viver”, de Eumir Deodato (carioca de 1942), mais o sambalanço “Sandália Dela” e a bossa “Lamento“, ambas em português.

Em 1970, deu-se o encontro que começaria a consolidar o músico catarinense como o melhor percussionista do mundo (segundo a revista estadunidense especializada em jazz Downbeat, que por oito anos lhe concedeu esse título, criado especialmente para ele): Airto foi tocar percussão com Miles Davis – em cuja discografia apareceria com suas cuícas, berimbaus, guizos, kazoos, instrumentos indianos e diversas pequenas invenções, nos álbuns At Fillmore (1970), Live-Evil (1971), Black Beauty – At Fillmore West (1973), Big Fun (1974), Get Up with It (1974, na faixa “Honky Tonk”), Circle in the Round (1979, em “Guinnevere”) e Directions (1981, em “Konda”). No clássico Live-Evil estão as três faixas que Miles surrupiou de Hermeto e assinou como dele, “Little Church” (ou “Igrejinha”), “Nem Um Talvez” e “Selim” – nas três, o bruxo alagoano apresentado a Miles por Airto faz vocais e toca bateria, piano elétrico e/ou assovio.

Sob o nome artístico Airto (sem o sobrenome), o artista estreou em disco solo ainda em 1970, com Natural Feelings, de capa ilustrada por obra de Hieronymus Bosch e um time de músicos formado pelo contrabaixista norte-americano Ron Carter e pelos brasileiros Flora, Sivuca e Hermeto. Nesse mesmo disco, estreou em disco a parceria Airto-Flora, inclusive na composição da solar faixa de abertura, “Aluê”.

Simultaneamente, Airto e Flora produziram Hermeto (1970), primeiro disco solo do parceiro nordestino, com a percussão de Airto, os vocais do casal em “Mourning (Velório)” e “The Marianas (As Marianas)” e os de Flora em “Pliers (Alicate)”. Airto seguiu a própria estrada com Seeds on the Ground – The Natural Sound of Airto (1971), de capa psicodélico-progressiva, o acréscimo de Dom Um Romão na percussão e a explosão final com a espetacular suite jazz-nordestina “O Galho da Roseira (The Branches of the Rose Tree)”, de Hermeto.

Em 1972, Airto foi contratado pelo selo CTI, do lendário produtor Creed Taylor, um dos responsáveis pela internacionalização da bossa nova de João Gilberto e Tom Jobim, ainda nos anos 1960, em álbuns históricos lançados pela Verve Records. Na virada dos anos 1960 para os 1970, Taylor lançou álbuns brasileiros dos também migrantes Jobim, Tamba Trio (no formato Tamba 4), Walter Wanderley, Eumir Deodato e Astrud Gilberto, pelo selo próprio CTI. De Airto, editou os antológicos Free (1972), Fingers (1973) e Deodato/Airto in Concert (1974, com Eumir).

Paralelamente, Airto e Flora participaram do início da invenção do jazz fusion eletrizado pelo tecladista Chick Corea em Return to Forever (1972), com Corea no Fender Rhodes, Stanley Clarke (com 17 anos de idade) no baixo acústico, Joe Farrell no sax e na flauta, Airto na percussão e Flora nos vocais e na percussão. A formação se repetiu em Light As a Feather (1973, cuja faixa-título assinada por Clarke e Flora é conhecida também por uma versão soul-pop de 1979 pelo grupo brasileiro-internacional Azymuth), com o supergrupo agora batizado de Return to Forever. Curiosamente, o mesmo Airto que não quis participar da “rockificação” da MPB à época de “Domingo no Parque” esteve no olho do furacão da eletrificação/eletronização do jazz, com Chick Corea e o Return to Forever.

O impulso dado pela aceitação do jazz fusion permitiu a Flora uma (re)estreia internacional como cantora solo, em 1973, com o funkeado LP Butterfly Dreams, de composições autorais da artista em parcerias com Stanley Clarke e George Duke, mais o clássico bossanovista “Dindi” (de Tom Jobim, 1959) e “Moon Dreams”, versão (assinada por Ray Evans Jay Livingston) do tema de festival “O Sonho” (1969), de Egberto Gismonti (fluminense de 1947).

Flora seguiu daí por diante uma carreira solo consistente, experimental (de agudos que antecederam os da sul-matogrossense Tetê Espíndola) e frequentemente misturando jazz com MPB, em interpretações particulares, ora em português, ora em inglês, de Edu Lobo (“Casa Forte” e “Pra Dizer Adeus”, em 1974), Milton Nascimento (“Vera Cruz”, 1974, “Cravo e Canela” em dueto com o autor, em 1976, “Travessia”, 1977, uma estupenda versão bilíngue de “Nada Será Como Antes“, em 1977), Dori Caymmi (“O Cantador”, 1974), Luiz Gonzaga (“Asa Branca”, vertida em “White Wing” e mesclada com “Black Wing”, dela e de Hermeto, 1976), Gilberto Gil (“Sarará Miolo”, ou “Sarara”, 1979), Toninho Horta (“Beijo Partido” ou “Broken Kiss”, 1979) etc. Daí por diante, Flora compôs com McCoy Tyner, George Duke, Chick Corea e Hermeto e foi acompanhada por instrumentistas como Stanley Clarke, Joe Henderson, George Duke, Ron Carter, Raul de SouzaOscar Castro NevesWagner TisoRobertinho Silva, Egberto Gismonti, Laudir de OliveiraAlphonso JohnsonAl McKay (do grupo Earth, Wind & Fire), Jaco PastoriusHerbie Hancock e Lee Ritenour.

Desde o encontro com Miles Davis e décadas afora, o trabalho de Airto como percussionista se espraiou em apresentações e discos com os saxofonistas Hubert Laws, Cannonball Adderley, Stanley TurrentineGrover Washington, Jr.Gato Barbieri, Stan Getz e Joe Farrell, os trompetistas Freddie Hubbard Donald Byrd, os organistas Johnny Hammond e Lonnie Smith, os tecladistas Chick Corea e George Duke, o baixista Stanley Clarke, os guitarristas John McLaughlin, Kenny BurrellCharlie Byrd e Al di Meola, o vibrafonista Gary McFarland, os pianistas Gil Evans e McCoy Tyner, o baterista nigeriano Babatunde Olatunji e dezenas de outros.

Mergulhado num reservatório inesgotável de fusões, Airto viajou pelo folk-pop com Paul Simon (tocando no hit “Me and Julio Down by the Schoolyard“, de 1972) e pelo jazz-rock latino com Santana (no álbum Borboletta, de 1974). Nesse último, é autor da faixa-título, na qual conduz um inesperado aboio nordestino, e toca bateria e/ou percussão em “Flor de Canela” e “Promise of a Fisherman”. Ainda na associação com Santana, Flora cantou “Yours Is the Light” (1973) e povoou “Promise of a Fisherman” (nada menos que a “Promessa de Pescador” de Dorival Caymmi) de vocais fantasmagóricos.

Na misturada, a música de Airto sobrevoou ainda o pop-jazz de George Benson, o pop-funk de Tina TurnerChaka Khan Average White Band, o prog-rock do grupo Chicago, o soul-pop de Narada Michael Walden, o country-pop de James Taylor, a jazz fusion uruguaia da banda Opa (que toca com ele em Fingers e segue longeva parceria) e mesmo o pop eletrônico do Depeche Mode (em Exciter, de 2001), entre outros.

Afastado do Brasil, ele não se afastou dos artistas brasileiros, e gravou em discos de Milton Nascimento (Courage, 1969), Edu Lobo (Sergio Mendes Presents Lobo, 1970), Tom Jobim (Stone Flower, 1971), Sergio Mendes (Primal Roots, 1972, chamado de Raízes no Brasil), Luiz Bonfá (Jacarandá, 1973), Eumir Deodato (Prelude e Donato/Deodato, ambos de 1973, o segundo com João Donato), Toninho Horta (Terra dos Pássaros, 1980), Marcos Valle (Vontade de Rever Você, 1981), Fagner (Airto e Flora participam de “Sambalatina“, 1982), Egberto Gismonti (Trem Caipira, 1985), Tania Maria (Forbidden Colors, 1988)…

A carreira individual de Airto também prosseguiu, forte e experimental. Em Identity (1975), todas as faixas eram de compositores brasileiros, quase sempre com a participação de Egberto Gismonti, também responsável por violão, piano, piano elétrico e flauta. A faixa final, de Airto, mostrava desde o título que tudo continuava como antes: “Flora on My Mind”. O apego pelas brasilidades marcou também Promises of the Sun (1976), com Milton Nascimento cantarolando sua “Promises of the Sun” (ou “Promessas do Sol”, no original em português) e tocando violão em “Circo Marimbondo”. Mais internacionais soaram trabalhos como Touching You… Touching Me (1979), entre o soul, o funk e a latinidade, com arranjos de Marcos Valle, e a lírica Misa Espiritual – Airto’s Brazilian Mass (1983), com supervisão do pianista canadense Gil Evans, arranjos do pianista radicado estadunidense Marcos Silva e a orquestra alemã WDR Big Band.

Em 1977, Airto e Flora produziram mais uma obra-prima de Hermeto, Slaves Mass, com ele na percussão e na bateria e vocais do casal no afrocanto de trabalho “Missa dos Escravos (Slaves Mass)”. Em 1980, Airto e Flora se engajaram num projeto incomum, integrando o grupo percussivo Rhythm Devils, com Mickey HartBill KreutzmannPhil Lesh (dois bateristas e um baixista da banda de rock Grateful Dead) e o baterista e percussionista Mike Hinton, entre outros músicos, com o objetivo de gravar temas incidentais para o cineasta Francis Ford Coppola, que filmava Apocalypse Now (1979). O trabalho originou o inventivo álbum The Apocalypse Now Sessions (1980, todo composto por Hart, Airto e Hinton) e se desdobrou em Däfos (1983), de Airto e Flora com Mickey Hart.

A partir daí, o casal oficializou a jamais interrompida associação musical (sempre participando dos discos um do outro) e começou a assinar os discos como Airto Moreira & Flora Purim (ou vice-versa), como em Three-Way Mirror (1985, em trio com Joe Farrell, na flauta) e Humble People (1985). A fusão jazz-MPB predominou, em novas releituras de Milton (“Lilia”, em 1985), Sueli Costa Vitor Martins (o “20 Anos Blue” imortalizado por Elis, cantado por Flora em português, mas sob o título “20 Years Blue”, 1985), Djavan (“Jogral”, 1985, “Esquinas”, 1986), Joyce Moreno (“Mistérios”, 1988), Azymuth (“Partido Alto”, de Alex Malheiros José Roberto Bertrami com Flora, 1988)…

Os anos 1990 começaram com o derradeiro registro gravado ao lado de uma lenda do jazz, o trompetista Dizzy Gillespie, três anos antes de sua morte. Airto toca percussão e/ou bateria e Flora faz vocais nos álbuns Rhythmstick Live at the Royal Festival Hall, ambos lançados em 1990. Em 1993, Airto liderou um supergrupo batizado The Gods of Jazz, com o qual gravou o álbum Killer Bees. As abelhas assassinas musicais eram Airto (percussão, bateria e vocais), Hiram Bullock (guitarras), Stanley Clarke (baixo acústico e elétrico), Chick Corea (piano acústico e teclado eletrônico), Mark Egan (baixo elétrico e baixo sem trastes), Herbie Hancock (piano acústico e teclado eletrônico), Gary Meek (saxofones) e Flora (vocais).

Nessa década dos 1990, a dupla Airto e Flora se transmutou em grupo sob o nome Fourth World, com a fixação do guitarrista paulistano José Neto, já colaborador, e do saxofonista e tecladista estadunidense Gary Meek. Os sons de natureza, desde sempre usados em suas músicas, adquiriram significado adicional em composições como “Africa” (1992), “River San Francisco”, “Earthquake”, “Lua”, “Firewater (1993), “Burning Money” (1995), “Terra Mãe”, “Snake Bite”, “Serra do Relógio” e “Capoeira da Mente” (2000), povoados de interesses ambientalistas, indígenas, africanos. Os quatro últimos temas integraram Last Journey (2000), talvez a derradeira jornada do Fourth World, mas não a de Airto & Flora.

Durante os anos 1990, uma nova dupla de parceiros/compositores se tornou constante no time: Diana Moreira (ou Diana Booker), filha do casal, e seu marido Krishna Booker, filho do baixista estadunidense Walter Booker e sobrinho de Wayne Shorter. Airto e Flora voltaram aos discos assinados individualmente nestes anos 2000 e produziram momentos inspirados como o visceral Flora Purim Sings Milton Nascimento (2002), de Flora, e Aluê (2017), gravado por Airto no Brasil, para o Selo Sesc. Aluê começa pela faixa-título, onde toda essa parceria musical e discográfica começou.

No palco do Sesc Belenzinho, Airto e Flora foram secundados por músicos que haviam acabado de conhecer e por um parceiro veterano, o percussionista porto-riquenho Frank Colón. Ninguém foge às limitações da idade, mas Flora permanece funcionando como uma espécie de comandante da nave e Airto surpreende ao soltar gritos saídos do fundo da alma e do corpo durante o solo de percussão, enquanto canta trechos do samba praieiro “A Jangada Voltou Só”, composto por Dorival Caymmi em 1941, ano em que o catarinense nasceu, e do samba-canção de dor de cotovelo “Cadeira Vazia” (1950), de Lupicinio Rodrigues, popular nos anos 1960 na voz de Elza Soares. Com saudades do passado, do presente e do futuro, esperamos as despedidas de Airto e Flora continuem e demorem mais algumas décadas.

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